“Senta aqui, Pê. Precisamos conversar.”

Bruna ofereceu a ele o lugar à sua frente na cama que antes dividiam.

“Ah, não pensei que você um dia ia me chamar para a cama de novo depois da separação.” Brincou Pietro. Bruna riu.

“Anda, bobalhão. Vamos resolver nossa vida.”

Ele se sentou. Os olhos de Bruna estavam mais claros na luz da manhã.

“Soube de você e Júlio.”

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“Soube de você e Miguel”

Ambos riram. Ela prosseguiu:

“Você também soube que ele vai começar a frequentar a assistência para dependentes de álcool? Pois é. Ele enfim tomou coragem. Agora chegamos à parte pra qual eu te chamei. Dizer dos nossos sentimentos. Nunca fomos bons nisso, né?”

“Ô! Sempre era muito complicado! Por isso perdemos tanto tempo.”

“Nem me fale. Você ama o Júlio?”

“Amo. Muito.”

“Como eu também amo o Miguel.” Ela baixou os olhos, incerta “Mas... Como dizer?”

Pietro suspirou.

“A pergunta do milhão. Se ele quer o mesmo que eu.”

“E, ao mesmo tempo, não vamos saber se não falarmos.”

“Droga. Inventaram o amor antes da linguagem e deu nisso.”

Bruna gargalhou.

“Ah, não me venha com esse papo. Só sei que estou orgulhosa de você e queria te dizer isso. Não estou nem um pouco triste de que não fui eu a escolhida. Estou bem e contente de que você tenha se encontrado.”

“Apesar de tudo, aprendemos muito um com o outro.”

“É verdade. Aprendi que não devo confiar em homens.”

Ela deu um leve soco nos ombros de Pietro, fazendo graça.

“Aprendi que queria mesmo era roubar todos os seus boys quando éramos amigos e você vinha me falar das coisas que vivia, enquanto eu tinha que me policiar pra não dar pinta.”

“É, não faço ideia de como deve ter sido difícil... Era complicado para mim também ter escolhido um estilo de vida livre nesta cidade. Para eles, mulheres são destinadas a um homem e a apenas um homem. Não podemos ter um passado.”

“Bru, você é uma mulher admirável.”

“Eu sei.”

Pietro pegou em suas mãos.

“Você acha que devemos falar com eles?”

“Quer saber? Acho. Não temos nada a perder.”

“Eu posso perder ele.”

“Não, não. Agora que você o encontrou, você não vai perdê-lo a menos que faça por merecer. Você tem que entender que as pessoas só demoram a se encontrar. Pelo menos, é o que eu acho. Mas depois que se acham... Todas as forças do mundo trabalham para que dê certo, quando é sincero.”

“Oh, Bruna, eu quero muito que dê certo com ele...”

Ela deu um salto do sofá, furiosa.

“O que estamos fazendo aqui mesmo? Vamos lá! Agora! Agora!”

“Bruna!”

“Não tem dessa! Vamos, vamos! Agora!”

Ela empurrou Pietro para a porta. Os dois começaram a rir. Nada como um empurrão daqueles.

x-x-x

Bruna entrou no quarto de Miguel. Ele estava deitado na cama, lendo Amor e Amizade, de Jane Austen. Ela, a princípio, queria observá-lo distraído, e entrou no quarto de modo silencioso. Mas ele logo a flagrou no delito. Miguel sorriu, um sorriso que parecia constrangido. Desde o beijo, Bruna não havia lhe respondido claramente sobre seus sentimentos.

“Bruna.” Ele sentou à beira da cama.

“Preciso falar com você.”

“Eu também. Eu também preciso falar com você.” Ele respondeu, apressado.

Ela ficou à frente de Miguel. Dava para notar, pela respiração descontrolada, o quanto se achava nervosa. A boca fazia movimentos para falar, porém não chegava às vias de fato. Miguel mal conseguia organizar um dos seus milhares de pensamentos em conflito, todos se degladiando em busca da sabotagem. Coisas como “ela não vai querer ficar com um doente”, ou “ela não gosta de você, é pena”, ou “você não é bonito o suficiente”. Enquanto ela, se debatia também: “Ele não vai querer uma mulher como eu”, “Eu sou fraca”, “ele me acha volúvel”. Não sabiam que pensavam justamente o oposto.

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“Eu... Bruna, eu...”

“Você... Eu...”

“Acho que...” Os dois falaram ao mesmo tempo, rápidos.

Riram, tímidos.

“Olha, quando estou nervoso, começo a gaguejar pra caralho, sabe? É uma maldição. Eu vou fazer de outro modo.” Miguel disse, raivoso por estar passando aquele nervosismo todo, mas logo encontrou a solução.

