Estrelas Perdidas

Estrelas Cadentes


Acabamos adormecendo ali no corredor, um apoiado no outro, nossas mãos unidas. Acordei depois de um sonho muito esquisito:

Eu vagava pelo espaço sideral rapidamente, girando um pouco também quase como se estivesse dançando. Não havia pressão do vácuo, nem falta de ar, nada que me impedisse. Narrando assim pode parecer perfeito, porém tinha algo extremamente incômodo por ali. Comecei a olhar ao redor: uma infinidade de poeiras negras e outros astros todos correndo ameaçadoramente ao meu redor se aproximando cada vez mais como se tirando minhas forças. Ali entendi que dançava para me afastar deles. Até que de repente um deles realmente veio como um caminhão na minha direção e a partir dali eu comecei a cair. Cair e cair e cair, como num poço sem fim. A princípio a sensação era desesperadora, eu estava sozinha e impotente. Até que vi uma luz passando radiante por mim. E depois dela outras menores, encantadoras. Comecei a perceber enquanto caía, todo o universo que se estendia ao redor de mim. Me permiti cair.

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E então eu acordei.

Benjamin estava roncando, agora literalmente caído por cima de mim. Precisei me ajeitar, e acabei deitando a cabeça dele no meu colo, ou acabaríamos caindo. Observei seu rosto por uns instantes. Por mais largado que estivesse, havia algo de gracioso nesse jeito dele. Ele era livre e feliz apesar dos problemas que tinha na vida. Então minha mente começou a ir na direção dos meus próprios problemas, mais especificamente aquela última semana.

Realmente não me lembro bem da minha noite em observação no hospital. Entre ver aquele cara e acordar na cama do antigo quarto de Benjamin, existe algo tipo um gap. Acho que quem já teve um porre muito forte pode entender do que estou falando. Mas a diferença é que eu estava sóbria, ou ao menos, deveria estar. Quando os dois irmãos me contaram o que tinha acontecido, passei o dia todo fechada, me concentrando em lembrar o que tinha acontecido. Mais especificamente quem era aquele cara que eu vi no mercado. Tinha algo de muito errado em ver alguém e passar mal do jeito que eu passei.

Vocês devem estar se perguntando porque eu não falei desse homem para o Benjamin. Sinceramente, até pensei em contar, mas me sentia tão perturbada que cada tentativa de falar dele parecia errada demais. E bem, na verdade, não sabia o que falar. Só sabia que conhecia o cara de algum lugar e por algum motivo ele me inquietava. Minha cabeça desgraçada ainda fez o favor de dar erro na hora de processar a informação. Algo muito sólido, realmente.

De qualquer forma, meus médicos já estavam com minha ficha atualizada sobre o incidente e durante a semana me encheram de testes, perguntas e tratamentos intensivos sem que tivéssemos nenhum resultado .

E justamente naquele período tive consulta com o meu neurologista figura. Acho que foi um dos encontros mais longos até então.

Ele examinou meticulosamente meus laudos por uns 5 minutos. Permaneci calada dessa vez, só ouvindo alguns murmúrios como “hum” e “interessante”. Depois do que pareceu uma eternidade em silêncio, na expectativa, ele finalmente se virou para mim:

— Pelo que me parece aqui, seu problema maior realmente não é da minha conta.

Pisquei meio incrédula.

— Veja bem, seu progresso quanto às sequelas do acidente é mais do que ótimo. Tudo bem, é normal sentir muitas dores e até passar mal ao se lembrar de algo, mas de acordo com a evolução do seu quadro, já era para você saber, ao menos, um pouquinho mais sobre você mesma.

— Isso quer dizer que... — Indaguei.

— Me parece que você NÃO QUER LEMBRAR de quem era. — Mandou diretamente.

Saí de lá atônita. Como ele podia dizer uma coisa dessas, na cara de pau? Enquanto andava indignada e pisando firme nem reparei em quem passava pelo corredor com uma prancheta na mão.

— Rita! Veio no neuro?

Era Suzana e seu bom humor de sempre. Um contraste do meu estado naquele momento.

— Sim. — Respondi baixo.

— Eita, que carinha é essa? Fala miga, o que aconteceu?

E então contei tudo desde o cara estranho até a consulta de hoje. Ela ouviu tudo pensativa e estranhamente séria. Quando terminei, balançou a cabeça em sinal de compreensão. Depois me abraçou amigavelmente.

