Servitutem

Casados na maldição


A informação era tão densa, que Shino desistiu de tentar processá-la. Era um homem prático, preferiu focar nas prioridades. E uma delas era cuidar do garoto-shifter. Com cuidado, tanto pelas mãos queimadas e pulso ferido, quanto pela fragilidade alheia, o pegou nos braços e o levou para o quarto de Shibi, onde o colocou sobre a cama.

— Onde estão suas roupas? — perguntou.

— Não tenho. Faz tempo que estou na forma shifter…

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Shino suspirou, resignado. Foi até o próprio quarto e vasculhou em suas coisas. Pegou uma das camisetas, que por sinal era como todas as que usava: um número grande. E encontrou um short velho de quando era mais jovem. Aproveitou para passar unguento nas mãos feridas e cobrir as palmas com gaze, para que pudesse movê-las com mais liberdade. Também tratou da mordida no pulso que já tinha parado de sangrar.

Ao voltar para o quarto, parou alguns segundos sob o batente da porta, reorganizando a mente. A história sobre a maldição e a coleira era de arrepiar. Precisava tomar cuidado com as palavras; pois, se fosse verdade, estaria fazendo Kiba agir contra a vontade sem querer!

— Posso ajudá-lo a se trocar? — perguntou ainda no mesmo lugar — Ou prefere recuperar um pouco do chacra e se vestir sozinho?

Kiba virou o rosto na direção dele, analisando a situação. Claramente não esperava uma oferta daquelas e não soube como reagir nos primeiros instantes.

— Pode me ajudar — cedeu — Seus insetos acabaram com a minha energia, cara. Tenha piedade da próxima vez!

Enquanto entrava no quarto, Shino respirou muito fundo para poder segurar a resposta que veio a ponta da língua. Ao invés de prolongar a discussão foi tirar o casaco que cobria Kiba e vesti-lo, tendo que fazer tudo basicamente sozinho já que o outro mal conseguia se mover. Tentou o possível para agir de modo delicado e sem afetação. A situação era constrangedora por si só. Desse modo notou que a pele do pescoço dele tinha marcas de queimadura similares às da palma de suas mãos. Precisaria passar pomada para tratar do ferimento.

— Vou preparar alguma coisa pra você comer. Depois conversaremos melhor — não era como se pudesse cumprir sua intenção inicial de jogar o shifter na rua. Ainda mais naquelas condições. Tampouco temia algum tipo de ataque ou agressão.

Kiba não disse nada. Apenas assistiu o mago levantar-se e caminhar até a porta.

Como se lembrasse de algo, Shino virou-se e o analisou por breves segundos.

— Não precisa segurar o choro. Mesmo se for de raiva contra mim, pode deixar as lágrimas rolarem — disse e saiu do quarto, sem querer comprovar se sua sugestão/ordem seria seguida ou não.

Foi direto para a cozinha. Não tinha muita coisa na geladeira, já que passou um tempo significativo viajando. Então resolveu procurar na estufa se ainda tinha algum legume elfico não devorado pelo invasor. Encontrou alguns rabanetes, batatas e cenouras. O suficiente para preparar oden com o tofu e os ovos que restavam na geladeira.

Descascou os alimentos e os colocou para cozinhar com uma sensação tão estranha, como se estivesse em algum tipo de sonho ou pesadelo, que só desapareceu quando ele pegou o celular e o colocou em um suporte sobre a mesa, discando para Ino em seguida.

— Yo!! — a mulher soou animada assim que a vídeo chamada foi atendida. Sorria tanto com os lábios quanto com os olhos — Tudo bem, Shino?

— Não tão bem quanto eu gostaria — o rapaz respondeu sucinto

— Ah! Acredito que encontrou o Kiba. Eu tentei entrar em contato com você, mas seu celular deu indisponível. Imaginei que estava em viagem, por isso tomei a liberdade de dizer o ponto fraco da sua barreira para deixá-lo entrar. Não fique bravo — ela fez uma careta tentando evitar uma possível bronca.

— Ponto fraco? — a revelação chamou a atenção de Shino, porém ele recuperou o foco em seguida — Sim, seu amigo chegou aqui. Foi uma surpresa.

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O sorriso de Ino aumentou.

— Nessa forma física ele não vai conseguir te explicar tudo. Só o abrigue por um tempo, por favor. Até as coisas se acalmarem. Sei que Tokyo é muito quente, vai ser sofrido pra ele. Quando for seguro eu aviso vocês. Ele dorme no quintal mesmo, Kiba já está acostumado. Fora isso, minha única recomendação é que evite emanar chacra na coleira — foi dizendo rápido, quase sem parar para tomar fôlego.

Ao final do discurso, Shino recostou-se na cadeira.

— Tarde demais. Eu não sabia de nada e tentei abrir a coleira com a minha energia.

