Adele

VII. Conversas e acordos


O sr. Banks conduziu-me – melhor dizendo, eu o guiei – até a Rue de l'Ancien Courrier. Nada melhor do que abrigar um desconhecido numa rua conhecida, não? De qualquer maneira, sentamo-nos numa das mesinhas ao ar livre do bistrô que levava o nome de Bonheur Sucré. Harvey pediu dois pedaços de torta de maçã com canela, e devo confessar que meu coração deu pulinhos de alegria com sua decisão. Retirou sua cartola, bem como eu retirei meu chapéu, e colocou sua carta sob a mesa.

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— Procurarei ser o mais breve possível, senhorita, pois não quero tomar muito de seu tempo, apenas o necessário. Já notei que a senhorita gosta de ser direta — começou ele, em meio a um pedaço de torta. Assenti com a cabeça, achando graça do comentário. — Como bem sabes, sou inventor, numa linguagem mais chula. Estudo na Academia de Londres.

— Qual a área, se me permite perguntar?

— Física — sorriu ele, orgulhoso. —Bem como química. Todavia, a química não conquistou a este estudante tanto quanto a física. Esta, senhorita Adele, é minha paixão.

— Física! — exclamei, talvez um pouco alto demais. — Na casa onde trabalho, há um livro sobre física. O li e penso ser uma matéria deveras interessante. É claro que só entendi a parte teórica, contudo, me parece ser revolucionária.

— A senhorita leu um... livro de física?

— Sim, senhor. O Princípio Elétrico, do senhor Michael Faraday. Acaso o conhece?

E então a cor fugiu do rosto de Harvey. Ele arregalou os olhos e levou uma mão ao coração, arquejando, me fazendo levantar com o susto.

— O senhor está se sentindo bem? — coloquei uma mão sobre seu ombro, já pronta para pedir ajuda.

— Sim, perdoe-me, foi... apenas o susto — em resposta, ele pousou a mão esquerda sobre a minha, o que me fez suspirar e voltar a sentar-me. Harvey ainda me olhava com assombro. — A senhorita leu o Princípio Elétrico? Está certa disso, não está pregando-me uma peça?

— Mas é claro que não, senhor! Por que estaria eu a brincar com isto?

Harvey engoliu em seco e respirou fundo antes de prosseguir. Baixou o tom da voz:

— A eletricidade, senhorita, é o motivo pelo qual tenho viajado. É, igualmente, o tipo de calor o qual mencionei em minha carta. Veja bem, estudei na Academia junto... junto ao senhor Faraday. Posso dizer que sou seu discípulo.

— Não é possível! — levei uma mão à minha boca, assombrada.

Harvey soltou uma risada nervosa, e buscou algo nos bolsos do paletó. Pouco depois, tirou de lá uma espécie de livrete, abriu-o e entregou-o a mim, acenando com a cabeça para instigar-me a olhar. Tratava-se de uma carta de apresentação, reconhecendo os estudos de Harvey Banks na Academia Real de Londres com o senhor Michael Faraday, já falecido. Sendo assim, podia-se afirmar que o sr. Banks era seu aprendiz.

— Não apenas possível, como levo à mão minhas credenciais.

— Valha-me Nosso Deus — devolvi o livrete. Franzi a testa e o encarei. — O senhor acredita em destino, sr. Banks?

— Acredito que a ciência tome rumos um tanto quanto cômicos para ser escutada, senhorita. A senhorita, uma camareira, lendo um livro de física! O livro! — riu ele. Balançou a cabeça negativamente, ainda tão desacreditado quanto eu. Logo em seguida, ergueu as mãos em defesa e sua expressão tornou-se séria. — Não pense que subjugo a profissão, senhorita, és tão digna de honrarias quanto a um soldado.

Corei com o comentário e não pude evitar de imaginar-me com uma coroa de louros e uma medalha dourada no peito. Sorri instantaneamente. Acenei com uma mão para indicar que ele continuasse.

— Afinal, como eu ia dizendo... o senhor Faraday deixou-nos com o Princípio Elétrico, e não pretendo que a eletricidade se transforme em algo obsoleto. Ao longo dos últimos meses tenho buscado auxílio de outros companheiros estudantes, mas os ingleses apenas fazem troça de meus estudos e do sr. Faraday — e então ele faz uma careta. — Tive um pouco mais de receptibilidade com os franceses, mas ainda sim quase nenhum avanço. E então me aparece a senhorita! Isto é fantástico, pois eu tinha uma chance em um milhão.

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— Ora, senhor. Sou apenas uma leitora ávida — desviei o olhar. — Qual a espécie do projeto que o senhor planeja?

— Aí é que entram as camareiras. Sei que o serviço de mão é deveras árduo, e, por isso, tanto pelo bem da ciência quanto pelo bom-senso, decidi colocar-me na pele de uma para planejar este arquétipo ainda sem nome e formato. Tudo ia bem, até que descobri ter certa intolerância ao calor gerado por fricção — Harvey mostrou suas mãos, que eram donas de calos e feridas recém curadas. Um calafrio subiu por minha espinha. — Então, procuro... hum... cobaia não é a palavra... procuro assistentes que já possuem experiência para me auxiliarem neste projeto. Nada mais seria do que já fazer o que faz normalmente, e eu observaria e tomaria notas.

— Só isso? — arqueei as sobrancelhas. — Apenas... trabalhar?

— Exatamente. Apenas trabalhar.