— Poxa, minha menina, eu entendo sua confusão! Imagino como deve estar sendo difícil para você. O Dr. Ricardo não sabe se expressar muito bem mesmo. Mas não fique com raiva, ele pode não estar tão errado assim. Muitas vezes a amnésia vem junto de algum trauma, não só de um acidente físico. Tem gente que nem bate a cabeça e esquece da vida inteira.

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O resto da conversa foi reconfortante mas esse diálogo me deixou inquieta. O que eu poderia ter passado que me fizesse ter VONTADE de me esquecer quem era? Considerava muito Suzana mas parecia absurdo demais. Provavelmente ela só estava sendo educada com o colega de trabalho. De qualquer forma,aquele rosto continuou inquietando minha mente até a festa onde adormeci no corredor.

Aliás, a disposição de Benjamin em montar uma festa de repente no final de semana é algo que não deveria me surpreender mais. Afinal, o cara sempre arranja alguma coisa para fazer, trabalha muito e ainda cuidou de uma desmemoriada. Mas ainda não consigo deixar de ficar admirada com essa vivacidade. E em como ele conseguiu fazer uma ideia tão absurda dar certo. Mas o fato é que o negócio bombou e por alguns instantes até me esqueci desses pensamentos que me atormentavam. Ele tinha convidado até Helena, Vicente e Suzana, lá do hospital. Fiquei feliz por conversarmos animadamente sobre amenidades que nada tinham a ver com meu estado de saúde. Só que no meio da festa, todo mundo foi assistir o clipe da Riley. Ok, cada um com seu gosto, mas com todos entretidos numa coisa que eu não curtia, minha mente bully já aproveitou para me atacar com o rosto do cara de novo. Até que eu vi o Benjamin também na fossa, e bem, voltamos para a cena inicial.

Momentos depois desse filme passar na minha cabeça, aos poucos comecei a prestar atenção no redor: as luzes apagadas e o apartamento já mais vazio. Não sei se tentaram se despedir, se nos viram ali… Já mais desperta, baixo a cabeça de Benjamin delicadamente no chão, triste pelo pouco que ouvi da conversa dele com o irmão. Não que eu quisesse escutar, mas estava passando perto na hora e eles simplesmente berraram. Arrisquei um beijo confortador na sua cabeça, mesmo ele não sabendo e fui ver como estava o resto da casa.

Somente Pietra, Suzana e Kaio ainda estavam lá. As luzes estavam acesas, mas tudo meio bagunçado como um vestígio da animação de mais cedo.

— Ah, a Bela Adormecida acordou! — Comentou Kaio.

Ignorei o comentário e comecei a catar o que restava do lixo. Suzana e Kaio se mantiveram folgadamente sentados no sofá, conversando como se fossem amigos de longa data. Pietra era a única de pé arrumando algumas almofadas que caíram no chão. Ela resmungava enquanto fazia isso, sua cara não era das mais bem-humoradas. Dava para entender.

Ela foi vindo para o meu lado, ajudando na arrumação com guardanapos sujos caídos no chão e copos descartáveis velhos que alguns educadíssimos convidados de Benjamin deixaram de vestígio. Ela podia estar a um passo de tacar uma jarra no Kaio pela folga do colega (que já se deitava no sofá como se fosse dele) mas se mantinha me ajudando. Bem, eu não queria ser ele de qualquer forma, o olhar que Pietra lançava era mortal, quase como um psicopata preparando uma vingança silenciosa e diabólica para ser executada no momento em que ele estivesse menos preparado. Depois de alguns minutos, deu outro sorriso amedrontador como se tivesse terminado de ter uma ideia diabólica, mas relaxou em seguida. Provavelmente a ideia não podia ser feita agora.

Eu mantive meu trabalho, na minha, afinal, de contas já parecia ter uma vingadora boa o suficiente ao meu lado. Tirando os murmúrios de “deixa eu te ajudar”, “que palhaçada” e “porcaria”, depois dos sorrisos sinistros, ela se virou para mim forçando uma expressão entediada, como se precisasse falar de qualquer outra coisa. Sabe quando alguém puxa um assunto aleatório do nada, forçando para ser a coisa mais interessante do mundo? Pois é.

— Ai, ai. Foi bom o cochilo?

— Ahn, foi. — Respondi me perguntando quantas pessoas tinham visto minha pessoa deitada no chão do corredor.

— E posso saber como acabou dormindo apagada no meio da festa? Com o Benjamin? — As perguntas podiam parecer inquisitórias, mas ela sorria enquanto falava. Ao menos, mais amigavelmente que quando direcionava o olhar para o lado de Suzana e Kaio. Eu fiquei procurando alguma resposta boa que não envolvesse falar o que ouvi sobre a família do meu amigo. Resultado: gaguejei e não disse nada. Pietra sorriu mais ainda.