— Ah, tranquilo. Isso não... — então Ino parou de sorrir e olhou com atenção para a câmera do celular — Puta que pariu, Shino!

— Eu sei…

— Vocês estão bem? Ativou a maldição? E o Kiba?

Shino notou a preocupação tomar conta da face de Ino. A conhecia tempo o bastante para saber que ela não brincaria com um assunto sério. E se ela falava da tal maldição, então havia grande chance de tudo ser verídico.

— Kiba disse que ativou. Mas não conversamos ainda… tudo acabou de acontecer. Ino…? — terminou a frase com uma pergunta implícita no ar.

A mulher desviou os olhos e silenciou por longos segundos. Sem olhar para o mago, lançou:

— Você… não fez de propósito, não é?

Shino sentiu todo o sangue fugir de seu rosto, tornando a pele pálida quase translúcida. Fazer de propósito? Ativar um feitiço chamado de “Maldição da Escravidão”? Ele?

A reação foi espontânea e honesta o bastante, a resposta perfeita que Ino esperava.

— Me desculpa por ter perguntado, Shino. Sou eu quem vai se explicar com Tsume-san depois de prometer que o filho dela estaria seguro. Isso complicou demais a situação…

— Você vai me explicar o que está acontecendo?

Antes que Ino respondesse, a panela em que cozinhava o oden começou a ferver e apitou avisando que chegara ao ponto. Ele levantou-se para ver se os legumes já estavam cozidos o suficiente, a amiga pegou a brecha.

— Creio que Kiba pode te explicar melhor e com detalhes — disse para a câmera do celular que agora gravava apenas a cozinha, já que Shino levantou-se da cadeira — Precisa de alguma coisa?

— Legumes elficos. Sei que você não trabalha com produtos elficos, mas…

— Eles são ótimos para recuperação. Considere feito.

— E uma colmeia hipossuficiente para cultivar novos insetos. A priore é isso. Depois que eu ouvir tudo sobre essa história entro em contato de novo.

— Combinado. Sinto muito por essa confusão, eu devia ter esperado antes de mandar o Kiba até você, mas o caçador estava na cola dele — ela sorriu uma última vez, um gesto de tristeza, ao desligar.

Shino concentrou-se na refeição. Não era homem de se torturar com curiosidades quando sabia que estava a um passo de ter respostas, embora não negasse que o inusitado da situação trazia dúvidas irritantes para sua mente.

Desligou o fogo e pegou uma tigela com a qual encheu do caldo que cheirava bem. Seria ótimo se tivesse alguma carne para oferecer, mas Shino era vegetariano, além de ter estado fora de casa. Aquilo teria que ser suficiente.

Foi para o quarto do pai, dormitório que ficava no andar de cima e entrou no quarto sem bater. Notou que Kiba agora estava sentado na cama, com as costas apoiadas na cabeceira. Assim que entrou, Shino sentiu uma emanação fraquinha de chacra, algo… inexplicável! Indicava cansaço, raiva, medo e ansiedade… sendo que nenhum daqueles sentimentos reconheceu como dele próprio.

— É o caralho do vínculo — Kiba explicou sem parar de observar a janela fechada — A Coleira uniu a gente, você vai conseguir sentir o que eu sinto. Mas eu não consigo sentir você. Porque você é a porra do dono e tem muitos direitos!

Virou-se para Shino, porém evitando olhar nos olhos dele, rancor emanando em ondas. Apesar disso, o mago avançou colocando a refeição em evidência. Tanto a visão quanto o cheiro agradável agiram sobre Kiba, que relaxou naturalmente. Todos os sentimentos ruins foram substituídos por animação e estonteou Shino.

— Oba! Faz tipo um milhão de anos que eu não como feito gente! — sorriu quando Shino lhe estendeu a louça.

— Precisa de ajuda para comer?

— Não cara! Você sentiu que meu chacra voltou um pouco, né? Consigo segurar a colher! — soou aliviado, pois o talher seria bem mais fácil de manusear do que um par de hashi.

Shino meneou a cabeça, teve apenas o gesto cuidadoso de colocar um travesseiro sobre o colo de Kiba, para que ele apoiasse a tigela e não se queimasse.

A cena seguinte trouxe espanto: não esperava que o garoto atacasse a comida com tamanha voracidade! Kiba enchia a colher e levava até os lábios, mastigando como se não houvesse amanhã!

— Gostoso — ele disse entre uma mastigada e outra, aproveitando para passar as costas da mão na boca e limpar um pouco do caldo que escorreu.

Shino assistiu por mais algum tempo, até o oden estar pela metade, embora o ímpeto com o qual comesse não houvesse diminuído nada. Só então resolveu começar a conversa.

— Sente-se melhor?

