Oblivion

Capítulo um, ano um


“Desde que eu era jovem, eu sabia que te encontraria

Mas o nosso amor era uma canção

Cantada por um cisne morrendo

E na noite, você me ouve chamando

E em seus sonhos, você me vê caindo”

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OBLIVION, M83 feat. Susanne Sandfør

Não há nada novo sob o sol do Texas. Todos os anos temos festivais, temos parques atrativos, temos o rio Colorado... é como dizem, morar numa cidade grande tem seus benefícios e desvantagens. A estadia curta em Austin é ótima, devo admitir. Mas morar aqui? É pedir estresse gratuito.

Quer dizer, além dos morcegos. Estamos na época em que, no final da tarde, um milhão e meio de morcegos saem para se alimentar, e eles fazem o favor de passar em uma das principais avenidas da cidade.

Quer se sentir em Gotham City? Então, bem-vindo a Austin.

Um dos motivos de eu viajar vinte milhas todos os dias para ficar fora de Austin é justamente o fato de a cidade nunca parar. Dirigir é uma de minhas paixões; pego a 290 e quarenta minutos depois estou em Cedar Valley, sã e salva dos pandemônios da capital.

Trabalho num restaurante-lanchonete de beira de estrada. Ele é bem feinho por fora, mas por dentro tem sofás com almofadas confortáveis, Frank Sinatra, Louis Armstrong, Buddy Holly e Michael Bublé tocando o dia inteiro, banheiros com letreiros em neon (que, devo acrescentar, são higiênicos graças a esta que vos fala) e móveis retrô. O lugar cheira a hambúrguer, milk-shake e gasolina, que você aprende a gostar depois de um tempo. Tenho até um crachá com meu nome rabiscado por cima do uniforme azul-céu. Tudo harmonioso.

Recebemos uma quantidade razoável de clientes por dia, e dos mais variados – mochileiros, turistas, jovens rebeldes fugindo de casa, motoqueiros idosos, famílias felizes... não dá tanto dinheiro, mas não é como se eu precisasse de dinheiro.

A questão é: eu sou e não sou uma jovem rebelde fugindo de casa. Por um lado, sou, pois aqui é longe de casa, relativamente falando. Mas por outro, não sou, porque meus pais têm a ciência de onde trabalho. Entretanto, nunca iriam pôr os pés num lugar fuleiro como este.

Fui criada em um ambiente quase rico, de classe média-alta, o qual os jantares frequentados por meus pais eram regados de frutos do mar, comida japonesa, tailandesa, árabe, e por aí vai. Até hoje não vejo graça em comer peixe cru e detesto quibe. Contudo, eu e meu irmão éramos obrigados a tolerar os diversos jantares de negócios. Na primeira oportunidade, eu corria para meus adorados tacos e hambúrgueres. E é por isso também, diga-se de passagem, que Pietr está em forma e eu não.

Enfim.

O trabalho fica menos maçante na companhia de Marla e Joelle. Marla, com seus cabelos loiros e sorriso impecável, sempre dá em cima dos clientes mais jovens e bonitos. Joelle, de ascendência oriental e cabelo escorrido preto, faz piadas infames com os mais velhos e sempre revira os olhos para nosso patrão, o sr. Jenkins – que Joelle apelidou carinhosamente de sr. Jerkins[1]. E eu, geralmente fico aqui, tentando em vão um jeito de tentar enfiar meu cabelo volumoso embaixo de um boné minúsculo, e mudando as músicas periodicamente.

Em meio a nossa rotina, um cliente em especial parece ter aparecido apenas para quebrá-la e sair andando como se nada tivesse acontecido.

É Marla quem o vê primeiro. Como Joelle diria, ela era um ímã de garotos bonitos. Mas Marla está ocupada grelhando hambúrgueres para um casal de universitários, e Joelle bate um milk-shake com o tédio estampado no rosto. Marla aponta com a cabeça para o cliente recém-chegado e em seguida para os hambúrgueres. Entendo o recado. O sr. Jenkins sempre vigia pela câmera se estamos trabalhando – um minuto parada e ele já sai da sala da gerência perguntando se eu não tenho nada de útil a fazer – então caminho até o balcão com o sorriso de praxe estampado no rosto.

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Antes que eu o atenda, como faço com todos os clientes, analiso o seu perfil. Seu rosto está muito concentrado em fingir que está analisando as opções do cardápio, por isso uma linha de expressão marca sua testa franzida. A pele é cor de avelã e os olhos são de um castanho-escuro quase preto. Os cabelos, grandes e cacheados, dão a ele menos idade do que realmente tem. Está usando roupas monocromáticas, todo de preto, o que fez meu eu interior suspirar. Se o garoto olhasse meu guarda-roupa colorido, iria correr para longe. Minha análise se encerra quando ele abaixa o cardápio e ergue o rosto para mim. Em seguida, dá um meio sorriso – este, que se eu não fosse uma pessoa friamente observadora, nunca teria notado.

— Oi. Já decidiu o que vai pedir?

— Ah, eu só tenho dinheiro para uma xícara de café. — diz ele em tom de desculpa. Sua voz é grave e melodiosa. Faço que sim com a cabeça, mas antes que eu me vire para atender o pedido, ele acrescenta: — Um café e uma breve história.

— Uma história? — ergo uma sobrancelha.

— É. Só pelo tempo de o café ficar pronto. Não vou atrapalhar o trabalho assim, certo, hum... Louna? — ele confere o nome no meu crachá.