— Hey, calma! Se aconteceu alguma coisa entre vocês, não precisa me esconder! Sou amiga dos dois, desde que não se ferrem no final, ou principalmente, acabem ME ferrando… façam o que quiserem! Eu acho que você tá até fazendo bem para o Benjamin, de verdade. Ele nunca foi tão cavalheiro, compreensivo ou prestativo na vida! Nem na época em que entramos no trampo, quando eu tinha o finado o cãozinho Xirica… Ah, velhos tempos! Ainda estávamos iludidos achando que algum dia íamos conseguir viver dignamente de arte. O cara era mais sonhador, sabe? Ainda naquela época, nunca vi ele tão… determinado. Tá até menos viciado na Riley! Deus! Ninguém acreditaria alguns meses atrás! Por isso, não precisa ter vergonha, se vocês estiveram ficando, eu posso até julgar o seu mau-gosto para interesses amorosos, maaaas também não vou ser a amiga chata, antagonista, que fica tentando separar o casal só para dar mais capítulo para a história. Prefiro ser a incentivadora…

Ela jogou todas essas informações de uma vez como se fossem “nada demais.” E ia falar mais ainda se eu não tivesse feito um gesto para que parasse. Até parei de recolher o lixo, e ajeitei minha postura, rindo fraco.

— Calma! Amiga, você se empolga muito! Acho que podia montar aquela coisa, como é que chama, mesmo? Ah, sim..Fanfic.

Enquanto conversávamos, dava para se ouvir claramente a conversa de Kaio e Suzana sobre o último álbum da Riley, ao longe. Pietra ficou me olhando desconcertada, enquanto eu devolvia o constrangimento em silêncio. Mas poxa, ela também me ajudou quando passei mal e agora com a sujeira… Não falou por mal, eu sabia, então tentei explicar melhor, para ficarmos mais confortáveis.

— Fico muito feliz de saber que estou ajudando o Benjamin de volta, de alguma forma. Só que… eu não sei direito nem quem eu sou! A ideia de ter uma vida amorosa numa altura dessas me parece meio... — Fui bastante sincera — Assustadora.

Me senti uma verdadeira idiota, mulher feita que eu era falando uma coisa dessas. Contudo era a mais pura verdade: toda vez que eu pensava rápido no assunto de me envolver com alguém, a insegurança toda que eu deveria ter normalmente com essa vida provisória parecia vir de uma vez só. Naquele momento, me dei conta de que, realmente, no fundo, tinha uma coisa sobre minha vida antiga que eu sentia mas não queria admitir: quem vivesse ao meu redor antes do acidente, não me amava. Não só pelo fato de ninguém ter se preocupado com a antiga “eu” até agora. Esse sentimento estava lá o tempo todo, na boca do estômago, no fundo da mente, eu só… não tinha notado até aquela conversa.

Ou talvez não quisesse notar.

Pietra retorceu o rosto. Ia me falar mais alguma coisa, entretanto, foi interrompida por um berro de Kaio:

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— Mas que palhaçada!

Suzana observava a tela do celular que ele segurava, menos alterada. Ela inclusive, balançava a cabeça como se discordasse da opinião dele. Pietra se calou, olhando para o outro lado, com cara de saco cheio voltando. Podia ser ranço da minha amiga, mas a fala estava alta demais para continuarmos conversando:

— Pow, a mulher arrasa, acabou de lançar um clipe fantástico e só porque lançou uma nota informando que precisa descansar um pouco já vem o povinho da internet xingar! E daí que a Riley cancelou alguns shows? Ela tá certa no que disse no post, tirar um tempo para si é fundamental! E além do mais…

Nessa altura fui saindo de fininho da sala. Deus me livre de participar de uma discussão sobre a vida da cantorinha pop superficial! Voltei para onde Benjamin estava. Ele terminava de abrir os braços se espreguiçando. Até assim era adorável! Me encarou com um sorrisão meio sem saber onde estava.

— Vem, deixa eu cuidar de você dessa vez.

O ajudei a se levantar e fomos andando devagar até o quarto do Alex, onde ele dormia quando o irmão não ficava em casa. Ele foi o tempo todo se apoiando em mim, ainda cheio de sono. Quando chegamos no batente, ele virou o rosto mole para o meu pescoço e sussurrou meio dormindo:

— Ri…

Não entendi o que queria dizer, mas realmente ri. Lembrei de quando escolhemos meu nome provisório. Apoiei a pessoa até ele literalmente cair na cama.

Saí do quarto pensando no que Pietra disse.