Oblivion

Capítulo quatro, ano um


Parecia um dia como outro qualquer, como tinham sido os outros dias quaisquer de meu nascimento até os meus atuais vinte e dois anos.

O despertador toca religiosamente às cinco da manhã. São exatas oito vibradas que acionam o modo zumbi de vida: resmungar, desligar o despertador, esfregar os olhos e tomar coragem. Passo final: sentar na beirada da cama por ao menos dez minutos. Lembrete importante: olhar para o nada e pensar sobre tudo.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Desperto do torpor com Chantilily pulando na cama e ronronando ao se esfregar em mim. Pego-a pela barriga e a aninho nos meus braços, gesto esse que ela parece apreciar.

— Bom dia, querida — sussurro. — Me deseje um bom dia hoje.

Em resposta, ela solta um miado baixo. Penso em ficar aqui o dia inteiro, fazendo carinho na minha gata e assistindo How I Met Your Mother pela enésima vez. Mas então me lembro de Adrien. Doce Adrien Thomas, cachos rebeldes e um sorriso brilhante.

Solto um suspiro cansado e parto em direção ao banheiro, tendo o cuidado de não acordar Pietr no meio do processo. Tomo um banho rápido e encaro meu reflexo no espelho, juntamente ao vestido azul que meu irmão sugerira. Nego com a cabeça para mim mesma – eu já trabalhava com um vestido azul todos os dias, a minha cota já fora ultrapassada. Opto por uma jardineira confortável e prática, uma sapatilha preta e camiseta preta com estampa de flores brancas e lilás. Dois minutos depois, pensei estar muito infantil. Contudo, dois minutos a mais me fizeram ponderar:

— Irei com um garoto bonito para uma loja de doces. Isso merece uma jardineira. Além disso, eu lavei o cabelo e agora ele está cheirando a coco. Não se lava um cabelo para qualquer um.

Meu reflexo pareceu concordar. Revirei os olhos para mim mesma.

— E é claro que eu estou falando sozinha às seis da manhã — murmuro, me sentindo ridícula.

Jogo qualquer maquiagem na bolsa e ajeito as cobertas de Pietr antes de descer para a garagem. Giro a chave de ignição e, enquanto espero o carro esquentar, conecto o celular à caixinha de som e coloco a playlist no modo aleatório. E então, Marina Diamandis canta para mim “I am not a Robot”. Sorrio e aguardo.

Me deleito com o ronco dos motores. O estampido do Chevy II é uma orquestra sinfônica para mim. Pietr o chama de O Carro. Foi o último presente de aniversário que recebi de meus pais, quando completei dezesseis anos e tirei a carteira de motorista.

Eu já dirigia desde os quatorze – não façam isso em casa, crianças! É burlar a lei – mas não tinha um carro para chamar de meu. Eu também nunca gostei de utilizar qualquer dinheiro de meus pais para caprichos meus, mas, ao que parece, Pietr os convenceu a me dar um carro antigo reformado. Suponho que eles tenham gastado uma fortuna para reformar um carro de 1967, mas se há uma piada que flui como água é como os Benoit tranquilamente usariam uma nota de cinquenta pratas para limpar-se após o uso da toalete. Se é que me entendem. Como era um Chevy II, aceitei. Mas foi a última coisa que aceitei advinda deles. E então comecei a trabalhar.

Pode parecer que estou apenas fazendo drama para você que lê este relato, mas garanto que eles são assim. Se há uma coisa que eu aprendi é que você não deve ser obrigado a amar alguém por ter laços de sangue com esta pessoa. As pessoas passam tempo demais tentando agradar a quem sequer as quer bem. Família é quem está aqui para nós quando mais precisamos. E a minha família é constituída de Pietr, Chantilily, Marla e Joelle. Eu não sou um robô – convenientemente seguindo a música – programado para amar. Amor se conquista. E não houve conquista desde... bem, desde 1994.