Ele está certo. Meu trabalho não permite que eu fique jogando conversa fora, mesmo que não hajam clientes, mas sob essas condições posso conversar e preparar um café. assinto com a cabeça para ele seguir em frente.

— Você sabe o meu nome, eu não sei o seu — comento.

— Adrien. Adrien Thomas.

— Muito prazer, Adrien — ofereço um sorriso amigável enquanto coloco a água para ferver. — Você tem viajado?

— Algo do tipo. Na verdade, estou indo para Austin rever minha mãe e encontrar a garota dos meus sonhos.

Rio ironicamente.

— A garota dos seus sonhos em Austin? Só se você tiver fetiche por hippies baladeiras.

— Não, não é conhecer ela — ele cochicha, como se fosse um segredo de importância nacional. — Estou falando de encontrá-la com base nas informações que tenho. Literalmente sonhei com ela.

— Explique melhor.

— Bem, quando algo faltar você sempre pode recriá-lo no buraco que deixaram. Eu sei o seu nome. Sei como é, sei o seu tom de voz, como ri, sei que mora em Austin. Mas não faço ideia de como encontrá-la. Quero dizer, Austin é uma cidade grande, ela pode estar em qualquer lugar. Pode ser que ela more em Austin e trabalhe em outro lugar. Pode ser que eu esteja procurando por alguém que já morreu há quarenta anos.

Olho para Adrien com um olhar indagador, enquanto posiciono o coador no filtro e abro o pote com o pó de café. Ele ri nervosamente.

— Você deve estar me achando louco.

— Um toque de loucura é sempre bom para fugir da monotonia do normal — sorrio gentilmente. — A propósito, como gosta do café?

— Forte e doce.

— Forte e doce — brinco com as palavras. — Então você tem sonhos proféticos?

— Eu não diria sonhos proféticos — Adrien torce o nariz. — Não acredito nisso. No máximo, uma premonição. Eu acredito em destino, mas também sei que ele pode ser cruel às vezes. Ele deixa migalhas, e nesse caso... acho que me contento com migalhas.

— E o que acontece se você não encontrar a garota que procura?

Adrien dá de ombros e fica alguns momentos em silêncio, tempo suficiente para eu terminar seu café. Adrien me comove; não sei de onde vem, mas se está indo a Austin tem um futuro garantido. Digo isso a ele enquanto ofereço a xícara.

— Ao menos, minha família está lá. Não é como se eu esteja ao relento — brinca ele em meio a um gole. — Tenho quatro irmãos e os morcegos. Não dá para ficar entediado.

— Quatro irmãos!

— Quatro irmãos — repete ele. — Mas só dois são da minha mãe. Minhas irmãs são filhas do meu padrasto. Você tem irmãos?

— Um. Gêmeo.

Ele faz uma cara engraçada. Temo estar conversando demais, então olho para trás com apreensão, para Marla e Joelle, mas as duas estão lançando olhares maliciosos para nós. Apenas reviro os olhos e volto o olhar para Adrien.

— Parecidos?

— Nem um pouco. Ele é ruivo e alto.

— Imagino que as sardas são conjuntas.

— É, mas eu não gosto muito delas — levo a mão ao rosto, como se pudesse escondê-las. Ou para esconder o rubor que sempre sobe quando alguém fala de qualquer característica minha.

— Também não gosto disso — ele puxou a manga da jaqueta para cima, exibindo uma cicatriz que brilhava em toda a extensão de seu antebraço. Contrastava com sua pele morena. Adrien voltou a manga para baixo. — Mas é parte de quem sou. Você não seria Louna sem sardas.

— Faz sentido.

— Claro que faz — diz Adrien, piscando um olho para mim de brincadeira, o que me faz rir. — Bem, não quero tirar mais do seu tempo. Você provavelmente tem um chefe maluco que te escraviza em segredo.

Dou de ombros. Em outras situações, num filme de romance talvez, eu largaria tudo para trás, e fugiria com esse desconhecido mundo afora, como um dos jovens rebeldes que passam por aqui de vez em quando. Mas não estou num filme. Aqui é o limite da minha realidade, e preciso continuar aqui se eu quiser permanecer humana.

— Obrigado pelo café e pela conversa — ele coloca o dinheiro contado em cima do balcão. — Cedar Valley é pequena e confortável. Voltarei mais vezes.

— Me mantenha atualizada com a garota misteriosa.

Ele ri antes de se levantar e deixar o restaurante-lanchonete. Antes que eu possa sequer processar a informação, Marla encosta a cabeça em meu ombro e cantarola:

— A tigresa está mostrando as garrinhas.

— Rawwwrr — Joelle se junta ao coro.

— Ora, parem vocês duas — reviro os olhos. — Marla, ele é todo seu.

— Ah, deixe um para você. Eu não sou tão assim. — Marla observa os poucos clientes no café, talvez refletindo antes de verificar os banheiros.

— Sim, você é sim. Mas não há nada de errado nisso, você é solteira. Não, a questão não é a beleza. O garoto é doidinho.

O garoto tem nome? — Joelle abre um sorriso malicioso. — Ouvi ele dizer que vai voltar mais vezes.

— Adrien. E não é bonito ouvir a conversa dos outros.

As duas trocam um olhar cúmplice. Joelle ergue as mãos em sinal de derrota e Marla parece subitamente interessada em suas unhas. Bufo impaciente e percebo que dessa vez os banheiros são comigo. Dou um olhar de esguelha para o relógio. São quatro horas. Mais quatro horas e eu saio daqui.

E é como dizem: ruim com elas, pior sem elas.