Primeiras Vezes

Quando cozinhamos juntos pela primeira vez


Law

Hoje posso dizer, com certeza, que a grande maioria de nossas primeiras vezes foram um completo desastre. E é claro que a primeira vez que cozinhamos juntos não poderia ter sido diferente.

Após a catástrofe do restaurante, eu passei os próximos dois meses mantendo distância de qualquer programa a dois que tivesse relação com comida. Apesar de admirar a capacidade de Naomi em restringir sua dieta daquela forma e viver feliz com as suas escolhas, eu tinha um medo irracional de colocá-la naquela situação de desconforto novamente. Eu preferia passar a tarde em um museu de arte contemporânea escutando-a discutir com o curador sobre os reais propósitos das exposições presentes à levá-la a qualquer outro restaurante de Tóquio, até mesmo os que continham a palavra “vegano” no nome.

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Admito que eu também evitava aquele tipo de encontro pois tinha certo receio de provar suas comidas exóticas. Sem sombra de dúvidas, um entrecôte com batatas rústicas ao molho de mostarda me parecia muito mais apetitoso que qualquer receita contendo tofu. Além disso, eu já conseguia imaginá-la me dando um longo sermão sobre como meu paladar era limitado e infantil só de pensar em dizer a ela que aquele tipo de comida cheia de legumes e vegetais não me agradava.

Até que aquele dia chegou.

— Estou muito cansada para sair no final de semana. O que você acha de cozinharmos alguma coisa na minha casa na sexta a noite? - foram suas exatas palavras, ditas pelo telefone quase como um ronronado.

Sentado em meu escritório, com o telefone na orelha, eu podia imaginá-la fazendo aquela cara que só ela sabia fazer quando me pedia algo que não era do meu feitio. Seus lábios eram projetados em algo parecido com um bico bem suave, quase imperceptível, enquanto seus olhos castanhos me faziam derreter sob seu olhar meigo e sua voz suave me acariciava internamente. Naomi parecia especialmente encantadora daquela forma, e eu particularmente achava impossível dizer não a qualquer pedido feito daquela forma.

E foi assim que eu me vi sexta-feira, após o trabalho, em um mercado especializado em produtos veganos do outro lado da cidade, com uma lista de compras exótica em mãos. Enquanto Hiroki me acompanhava e me atualizava sobre suas atividades da semana, eu fazia careta atrás de careta para os itens que era obrigado a colocar no pequeno carrinho de compras.

Bacon vegano.

Nata de aveia.

Tofu Silken.

Como um soldado que caminha para sua morte, segui desanimado com as sacolas de compras e meu filho em direção ao pequeno apartamento de Naomi, apreensivo com a possibilidade de desapontá-la ao odiar o prato escolhido por ela. Apenas por precaução, eu trazia em meio aos ingredientes esquisitos um plano B em forma de almôndegas e molho de tomate pronto, apenas para o caso de o jantar ser um fiasco.

Apesar de tê-la buscado algumas vezes para nossos encontros, eu jamais havia sequer passado da portaria. Mas não havia nada no mundo que pudesse ter me preparado para enfrentar aquele lugar.

Naomi sempre me parecera ser uma mulher desorganizada pelo estado que sua sala de aula sempre estava, abarrotada de pinturas a dedo e esculturas de macarrão, mas aquilo não era nada comparado ao pandemônio de seu habitat natural. Ela vivia em um apartamento pequeno de dois dormitórios muito simples e simpático, sendo que um dos dois quartos havia sido convertido em um ateliê de arte. Mesmo assim, todo seu conteúdo artístico se espalhava pela sala, cozinha, e até banheiro como se tivesse acontecido uma explosão ali dentro. Todos os cantos eram cobertos por telas inacabadas, rabiscos, paisagens, desenhos de seus alunos, tintas e pincéis… até as paredes tinham pinturas decorativas, muito provavelmente feitas por ela. Mas, a cereja do bolo consistia em uma bola de pelos que ela apelidara de Senhor Fígaro, um gato preto estrábico que beirava a obesidade e que havia se apoderado do sofá de dois lugares.

