Oblivion

Capítulo 2, ano um


Eu, de fato, volto ao Cedar Valley. Mas não no dia seguinte.

Proponho um desafio a vocês, se vocês já não o cumprem. (E se o cumprem, sinto muitíssimo. Sei o que passam e ofereço meus sinceros pêsames)

Fique frente a frente com a pessoa que ama. E finja que não sonha com ela. Finja que não tem nenhuma pista dela. Finja basicamente que você é normal. Porque se ela souber que sente todo esse caminhão de sentimentos por ela, você tem duas opções:

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

a) ela corresponderá, provando-se tão louca quanto você ou

b) fugirá de você, porque, sinceramente, você só pode ter problemas mentais.

Para este tipo de situação, costumo aplicar o método do Gato de Schrödinger. Caso não o conheça, eis aqui uma humilde explicação: um gato está vivo e morto ao mesmo tempo dentro de uma caixa (calma, espere o final). Como? Partículas subatômicas. Se elas circularem pela caixa, o gato morre. Se não, ele vive. Não vou entrar na análise subatômica da teoria. Sei que nem todos são de exatas, então pouparei vocês dessa análise maluca.

Pois bem. A questão é: o risco está ali, correndo e espreitando. À primeira oportunidade, se eu permitir, Louna morre para mim. Se eu tiver sorte, Louna permanecerá viva. Ao menos eu teria sua memória. E memórias se tornam histórias, quando nos esquecemos delas.

Como eu sei que Louna tende mais para a versão B do que a A? Pela maneira que me olhava ontem. Com pena. Vou dar uma dica para vocês: pena é o pior sentimento a se sentir por alguém. Não estou dizendo a você como se sentir, é claro, mas tente converter a pena em, sei lá, tristeza, ou empatia, até ódio.

Uma coisa nisso tudo é certa: o universo não está ao meu favor, por mais que eu o ame com fervor. Mas, quem saiba, o tempo esteja. Estou disposto a esperar, mas temo que o destino também esteja brincando comigo.

Os nórdicos antigos tinham um lema, que diz que o destino é inexorável.

Espero que valha a pena a espera.

Creio que eu deva fazer uma apresentação decente. Vou começar com os pormenores de minha existência.

A história se inicia 24 anos atrás, lá para o meio de abril de 1991 (sou excelente com cálculos, mas confesso que calcular com precisão quando meus pais me “conceberam”, por assim dizer, é um pouco demais). Nove meses depois, dei as caras por aqui, o que não deixou exatamente todos felizes. Maisie Thomas – também conhecida como minha mãe, May ou, quando engravidou, vagabunda, puta, irresponsável e oferecida. E eu, Adrien, fiquei popularmente conhecido pelo meu apelido mais carinhoso: bastardo.

Mamãe tinha 17 anos quando engravidou. Era uma cantora famosa, e eu e meu irmão Caleb ainda temos o privilégio de ouvi-la cantarolar pelos cantos da casa de vez em quando. Tem uma foto sua empoleirada em algum álbum antigo, e sempre tento figurá-la na minha mãe, mas é impossível. Não consigo enxergar a garota de cachos dourados e olhos verdes reluzentes na enfermeira de olhos cansados.

De qualquer maneira, agradeço que hoje em dia as mulheres estejam tendo mais liberdade para denunciar seus estupradores, pois isso aconteceu com a minha mãe. Não uma, mas duas vezes. Caleb veio oito anos depois. Enquanto Maisie Thomas era a puta, meu pai (eu deveria mesmo chamá-lo assim? Progenitor me parece tão mais certo) continuou como produtor de discos, arrisco a dizer que depois disso tenha ficado ainda mais famoso. E eu tenho certeza que, se ele já não tivesse falecido há uns cinco anos – os noticiários só falavam disso na época – Caleb e eu já teríamos feito justiça com as nossas mãos, por mais moralmente errado que isso seja.

Morávamos em Fort Worth até a morte do meu... pai. Quando isso aconteceu, mamãe ficou assombrada pelo passado e insistiu em transformar tudo abruptamente. Nos mudamos para Fredericksburg e mamãe nos inscreveu em Cedar Valley, onde Caleb frequenta hoje o último ano. Mamãe insistiu para ser chamada de May, conheceu Franz e casou-se com ele quase que de imediato.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Com Franz, vieram também Aimee e Madeline, que hoje estão com 12 e 7 anos respectivamente. E há também a novidade na família: Daisy Lynn, que nasceu há oito meses.

E esta é a história de Adrien Thomas, sua mãe, seu padrasto e seus quatro irmãos. Isso é tudo, pessoal. Podem ir embora.

Ainda estão aqui? Ora, que ótimo! Porque não estamos nem perto do começo.

