A Cidade de Prata

Capítulo II


Daniel e Lucas pareceram perder a capacidade de falar. Ambos permaneceram encarando Rômulo como se tivessem acabado de ouvir algo extremamente fantástico. O empresário, por sua vez, já esperando essa reação, se pôs a comer e apenas aguardou. Levou algum tempo até que a ficha de Daniel caísse e ele balançasse a cabeça de um lado para o outro, como se não tivesse entendido bem o que Rômulo dissera.

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— Espera um pouco, espera um pouco. – Ele ergueu as mãos espalmadas no ar – Está me dizendo que você possui evidências de que o manuscrito 512 pode ser um relato real? – Ele deu a devida ênfase – Impossível.

O outro terminou de engolir a mussarela que estava mastigando e deu mais um gole em seu vinho antes de prosseguir.

— Sim, Daniel. – Ele confirmou, em tom calmo – É exatamente o que estou dizendo.

O arqueólogo piscou algumas vezes e olhou para Lucas, que permanecia estático. Balançando a cabeça mais algumas vezes, ele pediu:

— Por favor, explique.

Rômulo deu um sorriso de canto e apoiou os cotovelos na mesa, pondo-se a falar.

— Há algumas semanas, uma equipe da minha fundação estava retornando de uma expedição a um sítio arqueológico em Tocantins quando o avião em que estavam passou por uma zona de tempestade e os ocupantes presenciaram algo estranho. Disseram que um raio atingiu uma montanha e ela brilhou, como se fosse um cristal gigante refletindo uma luz muito forte.

Daniel ajeitou sua postura na cadeira e Lucas franziu a testa, ambos atentos à narrativa do empresário. Ele prosseguiu:

— O fotógrafo da expedição fez algumas imagens da região, tentando identificar o que poderia ter causado aquele fenômeno, e uma das fotos foi esta. – Ele abriu a galeria de fotos de seu celular e virou-o para os dois amigos.

A imagem na tela mostrava um tapete verde-escuro de vegetação ao pé de uma montanha alta e, mais abaixo, formações lineares horizontais que pareciam se estender por algumas centenas de metros e, entre elas, o que parecia uma coluna negra de altura razoável.

— O que deveríamos ver nesta foto? – Foi Lucas quem perguntou, tentando interpretar a imagem.

Nesta foto, nada específico. – Rômulo respondeu – Mas minha equipe fez um trabalho em alta definição nesta imagem e este é o resultado. – Ele passou para a foto seguinte.

Na tela do celular a imagem era a mesma, porém bem diferente da anterior. Com os devidos filtros aplicados, agora era possível ver o que o empresário queria que vissem. O contraste entre a vegetação e as formações alinhadas ao pé da montanha agora era bem evidente, e via-se também que do topo da coluna negra projetava-se uma pequena ramificação perpendicular, como um pequeno galho. À esquerda, o que na foto anterior parecia apenas um amontoado de árvores altas agora adquiria um contorno triangular, como se a vegetação tivesse crescido acima de algo que havia ali anteriormente.

Usando muita imaginação, era como ver uma concepção artística longínqua de algum tipo de cidade inca perdida. Lucas foi o primeiro a perceber isso.

— Acha mesmo que essas formações possam ser as ruínas descritas no manuscrito 512? – Ele perguntou num tom propositalmente cético, apontando as formas lineares evidenciadas na imagem.

Rômulo aquiesceu.

— Eu gostaria muito que fossem, Lucas. – Ele devolveu, num tom seguro – Veja bem, as principais buscas a essa “cidade perdida brasileira” foram realizadas pelo cônego Benigno José de Carvalho ainda no século 19 e foram concentradas no entorno da Serrá do Sincorá, na região central do estado da Bahia. Em sua última carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, datada de 1845, ele dizia que estava bem perto de descobrir a localização de tal cidade, mas acabou falecendo de insuficiência hepática pouco tempo depois. Hoje acredita-se que a cidade à qual ele se referia é a vila de Igatu, famosa por suas construções de pedra da época do Ciclo do Diamante na região. – O empresário abriu as mãos num gesto explanatório – Eu acredito que ele se concentrou nessa região pelo fato de o autor do manuscrito citar o rio Paraguaçu, que nasce onde hoje fica a cidade de Barra da Estiva, ao final do relato. Desde então, todas as buscas realizadas se concentraram no entorno dessa região da Chapada Diamantina.