Lembro-me de entrar em seu apartamento como se estivesse entrando em um ambiente altamente contaminado, sem saber ao certo onde pisar ou como respirar. Mentalmente, eu debatia se era possível alguém minimamente são viver em um lugar como aquele. Aquilo, é claro, não passou despercebido por Naomi, que me encarava com uma expressão de reprovação.

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— Maníaco da organização – ela sibilou, se apressando em pegar as sacolas que eu carregava para iniciar o preparo do nosso jantar.

Enquanto eu tentava me situar entre pilhas de quadros em sua cozinha americana com uma carranca inevitável, Hiroki parecia extasiado enquanto decidia se continuava a brincar com o gato preto ou se ajudava sua amiga a fazer o jantar, uma importante tarefa que lhe fora atribuída pela primeira vez na vida.

Por mais que eu detestasse admitir, quem mais parecia apreciar minha relação com Naomi era meu filho, que cada dia mais parecia amar sua professora de artes e nova melhor amiga. Aquela mulher tinha uma capacidade incrível de conversar com as crianças e de conquistá-las, sempre interagindo na língua delas, e eu secretamente invejava como meu filho parecia preferir sua companhia à minha. Sempre que estavam juntos, Naomi parecia esquecer da minha existência e se divertia como ninguém ao lado do amigo de cinco anos, que sempre contava-lhe coisas que não havia dito sequer para mim. Até Sayuri parecia incomodada com essa relação, se sentindo ameaçada pela nova figura feminina na vida de nosso filho.

Quando me acomodei com sucesso em uma das banquetas, Naomi me serviu um vinho em silêncio enquanto eu me mantinha atento à interação dos dois, observando enquanto Hiroki misturava os ingredientes que iriam para o espaguete à carbonara vegano com uma seriedade nunca vista antes.

Em casa, ela parecia ser uma pessoa ainda mais tranquila e relaxada, usando uma camiseta qualquer enfiada por dentro de um shorts jeans de cintura alta ligeiramente largo para seu corpo por baixo do avental roxo. Seu cabelo castanho e bagunçado estava preso em um coque caído e frouxo para que não a atrapalhasse durante o seu momento na cozinha, e seus pés descalços martelavam suavemente o piso de madeira enquanto ela cantarolava uma abertura de anime com Hiroki.

Desde que Naomi pegara as sacolas de mim, ela sequer havia olhado em minha direção, mantendo uma carranca engraçada que enrugava-lhe a testa e escondia ainda mais suas sobrancelhas embaixo da franja. Apesar disso, ela manipulava as panelas sobre o fogão com uma maestria invejável, adicionando temperos diferentes e desconhecidos após provar todos os componentes de sua receita como uma verdadeira cozinheira.

— Você vai ficar com essa cara amarrada a noite inteira? - lembro-me de perguntar a ela entre um gole e outro de meu vinho, quando finalmente percebi que estava sendo ignorado propositalmente.

Naomi apenas me fuzilou com os olhos como se eu tivesse cometido um assassinato antes de pegar um pote que jazia esquecido ao lado do fogão e despejar todo o seu conteúdo dentro de uma panela já no fogo, ao lado do bacon vegano fritado previamente. Minhas almondegas de carne de verdade foram abertas logo em seguida, sendo jogadas dentro da mesma panela que continha o molho de tomate para serem aquecidos.

Talvez um assassinato fosse uma escolha melhor para aquela noite especificamente.

Eu havia esquecido de separar os ingredientes do meu plano B secreto, e agora uma Naomi enfurecida os preparava para mim. Diante de seu olhar mortal digno de um desenho animado, eu só pude aceitar em completo silêncio o prato com espaguete e almondegas que ela colocara em minha frente sobre a mesa, se virando para Hiroki com um sorriso simpático ao oferecer-lhe a receita que haviam preparado juntos. Meu filho, é claro, aceitou o espaguete à carbonara vegano de bom agrado, devorando o primeiro prato em segundos e pedindo por mais um pouco logo em seguida.

Eu confesso que vê-lo comer daquela forma despertou minha curiosidade, e antes que eu pudesse evitar, eu me vi escapando para a cozinha para colocar um pouco de sua receita secreta em meu próprio prato. Mesmo me observando com um olhar confuso, Naomi não disse nada ao me ver dar uma boa garfada em seu macarrão enquanto escutávamos Hiroki nos contar animadamente uma de suas aventuras que tivera com a mãe no zoológico da cidade alguns dias atrás.