De qualquer maneira, aproveito a viagem para apreciar minha própria companhia. Não há qualquer modo de negar que dirigir é uma de minhas paixões mais vitais. Eu sinto falta de disputar corridas com alguns dos contatos de Marla – novamente, não façam isso em casa – mas a vida já assumiu sua própria corrida e lazer é um dos luxos aos quais eu não quero ceder.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Algum tempo depois, estaciono o carro e troco minha confortável jardineira por aquele vestido retrô que eu, sinceramente, desconheço a utilidade. Sinto o cheiro dos doces sendo pré-preparados e sei que Marla já chegou, por morar perto, na parte leste de Fredericksburg.

Joelle também mora em Fredericksburg, mas a sul. Ela e Marla vão juntas na volta, no carro da segunda, pois o primo de Joelle leciona em uma escola perto de Cedar Valley e sempre a oferece uma carona. Aos sábados, toma uma condução e após o trabalho faz sabe-se lá o universo o quê. Joelle chega a ser tão sombria que provavelmente suga a alma de criancinhas indefesas (nunca se sabe...).

Adentro a lanchonete e me deparo com Marla com o notebook apoiado em uma das mesas, concentrada em alguma partida. Ela apresenta a testa franzida e uma parcela da língua para fora, posição essa que me provoca uma risada abafada.

— Bom dia, Vietnã — entoo ao estilo Robin Williams. Sento-me ao lado dela e fico apenas observando seu desempenho em League of Legends. — Não vai me cumprimentar?

— Não dá. Em breve.

— Pausa aí, então.

— Não se pausa jogo online, Benoit — ralha ela. — Paciência.

Reviro os olhos e caminho até os fornos, inspirando o cheiro delicioso de cookies. Dentro de poucos minutos, ouço o entoar de “Vitória!” proveniente de seu canto. Sorrio, com o canto da boca.

— Desculpe — canta ela, como um passarinho. — Estou recentemente em prata e não vou deixar nenhum marmanjo me ultrapassar nas ranqueadas. Eu não iria poder fazer isso hoje à tarde, já que irei fazer outro teste para baterista numa girlband.

— Uau, Mar, isso é incrível! Onde será?

— Em Austin, seu país — brincou ela, e eu ri. — A banda chama The Bats.

— Ah, só pode estar de brincadeira — ergui uma sobrancelha, ao mesmo tempo que o timer apitou indicando que os cookies estavam prontos. Peguei um pano para abrir o forno e retirei a forma. — The Bats em Gotham City? Isso não é um pouco...?

— É, eu sei, eu sei. Mas é melhor do que nada, você não concorda?

Assenti com a cabeça e voltei a me sentar a seu lado. A envolvi com um braço e ofereci um cookie para ela, que aceitou com um sorriso maroto.

— Meu primeiro ato como baterista interina será revogar esse nome, muito bem colocado, Lou-Lou — sorriu ela, maldosa para mim. Empurrei-a com o corpo, de brincadeira, o que a fez rir. — Opções muitíssimo bem-pensadas, minha amiga. Poisoned Youth, The Witches Legacy, Whispers of the Night, perfeito!

— É, eu sou mesmo um gênio.

Logo em seguida, Joelle adentrou a lanchonete, retirando o capacete e prendendo seus cabelos pretos e lisos. Piscou para nós e expirou, dramaticamente.

— Mais um dia no trabalho escravo. O que eu perdi?

— Marla está tentando entrar numa banda chamada The Bats.

— E ganhei na ranqueada — completou Marla, num sorriso amarelo.

Joelle fez que iria sair correndo porta afora, o que nos fez gargalhar.

Pelo resto do dia, trocamos piadas, trocamos toalhas de mesa e conversas com os clientes. Trocamos de músicas, e às quatro da tarde trocamos de turno. Aos finais de semana, sr. Jenkins ao menos tinha a humanidade de oferecer a oportunidade para meninas que ainda estudavam. Mas o banheiro ainda ficava conosco – não se pode ter tudo. E eu, particularmente, troquei de roupa para minha linda jardineira.

Marla e Joelle partem para Austin, não sem antes fazer uma piadinha com relação a mim e a Adrien. E então me maquio e espero. Cinco minutos, dez, vinte, trinta minutos. Suspiro e, já contentada de ter levado um bolo, sou surpreendida com uma buzina vinda de uma caminhonete.