— E por qual motivo as outras camareiras consultadas não aceitaram o serviço, senhor?

— Isso implicaria mudar-se para minha casa, em Bordeaux. Todas elas preferiram seus serviços atuais, por não terem a certeza da confiabilidade do projeto. E olhe que eu as ofereci uma alta quantia em salário. Mas creio que não era o salário colocado em cheque.

— Não — concordei. — Algumas famílias são dignas de apego, senhor.

— É o seu caso?

Fiz que sim com a cabeça, com um sorriso triste.

— Então declinas o convite?

— Decerto que não. Apenas encontro-me em uma situação delicada. O senhor se lembra de minhas condições para a proposta?

— É claro. Não foi clara, mas se bem lembro, pediu auxílio mútuo.

— Sim, senhor. Agora que o senhor já me forneceu detalhes o suficiente, creio que já posso fazer o mesmo. Bem, trabalho já a nove anos na mesma casa, por indicação da Abadessa Josephine. Pulando estes nove anos, temo que meu emprego não seja mantido. Isto se dá ao fato de que o herdeiro da família casar-se-á em breve, em meados de maio. A senhorita sua noiva não parece gostar da minha pessoa, e, visto que ao casar-se as posses serão do herdeiro, ela tem o direito de demitir-me se quiser.

— Ah... — ele me ofereceu um olhar um tanto triste. — Compreendo.

Dei de ombros, e saboreei o último pedaço de minha torta. Suspirei em deleite antes de prosseguir.

— Se parasse por aí eu até poderia aceitar minha sina, senhor — ri com certa ironia. — A questão é que se trata de um casamento por conveniência. E o herdeiro sempre repudiou casamentos. Meu senhor, Thierry, alega que seu pai o obriga a fazer isso pelo bem da propriedade, mas... lorde Victor não é cruel a tal ponto. E a sua noiva não faz o tipo casamenteira. Ambos se detestam.

— Então a senhorita supõe que haja um motivo para que ambos se casem?

— Sim. Mas meus recursos são muito limitados para descobrir se há mesmo algo por trás disso. Estou disposta a trocar meus serviços pelas suas... hum, pesquisas masculinas. Mas saiba que estarei disponível apenas durante meu período de recesso ou... se for demitida.

Harvey assentiu com a cabeça e ponderou sobre o assunto. Apoiou um cotovelo na mesa, e a cabeça na palma da mão. Pude imaginar com facilidade as engrenagens maquinando em sua cabeça. De repente, após alguns segundos, ergueu a cabeça e derrubou a cartola da mesa. Desceu para resgatá-la na mesma rapidez, e na volta bateu a cabeça. Abafei meu riso enquanto ele praguejava.

— Malditos projetos modernistas... tão resistentes... — e esfregou a cabeça, doído.

— O que ia dizer antes de bater a cabeça, senhor?

— Eu ia dizendo que... sim, sim! Senhorita, permita-me perguntar... qual o período exato de suas férias?

— Do dia 20 de dezembro até o dia 10 de janeiro.

— Totalizam três semanas exatas... pois bem, senhorita Adele, tenho algo a propor-lhe.

Recostei-me sob a cadeira e estreitei os olhos.

— Sou toda ouvidos, senhor.

— Imagino que passará o Natal com a Abadessa Josephine e as freiras restantes em Avignon — comentou ele, e eu afirmei com a cabeça. Se, porventura, a senhorita permitir, eu... gostaria muito de juntar-me a vós na festa.

— Não vejo problema, senhor, mas... perdoe-me a pergunta indelicada, e não julgues que estou sendo mexeriqueira, longe disso. Todavia o senhor não traze convosco família? Pais, esposa ou filhos?

— Decerto que não. Somente eu e a ciência.

— Então, nesse caso, tens meu convite formal para juntar-se a nós no Natal, senhor Banks — gracejei. — Sempre somos apenas nós cinco, garanto que ficarão felizes em tê-lo como participante também.

E então Harvey abriu um enorme sorriso, tomou minhas mãos delicadamente e depositou um beijo nas costas delas. Senti o rubor preencher minhas bochechas. Ergui o olhar timidamente e ofereci um sorriso mínimo.

Je suis enchantée, Adele. Se acaso quiseres, também está convidada a ir em minha casa para, senão ajudar-me, apenas visitar-me antes de expormos o invento em Paris.

— Paris? — bambeei na cadeira, e segurei-me na mesa. — A Paris?

Oui, ma chère. A Paris. É onde há a feira científica. E não há necessidade de preocupar-se com o pagamento da passagem, considere como um presente.

Ele tinha razão. Thierry não perdia uma. Mordi o lábio e enfim estendi minha mão para ele, que a apertou em tom de acordo. Terminou de comer sua torta e me levou de volta à Catedral. Combinamos de continuar nos falando por cartas, onde eu lhe contaria detalhadamente sobre os hábitos de Thierry e Lilian – coisa que eu já observava naturalmente – e ele, por sua parte, tentaria ajudar-me. Despedimo-nos, ele com um repetido beijo em minha mão e, de minha parte, uma simples mesura.

Remy e eu retornamos para a Casa Chevalier, e ele, como bom cocheiro, não comentou sobre nada. Mas, como mau amigo, lançou-me um olhar malicioso. Ergui as mãos em sinal defensivo e pus-me a rir. Ele empurrou meu corpo de brincadeira, e adentramos a Casa para finalizar o dia.