Surpreendentemente, aquela coisa era gostosa. Em minha cabeça, me parecia humanamente impossível transformar bacon vegano, nata de aveia e tofu silken em um carbonara tão saboroso quanto um convencional, mas como minhas habilidades culinárias beiravam o zero, não questionei aquilo por muito tempo. O vinho que ela me servira combinava perfeitamente com àquela mistura, e no final da noite, eu estava ligeiramente bêbado e estufado de tanto comer.

Mais tarde naquela noite, após as louças estarem devidamente lavadas e guardadas, enquanto Hiroki assistia televisão ao lado do Senhor Fígaro e de um pote de sorvete caseiro de amendoim, eu descobri que o real motivo da fúria de Naomi não era a presença das almondegas de carne em si, e sim a falta de diálogo que havíamos tido que me levou a comprá-las, e o pior, a escondê-las. Estávamos ambos sentados na pequena mesa de jantar novamente, cada um com sua taça de vinho em mãos, olhando um ao outro de uma forma incerta.

— Eu jamais vou impor qualquer coisa sobre você, Law – sua voz era baixa enquanto ela mantinha os olhos cor de chocolate fixos em meu filho no sofá – eu não sou esse tipo de pessoa. Achei que você soubesse disso.

Ela estava profundamente magoada. E após uma breve reflexão, eu fui apenas capaz de concordar com suas palavras.

Vez ou outra eu me pegava comparando-a a minha ex-mulher, e com certa frequência eu esperava que elas tivessem as mesmas atitudes. Aquela havia sido uma dessas situações. Mas ela, é claro, sempre me surpreendia, sendo o completo oposto de Sayuri. Naomi jamais me obrigaria a comer ou fazer qualquer coisa que eu não estivesse afim. Ela disse que cozinharia, mas eu não disse que gostaria de comer alguma coisa que estivesse acostumado. Ela insistia para que eu me alimentasse melhor e cuidasse melhor da minha saúde como qualquer outra companheira faria, mas ela jamais havia me forçado a nada. Nem mesmo naquela noite do restaurante. Ela não havia pedido para irmos embora, nem solicitou uma alteração do seu prato para o chefe. Eu havia insistido para o chefe abrir uma exceção. Eu decidira ir embora. Ela apenas aceitou as minhas vontades, e ainda foi gentil o suficiente de comprar aqueles lanches para nós três.

Nem mesmo nos próximos encontros que tivemos ela se mostrou uma pessoa autoritária. Sem nem perceber, eu havia escolhido todos os passeios. Eu havia escolhido os melhores horários e dias. Ela apenas sorria e se divertia, sempre tentando me proporcionar a oportunidade de experimentar coisas novas. Se eu experimentaria elas de fato ou não, era uma decisão única e exclusivamente minha, e ela jamais havia questionado minhas decisões.

Pela primeira vez na vida, eu estava em um relacionamento onde eu era livre para tomar minhas próprias decisões. Ela não era o tipo de pessoa que ficaria magoada se recebesse uma resposta negativa, ou oposta ao que ela esperava. E eu era um otário por acreditar no contrário. Ela apenas queria o melhor para mim, mas antes de qualquer coisa, ela confiava em meu julgamento para saber o que de fato seria melhor para mim.

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— O jantar estava incrível, obrigado – lembro-me de agradecer a refeição com um sorriso constrangido enquanto curvava a cabeça suavemente em um sinal de respeito – por favor, cozinhe para nós mais vezes, Naomi-san.

Naomi, que também não era uma pessoa de guardar rancor, apenas ofereceu-me um de seus sorrisos encantadores que expressavam satisfação. Sem dizer mais nada, ela terminou seu vinho em um último gole e se levantou da mesa, depositando um beijo suave em uma de minhas bochechas antes de caminhar até o sofá e se acomodar entre o braço do sofá e o Senhor Fígaro para acompanhar Hiroki em seu desenho animado.

Eu me lembro de ficar ali na mesa por mais um longo tempo, observando os dois em seu próprio mundo com interesse e admiração enquanto me servia mais vinho, desejando secretamente ter aquela visão todos os dias para o resto de minha vida.