1 – Se dependesse de mim, foda-se o destino



Essa história de alma gêmeas não colava para mim.

Olha, eu não queria parecer rude assim de cara, mas não entrava na minha cabeça como o tamanho da importância que todo mundo sempre dá a isso. Então um dia você está andando na rua, encontra um completo estranho, vocês trocam meia dúzia de faíscas e isso muda sua vida para sempre. Uau. Parabéns aos envolvidos.

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Sem contar que é tão raro, tão improvável… Dizem que cerca de 8% da população mundial encontra suas almas gêmeas. Mesmo assim quase todos andam por aí de olhos abertos, esperando esbarrar no seu par perfeito. Como se a vida fosse só isso. Como se não desse para se apaixonar sem precisar disso.

Olha, eu tenho amigos e familiares que encontraram suas metades e eu sei, sou obrigado a admitir, eles estão muito felizes. Mas as pessoas tinham mesmo que viver tão presas à essa ideia? A vida continua, você acompanhado ou sozinho.

Além de tudo me incomodava a falta de escolha. E como coisas construídas com tanto trabalho podiam ruir de um momento para o outro só porque o destino escolheu por você. Eu não queria uma alma gêmea, nunca quis. Papai sempre disse que eu mereço, mas eu acho que eu mereço é escolher com quem vou me casar e ter uma vida.

— Você é tão cético sobre isso. – Isabella me disse tantas vezes quanto era possível. Minha amiga era menos obcecada com almas gêmeas do que a maioria das pessoas, mas ela ainda olhava ao redor, procurando, esperando. – Se um dia acontecer, você tem que deixar rolar.

— Deixar rolar, certo. – Eu respondia, já no automático. Numa noite em específico eu estava deitado na cama dela, olhando meu Tinder, enquanto Isa estava no computador respondendo seus contatinhos gringos.

Ela amava caras de outros países. Uma vez namorou um japonês, outra um grego, e até mesmo um romeno. Você já conheceu um cara romeno? Pois é, nem eu. Mas a Isa já, ela já namorou um. E o gringo da vez eu nem sabia de onde era, mas eu sabia que tinha um gringo da vez. Ela estava encantadinha, dando risinhos para o celular.

— Eu só estou dizendo que se acontecer, aconteceu, você tem deixar a correnteza te levar. – Ela disse, naquele tom de quem não está realmente prestando atenção no que falava. – Você torrar seu cérebro nisso não vai mudar o que pode ou não acontecer.

— Agora sim estou tranquilo, obrigado Isa.

— Uhum. – Ela sorriu para a tela do computador e começou a digitar.



2 – Tinha mesmo um gringo



Eu estava sentado no chão do corredor da universidade, onde tinha achado uma tomada livre, num ponto que milagrosamente pegava sinal. Isa estava ao meu lado, mostrando ao mundo sua incrível habilidade de tomar suco, comer um salgado e usar o celular ao mesmo tempo.

— Ele não é totalmente estrangeiro. – Ela falava. – Ele passou a maior parte da vida fora Brasil, mas a mãe dele é daqui, ele fala português normalmente e já morou aqui uns tempos.

— Ele nasceu no Brasil? – Perguntei.

— Não.

— Então ele é gringo. Fim de papo. Mais um pra sua lista.

Isabella respirou fundo, amassou o papel do salgado e jogou na minha cara.

— Ele não vai pra minha “lista” porque é só um amigo. Além do mais ele vai vir para cá pra trabalhar e morar, por isso eu vou ajudá-lo a não estranhar tanto o lugar.

— Okay, se você está dizendo. – Eu não comprei a história de serem só amigos, mas não adiantava insistir. – Cadê? Me mostra uma foto dele.

Isa abriu uma foto e eu me inclinei para olhar.

Ele era lindo. Mais que lindo. Xinguei baixinho, não devia ser permitido a qualquer ser humano nascer assim tão lindo. Parecia ter saído de um filme, com seu casaco enorme, cabelo loiro liso e olhos que poderiam ser azuis ou verdes. Mas não era isso que o tornava lindo, eu estava muito longe de ser o cara que ficava preso à padrões de beleza, era muito além; a simetria do seu queixo, talvez, quem sabe o seu nariz perfeito ou o formato do seu sorriso, ainda mesmo a pouca barba que tinha. Eu não sabia dizer o que o fazia tão bonito.

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— Limpa a baba. – Isa riu.

— Isabella, se você não pegar esse gringo, eu pego. É sério.

— Tira o olho. – Ela retrucou.

— Ué, mas não era só amizade?

