Entre Páginas

Capítulo 15


Melissa esboçava desleixadamente em um caderno de desenho, em busca de qualquer coisa para distraí-la. Já que não era uma grande entusiasta dos romances e sua remessa de gazetas de moda francesas ainda não haviam chegado, tudo que lhe restara fora praticar sua habilidade com o desenho. Descer para tocar piano estava fora de cogitação.
Uma batida suave na porta foi ouvida.
-Eu já disse que não quero ver ninguém. – Falou alto o suficiente para ser escutada. Sua tia já enviara uma bandeja com sanduíches para ela, em uma tentativa de averiguar o que estava acontecendo. Dolores voltara para sua patroa com o objeto intocado.
Continuou rabiscando desinteressadamente. Era competente no desenho, mas considerava um talento quase inútil para si. Aprendera a pintar, bordar, cantar e tocar. Apenas para impressionar a alta sociedade e um futuro marido. Mas Henrique parecia tão interessado em tais coisas quanto seu pai se interessava por todos os vestidos que sua mãe comprava para as temporadas.
-O Sr. Castro está aqui, quer ver a senhorita. – Insistiu Dolores.
O lápis cessou seu percurso sobre o papel.
-Não pode mandá-lo embora?
A última coisa que Melissa precisava era de Henrique vendo-a descabelada, com o rosto inchado e vermelho. Sua aparência estava um caos, e sabia disso. Ela sequer estava vestida. Trajava apenas sua combinação e um roupão de renda por cima. Ele nunca a vira tão descomposta.
-Pela cara dele, não arreda o pé até falar com a senhorita. – Afirmou a empregada, ainda do lado de fora.
-Só me faltava essa... – Bufou.
Uma idéia brotou em sua mente, repentinamente.
De fato, Henrique nunca a vira descomposta. Ela estava sempre impecavelmente vestida e atraente.
O que aconteceria se a visse fragilizada e vulnerável?
Deixou o caderno sobre a cama e encaminhou-se até a entrada do quarto, destrancando a porta.
-Quem está com ele?
-Só sua tia. – Informou a mulher. – A senhorita vai descer?
-Não assim. – Apanhou um pequeno espelho sobre uma cômoda e analisou o próprio reflexo.
Uma catástrofe, naturalmente.
Despejou água fria do jarro de porcelana sobre a tigela de mesmo material e mergulhando uma pequena toalha de linho, aplicou sobre os olhos, esperando que desinchassem ao menos um pouco.
Dolores abriu seu guarda-roupa e investigou os vários vestidos.
-O de musselina rosa. – Ordenou. – E o avental de renda.
Percebendo que a água já fizera o possível por seus olhos, desabotoou o penhoar de tom salmão e Dolores rapidamente ajudou-a com a anágua e traje. Penteou o cabelo. Para não fazer Henrique esperar demais, o coque elaborado foi dispensado, e no lugar, um penteado simples que deixava seu cabelo escuro quase solto pelas costas.
Desceu a escada avistando Henrique sentado rigidamente sobre uma poltrona, dialogando com sua tia, que estava no sofá. Uma bandeja com chá e biscoitos, que ele tanto achava irritante estavam sobre a mesinha de centro, intocados.
-... Eu perguntei o que havia acontecido, mas ela não disse absolutamente nada. Nem mesmo para a irmã. – Contava Amália.
Os saltos das botinas de Mel denunciaram sua presença.
-Ah, Mel, aí está você... Está tão abatidinha... – Disse sua tia, em um muxoxo.
O olhar de Henrique passou por toda a extensão de seu corpo, preocupado.
-Pode nos dar licença por um instante? – Perguntou.
Amália parecia mortificada.
-Absolutamente. – Negou.
-Tia... Estamos noivos e será só um instante. Dolores ou Regina podem ficar pelos arredores.
Sua tia cerrou os lábios, insatisfeita. Todavia, um olhar suplicante de Melissa a removeu da sala.
Henrique olhou para o fundo do corredor próximo á ampla sala de estar onde estavam, incomodado.
-É o máximo de privacidade que teremos? – Indagou olhando na direção de Juliana, que espanava um vaso caríssimo.
-Lamento, mas sim. Isso vai mudar quando estivermos casados. - Explicou.
A palavra ‘casados’ trouxe á tona o motivo de ele estar ali.
-Eu soube do ocorrido. – Começou, incerto. –Eu sinto muito. Peço perdão por mim e em nome de minha mãe.
-Você não teve culpa. – Inspirou Mel. – Sua mãe queria proteger você de uma possível predadora. Ela deu ouvidos á fofocas erradas. Eu mesma nunca contei porque vim para cá.
-Melissa... isso não é necessário.
-Eu tive um relacionamento com um rapaz em São Paulo. – Iniciou sua versão da história. – Era um arranjo entre nossas famílias, nos conhecíamos há muito tempo. Meus pais estavam quase certos de que ele me pediria em matrimônio, eu mesma pensei isso. – Abraçou a si mesma ligeiramente, enquanto falava em tom contido. – E então ele terminou tudo comigo. Fugiu e se casou com outra. Minha reputação ficou arruinada. Reputação é tudo na vida de uma dama. Precisei vir para cá e procurar por um marido. E conheci você. Não contei porque receei sua reação. Homens não reagem muito bem á mulheres mal-faladas. Muito menos se ela é noiva deles. Desculpe-me, eu devia ter dito. - Encerrou, ficando em silêncio.
Castro ficou quieto absorvendo a história. Uma quietude irritável.
Quando o silêncio começou a incomodá-la, ele finalmente disse;
-Eu entendo seus motivos. Estava assustada. Todavia, Melissa, deveria ter me contado sobre isso. Teria sido irrelevante para mim o que falam ao seu respeito, contanto que eu a conheça de verdade. A partir de hoje, quero que seja honesta comigo.
Melissa acenou docilmente.
Henrique aproximou-se e colocou as mãos suavemente sobre seus antebraços.
-Há algo que eu possa fazer por você?
Melissa negou tranquilamente.
-Não, estou bem.
-Posso vir vê-la amanhã?
A moça sorriu com doçura ;
-É claro.
Seu noivo parecia grandemente preocupado com ela, temeroso por seu estado delicado. Partiu pouco depois.
-Pode sair, tia. – Ordenou Melissa, pegando Amália de surpresa.
A Sra. Camargo saiu de seu esconderijo, com a saia arrastando em um farfalhar sutil.
-Vai me dizer o que está acontecendo?
Melissa mordeu o lábio inferior, disfarçando o sorriso vitorioso;
-Não. Mas saiba titia, que tudo acaba de melhorar muito.