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Lucas permaneceu com um semblante incrédulo, mas limitou-se a escutar. Daniel, por sua vez, estava um tanto surpreso com o domínio que Rômulo possuía sobre o conteúdo do manuscrito 512. Aquilo era algo que se esperava apenas de arqueólogos ou pesquisadores afins.

— Esta foto, no entanto, foi feita em uma região à noroeste do estado, pouco abaixo da divisa com Tocantins e bem longe da Chapada Diamantina. – Rômulo prosseguiu, abrindo um mapa do estado da Bahia na tela do celular – O GPS do avião da minha equipe não estava funcionando por causa da tempestade, mas o piloto estima que seja algum lugar a nordeste da cidade de Barreiras. – Ele fez um círculo com o dedo sobre o mapa na tela – E toda esta região entre o noroeste da Bahia, o leste de Tocantins e o sul do Piauí ainda é bastante inexplorada. Sabe lá Deus o segredo que essas terras ainda escondem.

Daniel chegou a abrir a boca para formular uma pergunta, mas Rômulo o interrompeu com um gesto ao ver o garçom se aproximando com a comida que haviam pedido.

— Vocês provavelmente querem saber por quê eu acho que se trata da cidade do manuscrito. Bem, eu estou trabalhando com imaginação e suposição. – Ele pontuou, enquanto o garçom depunha os pratos diante dos três – As formações mostradas na foto são lineares demais para serem naturais. E mesmo que fossem, são do tipo de formação que só se costuma encontrar em cânions ou beira de rios, o que não é o caso. E também tem essa coluna escura no meio da foto.

O empresário fez uma pausa para apreciar a comida que havia acabado de chegar, um apetitoso filet com molho de três funghis e ravióli recheado com batata, queijo e espinafre. O garçom havia trazido também uma garrafa de vinho pinot noir para acompanhar, ao que Rômulo agradeceu. Daniel e Lucas apenas se entreolharam, não muito acostumados àquele ambiente chique. Quando o garçom se retirou, o arqueólogo perguntou:

— O que tem a coluna escura?

Rômulo estava partindo um pedaço de seu filet, mas interrompeu o gesto. Encarou Daniel com um olhar intenso e sorriu de canto de novo.

— Já, já vou explicar melhor. – Pegando seu celular outra vez, abriu o Whatsapp e mandou uma mensagem – Agora, senhores, aproveitem a comida.

E continuou a comer, como se estivessem tendo a mais natural das conversas. Daniel rangeu os dentes, contrafeito, e Lucas se limitou a ajeitar os óculos. Dando de ombros, ambos se puseram a comer também. O filet estava suculento e bastante saboroso, e o ravióli al dente estava perfeito. O vinho pinot noir tinha um gostoso aroma complexo e um paladar fresco, e o arqueólogo até se surpreendeu ao ver o amigo degustando-o com certa atenção, já que ele não era muito fã de bebidas alcoólicas.

Estavam quase terminando a refeição quando o motorista de Rômulo apareceu, trazendo consigo uma pasta de couro preto. Ele apenas a entregou para seu chefe e se virou, retirando-se tão discretamente quanto havia chegado. Largando os talheres por um momento e abrindo a pasta, o empresário revelou um antigo documento de folhas bastante amareladas. Ergueu-o e o pôs sobre a mesa, atraindo os olhares de Daniel e Lucas.

— Quando Manuel Lagos descobriu o manuscrito 512 na Biblioteca Nacional, ele se ofereceu para litografar algumas cópias fiéis ao original. Esta é uma delas. – Ele anunciou – Minha fundação a encontrou por acaso há alguns anos, e desde então eu a mantenho em meu acervo particular.