— Claro — Kiba respondeu de boca cheia — Isso tá bom pra caralho! E é élfico, né? Já sinto meu chacra fortalecendo mais rápido.

— Hn. Podemos conversar agora? — perguntou. Estava tendo o cuidado de transformar todas as suas frases em questões, para não acabar dando uma “ordem” sem querer. Kiba pareceu dar-se conta desse fato, pois ergueu a cabeça e correspondeu ao contato visual do qual esteve fugindo.

— Podemos — ele respondeu movendo-se de leve.

— Você quer me contar sua história? — incentivou.

— Não — Kiba respondeu com simplicidade.

Okay. Shino não previu a negativa vindo. Perdeu um pouco da reação, apenas assistindo enquanto o shifter pegava um pedaço de cenoura e mastigava com calma. Depois foi a vez de um naco de batata, degustando com igual calma. Por fim, o garoto levou a vasilha aos lábios e deu um generoso gole no caldo agora morno. E então, para nova surpresa de Shino, ele riu.

— Desculpa! — pediu dando risinhos — Você me faz perguntas e eu não sinto obrigação de responder! Não é como se eu recebesse uma ordem sua. Pude dizer “não” normal. Eu tava só testando. Vou te contar minha história.

Shino entendeu o ponto. Sentiu alívio por não estar impondo sua vontade sobre outro ainda que sem querer.

— Sou todo ouvidos. Eu não esperava chegar de viagem e ser recepcionado por tudo o que aconteceu.

— Não é grande coisa — ele respondeu — Tem alguns homens que usam shifters como cães de caça. E um deles tentou me prender com a Maldição de Escravidão. Ele é um idiota, porque eu sou um Pastor-da-Mantiqueira. Minha raça não caça, a gente é mais pra pastoreiro.

O mago aquiesceu. Sabia de acordos entre humanos e criaturas sobrenaturais, com algo de simbiótico, onde havia vantagens para ambos os lados.

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— Então esse caçador…?

— Ele não é o único. De vez em quando aparece um ou outro no Pack querendo roubar um shifter. Dai a gente bota pra correr. Mas dessa vez era um homem que jogou sujo, usou filhotes como isca — falou tomando o restinho do caldo — Ainda tenho fome…

Entendeu a tigela para Shino que entendeu o recado e foi buscar mais comida.

Assim que voltou e acomodou-se na cama estendeu a segunda rodada para o garoto.

— Então você caiu na armadilha…?

— Sim. Ele conseguiu colocar essa porra de coleira! E eu fugi antes que irradiasse o chacra e virasse meu dono. Tenho fugido desde então, sem poder mudar de forma, porque eu fiquei com medo de que o meu próprio chacra fizesse esse cacete de coleira “ligar”. No interior é mais fácil de me esconder. Aqui na cidade é dureza, as pessoas não estão acostumadas com cães de rua, não tem comida e tá muito quente. Os funcionários da prefeitura tentaram me pegar um monte de vezes… na forma animal foi uma missão impossível entrar em contato com a Ino. Daí ela me mandou pra cá e eu tive paz por uns dias…

Terminou o longo discurso brincando distraído com o oden.

A visão penalizou Shino. Olhava para alguém que passou por poucas e boas. E por culpa de uma comunicação equivocada, acabou em situação pior do que a que estava quando chegou ali na esperança de encontrar ajuda.

— Sinto muito — se ouviu dizendo com sinceridade — Conheço algumas coleiras sobrenaturais, mas é a primeira vez que vejo uma através de maldição. Não a ativei de propósito. Não quero que seja escravo, você é livre para partir quando quiser.

— Não posso — Kiba falou baixinho — Não posso sair do perímetro do seu chacra. A Maldição me impede.

O mago precisou de alguns segundos para compreender a frase, sem conseguir.

— O quê?

Kiba abaixou um pouco a cabeça, permitindo que a franja ocultasse parte de seu rosto. Ainda assim, Shino viu gotas de lágrimas caindo sorrateiras e desaparecendo no caldo do oden.

— Eu não posso sair de perto de você. Minha liberdade acabou!

Shino sentiu tristeza e decepção fluindo pelo vínculo. A sensação real e trágica despedaçou-lhe o coração. Foi arrasador acompanhar o sofrimento e a desesperança do garoto.

— Prometo que vou encontrar um jeito de abrir essa coleira. Não deve ser impossível. E…

— Só tem um jeito — Kiba ergueu a cabeça e fitou Shino com os olhos marejados — Isso é magia negra, uma maldição que entrelaça chacras! Esqueça.

— Mas… esse único jeito…? Podemos...

— É a morte — o shifter devolveu a vasilha com um restinho de caldo e deixou o corpo cansado deslizar de volta para o colchão. De repente sentiu-se exausto — Se eu morrer ou você morrer, a maldição acaba. Antes disso, estamos unidos para sempre.