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♧♧♧

Amanda ajudou sua mãe á torcer o lençol. Estavam meio sentadas sobre rochas de um riacho, rodeadas de pedras de sabão e escovas para esfregar os tecidos.
-Demorei tanto para conseguir aquele emprego... – Suspirou. – Passei muito tentando conquistar a confiança do patrão, dando o exemplo, trabalhando duro naquele lugar. Em que outro estabelecimento posso trabalhar? Posso tentar aquela pensão do anúncio...
-Ou você pode simplesmente parar com isso. – Helena enxugou o suor da testa com as costas da mão escura. O cabelo estava solto enquanto uma faixa amarrada na cabeça impedia que caíssem sobre seu rosto.
-Arg! – Manda gemeu, frustrada, sentando-se apropriadamente sobre uma rocha consideravelmente seca. – Por que é tão difícil para todos vocês entenderem? Eu preciso trabalhar.
-Por quê? – Sua mãe apoiou as mãos nos quadris, desafiadora.
-Porque... – Inspirou fundo e soprou uma mecha para longe da face. – Porque eu não sei! Só sei que não gosto de ficar parada, seja no cortiço, seja na mansão do papai! Eu gosto de cozinhar, e gosto de me sentir útil. O que mais eu poderia fazer?
Helena abaixou o olhar, constrangida.
Amanda sentia-se absolutamente deslocada em qualquer lugar. Era uma garota solitária á procura de um propósito.
-Arrume algumas amigas. As garotas daqui podem arranjar algum serviço para você. – Sugeriu Helena, apanhando a próxima peça de roupa. – Se quer mesmo viver aqui, então finque raízes. Não importa o que nenhum de nós diz... Você não escuta.
Amanda suspirou, mergulhando o pé na água fria. Observou o trabalho da mãe;
-Falando em fincar raízes... essa camisa é do Sr. Armando?
-É, sim. – Afundou a mesma na água, encharcando-a.
-Desde quando lava roupas para ele?
-Desde que ele me paga para isso.
-Ele está muito interessado na senhora. – Testou Amanda.
-Ele é um bom homem que não tem esposa, por isso me paga para lavar as roupas dele. Mal tem tempo para isso. É um cliente como qualquer outro. - Arrastou o sabão frenéticamente sobre o pano rústico.
-A senhora entendeu o que eu quis dizer.
-Você também. – Olhou a filha com censura.
-Até a vovó têm reparado que ele só vem comprar comida quando vê que você está ajudando a vender.
-Amanda, vá amolar outra pessoa.
-Por que nunca casou? - Perguntou, munida de coragem. - É por causa do meu pai? Estamos aqui há um ano e...
-Vá ver se a sua avó precisa de alguma coisa. - Comandou firmemente. - Agora.
Amanda levantou-se contrariada, levantando a saia simples para não molhá-la e com cuidado saiu do riacho.
Amanda não conseguiu trazer o óbvio á tona antes que sua mãe a interrompesse;
Por que papai também nunca mais se casou.