Os dois amigos pararam de comer, prestando atenção.

— Eu venho estudando este documento desde então. Analisando os pequenos detalhes, interpretando cada descrição apresentada. – Rômulo prosseguiu – É por isso que eu acredito que estas formações mostradas na foto que minha equipe tirou podem se tratar da cidade mencionada no manuscrito. Vou explicar direito.

Ele folheou o documento que segurava e virou-o para que Daniel e Lucas pudessem ver uma passagem específica.

— Veja a descrição que o manuscrito faz das construções da cidade. – O empresário apontou, recitando – “Pela regularidade e simetria em que estão feitas, parece uma só propriedade de casas, sendo em realidade muitas; e algumas com seus terraços descobertos e sem telha, porque os tetos são de ladrilho requeimado uns, e de lajes outros”. Como eu disse, estou trabalhando com imaginação, mas, a meu ver, essa descrição bate muito com as formações alinhadas no pé desta montanha. – Ele abriu a foto no seu celular de novo.

Daniel e Lucas trocaram um olhar de dúvida. O assistente permanecia cético, mas o arqueólogo estava um tanto curioso. Rômulo prosseguiu:

— Pouco depois, vejam este detalhe. – Ele apontou outro parágrafo do manuscrito, mais abaixo, e recitou-o também – “Passada e vista a rua de bom comprimento, demos em uma praça regular; e no meio dela uma coluna de pedra preta de grandeza extraordinária, e sobre ela uma estátua de homem ordinário, com uma mão na ilharga esquerda e o braço direto estendido, mostrando com o dedo index ao Polo Norte”. Para vocês eu não sei, mas para mim parece uma descrição do próprio Augusto de Prima Porta. Vocês sabem, aquela estátua famosa do imperador Augusto que está exposta nos Museus Vaticanos. [1]

Os dois amigos permaneceram calados, sem saber ao certo o que dizer. Suspirando e retesando os cantos da boca com certa frustração, Rômulo abriu uma foto da referida estátua em seu celular e mostrou-a aos dois. Esculpida em mármore, a figura estava com a mão esquerda pousada na altura do quadril e o braço direito estendido, com o dedo indicador em riste.

— Agora me digam se esta silhueta... – Ele afastou o celular para longe, diminuindo a imagem da estátua, e logo depois abriu novamente a foto tirada pela equipe da fundação, dando um zoom no topo da coluna negra e complementando seu raciocínio – ...não se parece com esta silhueta.

Daniel ergueu as sobrancelhas, intrigado, e Lucas pareceu estudar a imagem com um pouco mais de atenção. Rômulo percebeu e sorriu para si mesmo, contrafeito.

— Agora vejam este afloramento à esquerda. – Ele deslizou a foto e mostrou o amontoado de árvores que haviam notado antes – Percebem como ele possui um estranho formato triangular? Agora escutem. – Ele apontou outra citação no manuscrito – “Da parte esquerda da dita praça está outro edifício totalmente arruinado, e pelos vestígios bem mostra que foi templo, porque ainda conserva parte de seu magnífico frontispício”.

Abateu-se sobre eles um breve momento de silêncio. Daniel permaneceu com os olhos fixos na foto na tela do celular de Rômulo, e Lucas alternava olhares entre o amigo e o empresário. Este, por sua vez, percebendo que ainda não tinha causado o impacto que pretendia, retomou seu raciocínio.

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— E só para finalizar, ainda tem a questão da montanha “brilhante” que o pessoal do avião viu. Vejam aqui, bem no início. – Ele folheou o documento novamente e parou na primeira página, pondo-se a recitar outra vez – “Descobrimos uma cordilheira de montes tão elevados que pareciam chegar à região etérea, e que serviram de trono ao ventos e as estrelas; o luzimento que de longe se admirava, principalmente quando o Sol fazia impressão ao cristal de que era composta e formando uma vista tão grande e agradável, que ninguém daqueles reflexos podia afastar os olhos”.