Cerro os olhos e vejo Adrien saindo de lá acompanhado de um menino mais novo muito parecido com ele, muito provavelmente um de seus quatro irmãos, este mantendo os braços cruzados e uma expressão fechada. Ergo uma sobrancelha, pontuando o atraso.

— Boa tarde, moça — cumprimenta ele, acenando com a cabeça. — Está esperando alguém? Estou incomodando?

Só pode estar de brincadeira. Isso só podia ser uma brincadeira de mau gosto.

— Sério, Adrien? Eu estou esperando alguém? Eu estou plantada aqui há meia hora.

Ele franze a testa, parecendo transtornado. Olha para o irmão em busca de auxílio, mas tudo que ele faz para ajudar é revirar os olhos.

— Desculpe, eu não...

— Você me pediu para levá-lo até Austin. Para a loja de doces. Então, por obséquio, eu os levo até lá — aponto para os carros. — Queira me acompanhar, sim?

— Olha, eu não sei quanto a você, mas eu estou mais perdido que cego em tiroteio — ele ergue as mãos em sinal de protesto, caminhando lentamente até mim. — Você me deixa tentar explicar o que está acontecendo aqui? Pode ser?

Dou de ombros, assentindo com a cabeça e suavizando um pouco minha postura. Seu irmão pigarreia e dá sua sentença final:

— Eu vou esperar no carro. Aliás, se eu pudesse escolher, eu escolheria ir no Impala.

Sorrio com o elogio, mesmo me sentindo impelida a dizer que era um Chevy, mas como os quatro carros da coleção eram bastante semelhantes, deixei passar batido. Então me volto para Adrien, ainda decepcionada.

— Diga o que tem para dizer.

— Olha, eu acabei de buscar meu irmão na escola. Ele não é lá bom aluno, sábado é dia de repor aulas e de matéria extra.

— Cedar Valley — completei.

— Sim — confirmou ele, hesitante. — Já estudou lá?

— Eu não, meu irmão. E você também me disse. Prossiga.

— Certo... hum, e... algo me disse para vir aqui hoje. Mas tenho a impressão de que cheguei atrasado para o que o destino quis dizer, embora eu não acredite nisso. Então, por favor, me esclareça: de onde exatamente nos conhecemos? Foi da escola, do curso de astronomia, do trabalho...?

Resolvo entrar em seu jogo e sorrio amigavelmente. Procuro detalhes das informações que ele me deu, e “minto” descaradamente.

— Da escola, mas não conversávamos muito. Tínhamos Geometria II juntos. Eu não esperava vê-lo por aqui em Austin... Louna Benoit, se lembra?

— E-eu acho que sim, me perdoe de verdade. Eu não me esqueceria do seu rosto tão facilmente, é claro. Como sabia que eu queria ir à loja de doces?

— Você postou no Facebook — cara, eu sou boa nessas de mentir. — Desculpe se te assustei.

— Sem problemas. Você trabalha aqui?

Faço que sim com a cabeça. Adrien poderia muito bem ser um ator, e não um astrônomo como bem comentara. Eu não sei se ele está fazendo um joguinho porque o irmão está aqui, eu... simplesmente não sei. Eu não faço ideia do que está acontecendo, mas que isso não me agrada é fato.

Caminhamos até os carros, e Adrien sorriu uma vez mais, sem-graça.

— Me perdoe por Caleb, ele é muito metido a impressionista, principalmente com garotas.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Pare de pedir desculpas, Adrien — destravo o carro, e ele me acompanha. — Só... fique quieto e dirija. Combinado?

— Isso não é uma música da Rihanna, Donna Sheridan?

Arqueio as sobrancelhas e entro n’O Carro, girando a chave de ignição. Adrien dá meia volta e apoia-se com os cotovelos na janela do motorista – eu! – e sorri com o canto da boca.

— Você me pegou, Sam Carmichael. É pela jardineira?

— É com certeza pela jardineira — ele ri deliberadamente e se senta em seu próprio carro, me acompanhando. Sua caminhonete não exibe um som tão interessante quanto um carrão, mas o ato foi tão gracioso que me fez sorrir junto. — Se importa se eu deixar essa mala em casa primeiro?

— Claro que não. Me mostra o caminho.

Adrien assente com a cabeça e dá partida no carro, guiando-me para Gotham City.

A noite será longa...