PS: talvez eu seja diferente

A primeira vez que gostei das palavras


Ah, as palavras.

A princípio, inofensivas. Fáceis, aos literatos de nascença. Para mim, um menino camponês, tímido, e completamente diferente das outras crianças, as palavras sempre representaram o que de pior tem o ser humano.

Eu nunca soube exatamente como deveria me comportar diante das pessoas. O que dizer, o que não dizer, como dizer ou como desdizer. Qualquer coisa, mesmo um olhar, ou um passo, era o suficiente para os meus colegas de escola implicarem comigo. Ou até dentro de casa, com meus irmãos e minha mãe rabugenta.

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Então, quando o senhor Phillips fez questão de me chamar para ler aquela poesia ridícula em voz alta, e, é claro, de pé, eu só queria um buraco para onde me jogar e fugir pela vida eterna. No entanto, já que se tratava de um sonho impossível, levantei-me. Olhei para todos os alunos, um a um, temendo, ou talvez prevendo, o que fossem me dizer. Por sorte, havíamos recebido uma aluna nova. Ela sorriu pra mim e roubou a minha fala muda. Interpretou com tanto amor, com tanto fervor, que me deu até vontade de gostar das palavras do mesmo modo que Anne gostava.

― Pensei ter pedido para o senhor Mackenzie recitar o poema ― o abominável professor Phillips interrompeu minha nova amiga, no mais nojento dos sarcasmos ― Por acaso você se chama Cole Mackenzie?

Anne enfezou a cara.

― Foi o que pensei ― ele continuou, e então sorriu forçosamente em minha direção ― Por favor, recite.

― E-E-Eu so-sou aquele que… que…

― Perdão, creio não ter entendido… Pode recitar em nossa língua agora?

O comentário do senhor Phillips arrancou risadas de toda a classe. Exceto das três únicas almas que certamente se salvariam para o paraíso. Diana, a filha de um dos homens mais importantes de Avonlea; Anne, a ex-órfã mais dramática do mundo; e Gilbert, o único menino que não costuma agir como os outros meninos que conheço.

Só esses três. Somente esses três sentiram raiva daquela situação humilhante. Diana fuzilou o nosso professor com o olhar. Anne chegou a posicionar-se diante dele, pronta para dar alguma boa resposta. Mas aí, Gilbert roubou-lhe a fala:

― Engraçado. A língua de Cole parece mais interessante do que a sua, professor. ― e então, devolvendo o sarcasmo ao senhor Phillips, Gilbert virou-se pra mim ― Continue, Cole. Você estava para dizer que você era o quê?

Acho que foi a primeira vez que gostei de ter me aproximado das palavras. Não pela sonoridade ou construção frasal. Mas por terem saído de Gilbert, e por ele ainda se importar comigo, mesmo depois de eu ter parado de correr atrás de nossa amizade.

De repente, comecei a pensar que meu nome soava muito melhor quando surgia pelas cordas vocais dele. Não era o “Cole” raivoso da minha mãe; não era o “Cole” desprezível do senhor Phillips; e muito menos o “Cole” humilhante dos meninos que implicavam comigo. Era só o “Cole” verdadeiro. O “Cole” que parecia mais comigo. Simples e comum. Apenas Cole. O “Cole” de um velho amigo que sentia saudades de brincar no quintal e de jogar bolas de neve no período natalino.

Depois de tê-lo ouvido falar meu nome desse jeito, consegui terminar a leitura do poema. Recebi três aplausos. Anne, Diana e, é claro, Gilbert. Os demais só sentiram raiva porque viram que eu consegui. Mas não é como se eu ligasse. Por mim, eu ficava eternamente lá. Lendo poemas atrás de poemas, só para me perder naqueles olhos cor de esmeralda.