E calou-se. Rômulo agora aguardava um parecer dos dois. Daniel e Lucas alternavam olhares entre si, o documento e o empresário. Pareciam tentar encaixar aquelas informações em suas mentes como se fossem peças de um complicado quebra-cabeças psicodélico.

Foi o assistente quem se manifestou primeiro.

— Olha, Rômulo... – Ele não chegou a encarar o outro nos olhos – Isso tudo é muito interessante, mas... Na minha opinião, é muito fantasioso. Quer dizer, já estamos no século 21. Eu não acredito que algo desta magnitude ainda esteja...

— Eu imaginei que vocês fossem dizer isso. Que não é possível que uma descoberta tão grandiosa ainda não tenha sido feita. Mas como eu já disse, estou trabalhando com a imaginação. – Rômulo cortou-o.

— E onde exatamente você quer chegar? – Lucas emendou depressa – Quer dizer, para quê você precisa de nós?

O empresário encarou-o por um momento, suspirando e unindo as pontas dos dedos sobre a mesa.

— O que eu quero é fazê-los perceber que existem semelhanças demais entre o que minha equipe fotografou e o que é descrito no manuscrito 512. Acreditar que tudo isso não passa de mera coincidência é quase... um absurdo. – Ele respondeu, comedidamente, encarando Lucas – Não é possível que alguém apaixonado por realizar novas descobertas veja tudo isso e não sinta ao menos uma pontinha de curiosidade em saber do que realmente se trata.

— Não foi o que eu... – O assistente começou a responder, mas o outro o interrompeu com um gesto.

— Eu sei. Também não foi o que eu quis dar a entender. Mas é exatamente aí que eu quero chegar. – Ele prosseguiu, apontando para seu celular – Eu estou me coçando de curiosidade desde que recebi estas imagens. Eu queria muito ir até a Bahia para verificar do que se trata, mesmo que seja para chegar lá e dar de cara com um monte de nada.

Lucas se empertigou.

— E você está nos convidando para ir? – Ele deduziu, num misto de pergunta e afirmação.

Rômulo deu um sorriso discreto.

— Na verdade, mais do que isso. – Ele desviou o olhar para Daniel – Como eu disse, achei sua dissertação de mestrado muito boa. Eu gostaria de alguém tão conciso como você orientando a expedição.

Expedição? — Daniel e Lucas perguntaram ao mesmo tempo.

O empresário vacilou por um segundo, como se tivesse falado demais, mas acabou acenando positivamente com a cabeça.

— Sim. – Rômulo confirmou – Eu estou reunindo uma equipe para avaliar o local fotografado. E eu gostaria de convidá-los a participar.

Lucas chegou a abrir a boca para responder, mas permaneceu calado. Virou-se para Daniel e encarou-o, aguardando a resposta dele. O arqueólogo, por sua vez, havia franzido a testa e parecia pesar a fala do empresário. Cuidadosamente, perguntou:

— Se por acaso eu aceitasse, como faríamos isso?

— A parte de vocês seria organizar uma pequena expedição de reconhecimento do local. Não serão muitas pessoas, é claro, porque não temos nenhuma garantia de que iremos encontrar alguma coisa. Eu cuidaria da parte do financiamento. – Rômulo pontuou – E se por acaso descobríssemos algo, toda a parte de estudo e catalogação seria conduzida por vocês dois.

— Você cobrirá todos os gastos? – Daniel tentou não deixar transparecer nenhum ar de interesse na pergunta.

— Exatamente. Seria uma expedição em nome da minha fundação, é claro, mas sob sua coordenação. – Ele respondeu, apoiando os cotovelos na mesa e inclinando o corpo na direção do arqueólogo – É claro que não posso te obrigar a isso, Daniel, mas pense na minha proposta com carinho. Se de fato houver alguma coisa lá para ser descoberta, será uma adição e tanto ao seu currículo. Poderia te render facilmente uma tese de doutorado.