Começou a cantar. Era uma música que traduzia bem seus sentimentos:

Teus olhos são negros, negros

Como as noites sem luar

São ardentes são profundos

Como o negrume do mar

Teu amor na treva é um astro
No silêncio uma canção
É brisa nas calmarias
Abrigo é no tufão


Por isso eu te amo querida
Quer no prazer quer na dor
Rosa, canto, sombra e estrela

Bruna escutava sua voz pela primeira vez, emocionada. Então, ela que se encontrava num estado de ansiedade e agitação, escolheu expressar seu amor por outra música. Respirou fundo, olhando nos olhos do amado, gentil e carinhoso Miguel... E começou:

Para e olha pra mim
Para e deixa pra lá
Deixa eu entrar em você por algum olhar

Deixa eu gostar de você
Teus medos posso curar
Deixa eu levar tua vida pra outro lugar

Para e olha pra mim
Vê que já basta olhar
Deixa eu plantar um carinho no teu peito inquieto

Miguel sorriu - e desta vez o seu melhor sorriso, seu sorriso aberto e emocionado. Bruna chegou perto, estendendo a mão para tocar seu rosto cheio de candura e paixão sinceras. Sempre o via frágil, pela dependência, mas aquela fragilidade em seus olhos era nova. Era uma barreira sendo derrubada. Era o seu ser mais autêntico aparecendo ali, diante dela. Miguel a tomou nos braços e deram-se um longo beijo.

O rapaz disse, enfim:

“Meu rouxinol. Você é meu rouxinol.”

x-x-x

Pietro chamou Júlio para conversar na oficina, um local mais reservado. Ele chegou, assustado, mas com o rosto demonstrando resignação. Temia a conversa, mas sabia exatamente do que se tratava. Os dois ficaram frente a frente. Pietro nem disfarçava o nervosismo; seu diafragma mais parecia dançar um batuque de carnaval. Júlio trazia o rosto mais pálido que de costume. Eles apenas se encaravam. Vendo que deveria tomar a iniciativa, Pietro foi direto:

“Eu... Tomei uma decisão.”

Júlio aguardou.

“Eu... Não tinha nada que me prendesse aqui no Vale. Eu achava que não tinha família. Vivia afastado daqui e fazendo o possível pra não retornar. Mas eu não sabia que... Eu tinha uma história pra viver nesse lugar. Que eu tive um passado aqui como outra pessoa. E que eu estava para viver outra história, mas desta vez... Real... E era com você.”

“Eu, Pietro?”

“Eu reconstruí a minha vida, Júlio. Eu... Consigo me entender melhor do que antes. E eu amo você. E quero que você seja o meu futuro. Quero que a gente construa uma vida juntos. Não vá dizer que você não sabia. Não diga isso. Eu sei o que eu vi. Eu sei o que nós dois sentimos juntos.”

Júlio escutava, reconhecendo-se naquelas palavras.

“Há uma revolução acontecendo aqui dentro, Júlio. Uma revolução pra qual eu não fui preparado. E foi você que deflagrou. Vem enfrentar essa batalha comigo!”

Júlio puxou o ar, chorando.

“Pietro... Pietro, eu...”

O outro se espantou com a reação.

“Eu estou sendo tolo?”

Júlio encarou-o sem nada dizer.

“Meu Deus, eu entendi tudo errado! É isso, eu sou um besta, não sou?”

“Para de falar, por favor!” Júlio interrompeu, sua voz embargada.

“Eu quero a minha resposta. Mas acho que você já me respondeu. Não é?”

“Pietro...”

“Eu que estou aqui falando como um bobo, não é?”

“Pietro!” Júlio explodiu em lágrimas e tocou no seu rosto. “Tudo que eu queria era dizer sim, porque também amo você. Eu amo você, Pietro. Nesta vida, na outra, em todas as que tivermos. Você é a pessoa mais importante da minha vida. Mas... Eu não sou o futuro de ninguém, Pietro.”

“O meu futuro é você! Não é você quem pode me dizer isso. Sou eu! Eu sinto! Mas isso quer dizer o quê pra você? Isso aqui... Nós. Não significou nada pra você?”

“Não diga isso, não diga... Mas...”

“Ah! Mas!”

“Mas eu tenho medo de arruinar tudo!” Júlio continuou, desesperado. “De ficarmos tão próximos que eu... Que eu não me reconheça mais e... Magoe você. Que eu ataque você. Que eu arruíne tudo isso que nós temos.”

Pietro riu entre o choro, magoado.