♧♧♧

Com todo aquele calor, era um verdadeiro alívio que o refresco viesse gelado até ele.
Leonardo sacudiu a camiseta de linho branca, em busca de se refrescar. Estava ensopado de suor por conta do esforço.
-Você fez falta no time. – Admitiu Otávio, bebendo seu próprio suco. – Que bom que voltou.
Leo deu uma grande golada.
-Então aproveitem-me enquanto puderem. – Disse depois de beber. – Logo terei que ir para o campo cuidar do gado, plantações, funcionários... Isso sem contar com minha mãe. Ela começou com uma história de casamento agora que Melissa está quase casada e Luísa conseguiu um namoradinho.
-Adeus saias leves. – Riu Otávio.
Observaram os preparativos para a partida de críquete enquanto refrescavam-se por um momento.
-Fui naquela pocilga enquanto você esteve fora. Sua mulata não trabalha mais lá.
-Como é? – Leonardo parou de beber imediatamente. – Para onde ela foi?
-E como é que eu vou saber? - Otávio deu de ombros. – Fiquei de olho nela, não espionei.
-Droga.
-Eu disse que não conseguiria aquela ali... Deve estar nos braços daquele ganso gordo agora.
-Não... - Recusou-se a acreditar. - Ela complementa a renda com trabalhos também. Caso contrário não teria ficado naquele buraco.
-De qualquer modo, você ficou a ver navios.
-Ainda não, meu amigo. A batalha foi perdida, não a guerra. A cidade é grande mas não tanto. Onde uma moça como ela procuraria e receberia emprego?
-Não sei. Lavadeira, mulher da vida, atendente...
-Isso mesmo. - Dedilhou a bancada do pequeno bar elegante atrás de si, distraidamente. - A parte da atendente, é claro. Vamos ficar de olho nos anúncios de trabalho.
-Tive uma idéia melhor... - Otávio arregalou os olhos, simulando ter uma ideia estupenda. - Coloque você um anúncio! Diga que a Mansão Albuquerque precisa de uma empregada! Assim ela vai estar á passos de distância!
-Pare com isso.
-Você está sendo ridículo. Nenhuma mulata vale tudo isso. Se está sentindo tanta falta assim de companhia feminina, posso indicar um bom bordel.
-As donzelas aí! – Gritou Carlos, do campo. – Vão demorar muito? Eu tenho outros compromissos, sabiam?

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—Você me parece bem melhor do que horas atrás... – Comentou Luísa jogando dados com a irmã.
-Aconteceu um revés delicioso. - Comentou com humor leve.

Luísa ergueu as sobrancelhas, instigando-a a continuar;
-Que seria?
-Carolina Castro me humilhou e me expôs de um modo degradante. – Luísa a encarou, alarmada. – Contudo, Henrique viu como sua pobre noiva está arrasada e está mais convencido ainda de que sou uma vítima digna de todos os cuidados. – Jogou as peças sobre o tabuleiro, provocando um ruído contra a madeira. – Carolina nunca mais vai ficar em meu caminho. E Júlia não será a dama mais famosa de São Paulo em breve. Quando eu voltar para a cidade casada, as atenções serão minhas novamente, e ela vai se resignar em retornar para a própria insignificância. Quanto a Henrique, vou tratá-lo sempre muito bem, e logo ele vai estar tão afeiçoado que não me negará nada.
Lu afastou a pequena franja da testa.
-O que você quis dizer com degradante?
Melissa ergueu uma sobrancelha de leve, diante da pergunta feita em tom sério e preocupado.
-Irmãzinha, tudo é muito recente. Outro dia, em outro momento, vou me sentir bem o suficiente para dar todos os detalhes. Não se preocupe.
♧♧♧
Amanda avaliou as propostas de emprego atentamente.
A probabilidade de aceitarem uma jovem de pele escura em um restaurante ou confeitaria de requinte era quase nula. Trabalhar em bares estava fora de cogitação. A única coisa boa de sua demissão era livrar-se do homem que a assediara. Ser funcionária de um local que poderiam conter homens como ele era algo que ela não se sentia á vontade para descobrir. Ninguém de sua família sabia sobre aquilo. Simplesmente acreditavam que havia sido despedida.
O único lugar respeitável que não poderia se dar ao luxo de rejeitá-la era uma pequena pensão em uma rua paulista próxima. Mesmo assim, ela analisaria o local também. Era uma moça solteira com muito tempo livre, disposição e determinação. Ou ao menos era assim que se via. Nas primeiras semanas no cortiço, ficara absurdamente perdida e levara tempo até aprender tarefas pesadas de limpeza e culinária. Coisas que não precisava realizar quando vivia como uma filha de marquês.
Ilegítima, é claro.