Franz trabalha como eletricista numa rede terceirizada. O dinheiro é suficiente para sustentar três pessoas, e o dinheiro da enfermagem de mamãe, para mais três. Ou seja, desde que tenho 16 anos ganhei um carro usado e a responsabilidade de cuidar de quatro seres e, de bônus, de mim mesmo. Que presentão, hein?

E então, esse ano, por algum motivo sabe-se lá qual (que, repito, só pode ser o destino dando ótimas risadas da minha cara idiota) Franz recebeu uma promoção e precisamos nos mudar para Austin, onde fica a filial. Além disso, veio Louna.

Recebi Louna no meu sono REM. Assim que fechamos os olhos, o cérebro fica mais vigilante. Há a fase NREM, que compõe 75% do tempo em que dormimos e é caracterizada pelo sono profundo. Após isso, a fase REM ocupa os 25% restantes e preenche o subconsciente com sonhos, bons ou ruins. E um dia, sonhei com Louna Benoit. Nos meus 25% das quatro horas de sono diárias.

Foi um sonho, mas cambaleou entre minha realidade. Li em alguma matéria que é comum incorporarmos elementos reais ao sonho, e vice-versa. É possível manipular sonhos, se você tem um quê de habilidade psicológica – não é meu caso, meu subconsciente parece a casa de um acumulador.

Recebi seu nome, seu endereço, sua família e seu trabalho. E ela estava ali, rindo em meus sonhos, tirando uma com a minha cara. E é claro que eu vim atrás dela. Era conveniente; Caleb estudava em Cedar Valley, eu ia buscá-lo todos os dias. Por que não um pouco de autotortura?

Morar numa capital requer muito custo, como bem comentei há alguns parágrafos. Creio que eu deva adentrar você um pouco mais na família Thomas-Abbott.

Temos uma rotina quase militar de organização em casa. Mamãe e Franz saem para trabalhar cedo. Logo após isso, arrumo Aimee e Maddie. Coloco o desenho que mais as agrade – ultimamente elas estão na vibe de Agente Especial Urso – e saio para levar Caleb à Cedar Valley. Encarrego Aimee de tomar conta de Maddie no ônibus e até hoje não houve incidentes. Quando volto para casa, trabalho (home office é uma bênção para famílias grandes). Por volta de 15h20, parto em busca de Caleb. Quando chego, Aimee e Maddie também já estão lá. Vejo se precisam de ajuda com alguma tarefa escolar – Caleb se oferece para isso quando não posso adiar o trabalho –, preparo o jantar, que geralmente são as sobras do almoço com complemento.

Essa é a parte fácil. Daisy Lynn fica na creche em período integral, e chega junto com mamãe e Franz pontualmente às 20h30. E aí vem a fila para lavar as mãos, todos sentando-se na mesa para comer juntos, tudo dividido em partes meticulosamente calculadas. Depois, a fila para tomar banho e escovar os dentes, do mais novo para o mais velho. Com os dois banheiros, separa-se mamãe, Franz e Daisy Lynn e todo o resto para Caleb e eu. Aimee ajuda Maddie no banho, porque ambas já têm idade para diferenciar o sexo oposto e se envergonharem (amém), e no fim todos estavam prontos para dormir até 23h30. E é claro que sou eu que cuido de Daisy Lynn em suas acordadas madrugais. Fico com pena de mamãe. Devo dizer que sou um paizão e tanto.

No outro dia, tudo se repete.

É claro que é cansativo. Mas não tem jeito, eu amo os pequenos. Mesmo que cuidar deles signifique adiar meus sonhos.

Almejo desde que me conheço por gente ser astrofísico. As histórias de Michael Faraday, Giordano Bruno e Annie Jump Cannon levaram-me a amar as estrelas e a fazer um curso de astronomia básica. E olhe só, trabalho com isso! Meus patrões disseram que se eu fizer a faculdade, me indicariam para a NASA. NASA, consegue imaginar? Mas já faz sete anos que me formei no ensino médio, sete anos sabáticos. Mamãe disse que assim que Aimee alcançar os 16, posso me dedicar à faculdade, mas até lá são cinco anos. Terei 30 a essa altura, e começar uma faculdade aos 30 não é nem um pouco atrativo.

Não estou julgando quem começou uma faculdade aos 30. Ao contrário do que dizem hoje em dia, cada um tem seu tempo. Comparar-se a outra pessoa é a pior coisa que você faz a si mesmo. Você pode começar um projeto novo aos 18, 30, 50..., mas o tempo para mim é sempre o agora. Mamãe sempre diz que quis as coisas para ontem, e é assim mesmo.

Por isso junto dinheiro para, assim que possível, iniciar a faculdade dos meus sonhos. Em conjunto, incluo Louna nos planos, se com o tempo assim ela aceitar. No entanto, tenho um pressentimento de que essa história toda dará mais voltas do que eu gostaria.

Afinal, qual a graça da aplicação do método de Schrödinger sem a emoção da incerteza?