“Não precisa! Você já está fazendo isso! Você acha que eu sou o Ricardo...”

“Não penso que você seja o Ricardo. Penso que eu vou estragar tudo, como sempre faço, ao ponto de que daqui a cinco anos estaremos nos odiando. Eu não consigo manter uma relação, Pietro.”

“Você diz isso por que ele quer que você pense que não vai conseguir mais ninguém. Quer que você fique preso a ele por que ninguém além dele pode te aguentar. Não é verdade, Júlio. Por favor, se liberta disso. Por nós!”

Júlio tentou enxugar os olhos.

“E a Bel?”

“A Bel?”

“Bel não vai aceitar você. Ela acha que... Você é o responsável pela separação.”

“A Bel é só uma criança que o Ricardo manipulou. Ela não pensa isso de verdade.”

“Ele disse que vai tomá-la de mim se eu ficar com você. E ela vai com ele, porque vai ficar com raiva de mim também... Eu não posso perder a minha filha! Não posso desgastá-la com um processo gigante e longo na justiça...”

Pietro aquiesceu. Devolveu com uma resposta irônica:

“Ah! Certo! Então você já tomou sua decisão. Que besteira a minha! Achar que podíamos... De repente, ser corajosos e sinceros um com o outro. Não sei como pude pensar isso.”

“Pê, tenta me entender...”

“Não me chame de Pê! Só piora as coisas. Estou indo. Se quiser ficar, que fique. Mas não fica por muito tempo, não. Aqui é frio e... Triste.” Pietro deu um soco na mesa e saiu, deixando Júlio sozinho com seus medos na oficina.

x-x-x

Mas ele não ficou por muito tempo. Aquele lugar o machucava. Apontava sua covardia. Foi chorar no colo de Délia, enquanto Pietro desabafava com o irmão. Júlio mal tentava disfarçar o choro. Tentava se ferir, dirigindo a si mesmo todo o azar de impropérios, enquanto Délia tentava lhe dar algum conforto. Bel, atrás da porta, sentia seu coração pesar pela tristeza do pai. Mais ainda quando Júlio disse a Délia, sem saber que escutava, que fez o que fez para não perder sua filha, embora lhe custasse a felicidade.

Giovani não era tão bom quanto Délia para consolar com palavras, mas ele fazia questão de dizer que estava ali para o irmão. Após esgotar sua capacidade de chorar para aquele dia, Pietro se afastou, zonzo, falando palavras desconexas. Só havia um jeito de encontrar a felicidade: indo até ela. Mesmo falsa. Mesmo como uma lembrança. Precisava encontrar com Luccino novamente. Aquele Luccino. Que pouco lembrava o Júlio de instantes atrás. Como uma droga que se toma para esquecer-se da vida, Pietro precisava voltar para a porta.

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x-x-x

Primeiro, viu que estava dentro da livraria de Délia, mas talvez novamente ao século XIX, pois nem de longe tinha o mesmo ambiente. Porém, lá estavam os livros, as prateleiras, os compridos corredores. Otávio avistou ao longe o livro de Elisabeta Benedito, novo, mas jogado no chão. O major pegou-o para devolver ao seu lugar. Para sua surpresa, ao achar o vão onde antes se guardava o livro, ele viu algo que chocou o Pietro dentro de si. Era uma abertura que dava novamente para a livraria, mas a atual livraria, aquele que pertencia à Délia. Confuso, Pietro olhou para o livro como sendo um objeto tolo e enfeitiçado. Ele abriu-o sem critério e o rasgou algumas folhas.

Após este ataque de fúria, sua consciência retornou a outro espaço no tempo.

Lá estavam... Otávio e Luccino prontos para fugir. Luccino nem havia se despedido da família, apenas de Mariana e Brandão. Não queria levantar a mínima suspeita. Eles conseguiram as passagens no trem e, um ao lado do outro nos assentos, viviam a felicidade de uma nova chance. Uma moça, então, veio falar com Luccino, dizendo-lhe que alguém queria falar-lhe ao telefone. Otávio aproveitou que estava sozinho. Pietro, dentro dele, respirou fundo, repreendendo-se por precisar daquele passado fantasioso. Até quando achava que podia ficar se enganando? Num impulso, decidiu voltar para o presente. Olhou para a maçaneta enferrujada que ficara em lugar da porta do banheiro do trem. Este, em movimento. Mas, ao tocá-la, encontrava-se inesperadamente trancada. Pietro franziu o cenho. Mas isso nunca acontecera antes! Olhou para os lados. O século XIX seguia tranquilo. Porém ele, ao que parece, estava preso naquela dimensão.