3 – Foi nesse momento que o destino zombou de mim

Ainda me lembro, era verão e o calor estava fodendo com minha vontade de viver. Eu estava de regata, descabelado, bermuda e chinelo de dedos. Era final de março, dia 28, e todas minhas aulas tinham acabado. A única forma que encontrei para me esconder do clima foi me isolar no laboratório de Isa, debaixo do ar condicionado. Ela não estava lá, mas seus colegas já estavam acostumados comigo e me deixavam ficar lá desde que não atrapalhasse.

Ainda assim era estranho ficar muito tempo lá sem Isa. Por isso digitei uma mensagem para ela enquanto me girava em sua cadeira.

“Já estou chegando, tive que ir no aeroporto buscar Olen.” ela respondeu.

Ah, sim. Eu tinha realmente me esquecido que era o dia que o gringo chegava. Então fiquei lá, quase dormindo na bancada.

Quinze minutos depois, os dois chegaram. Eu escorreguei para fora da cadeira e me espreguicei, enquanto Isabella apresentava o cara para seus colegas. E conforme fui me aproximando, o calor parecia aumentar e o tempo ficar mais lento. O rapaz estava de lado, com as mãos nos bolsos da calça, mas virou o rosto para me olhar. Seu cabelo loiro descia, liso, até seu ombro, me lembro de reparar muito nisso. E de como os fios se arrepiaram de repente, como se um vento o jogasse para trás, com o ruído de uma tv saindo fora do ar. Seus olhos azuis pareciam grandes de surpresa. E meu peito chegava a queimar, me tirando o fôlego, o calor descendo lentamente pelo meu braço esquerdo. Por um momento me perguntei ingenuamente se eu estava tendo um infarto, mas quando o calor chegou até minha mão eu pude ver claramente o fio, Akai Ito, ligando nós dois. Durou cerca de cinco segundos, os segundos mais longos de minha vida. Então o fio se tornou invisível mais uma vez, o calor passou, o tempo voltou a correr.

No canto da visão eu podia ver Isabella e seus colegas de queixo caído, paralisados de surpresa. Então eles se agitados e, meio alvoroçados, saíram do laboratório, me deixando sozinho com o rapaz.

Olhei para ele.

Tentei assimilar.

Alma gêmea.

Ele era tão bonito que eu mal podia olhar para ele sem me sentir envergonhado.

Tentando entender…

Nem mesmo era brasileiro.

Meu deus.

Eu não podia acreditar, aquilo não estava acontecendo, era um sonho muito, muito insano.

Ele olhava para a própria mão, tremendo, como se ainda visse o fio ali. Então olhou para mim. Eu perdi a firmeza nas pernas.

Eu devia dizer algo? Ele falava português? Eu não podia me lembrar de nada que Isabella tinha dito sobre ele.

— Acho que eu preciso… – Falei, antes de recuar até uma cadeira e desmoronar sobre ela. Ele balançou a cabeça, concordando, então se encostou numa bancada.

Então… Sei lá, ele sorriu. E eu continuei congelado, apavorado. Notei como ele tinha uma dos dentes um pouquinho torto, como se fosse feito daquele jeito de propósito, para ele não ser totalmente perfeito. E serviu para me lembrar como eu passei a vida toda tendo certeza que não tinha uma alma gêmea e que mesmo se tivesse e um dia a encontrasse, não deixaria que isso me controlasse, eu escolheria meu próprio destino. No entanto chegou o momento e eu nem mesmo podia me mexer.

— Meu nome é Olen. – Ele disse baixinho, com um sotaque forte. Sua voz fez meu ânimo levitar um pouco, era rouca e agradável. – Como é o seu?

— Vicente. – Respondi.

— Vicente. – Ele repetiu, como se saboreasse a palavra. – O amigo da Isabella, agora percebo. Ela me disse de você.

Eu não consegui encontrar nada para falar. Me perguntei se ele sabia minha opinião sobre almas gêmeas, o quanto Isa tinha falado de mim para ele.

Oh, Isa.

Senti meus olhos embaçarem de lágrimas. O quanto ela gostava daquele rapaz? Eu tinha estragado isso. Ela sentiria raiva? Com certeza. Nossa amizade mudaria por isso? Eu rezava para que não.

— Veja… – Olen tirou um celular do bolso. – Me passe seu número. Vamos nos dar tempo para… – Ele abriu a boca, mas pareceu não achar a palavra certa para se expressar. – Entender. Ajustar. Mantemos contato, mensagens. Tudo bem?

Respirei fundo.

— Certo. Tudo bem. – Eu falei meu número e ele anotou. Então me mandou mensagem para que eu salvasse o seu.

— Nos vemos, então? – Eu achei que era uma despedida, mas pela forma que ele me olhou, esperava uma resposta.

— Claro. – Falei, encurralado.



4 – Fossa



Eu estava deitado há muitas horas.

Faziam dois dias desde o que aconteceu.

Depois daquilo eu fui embora sem falar com Isabella. Eu não queria ver a tristeza nela e saber que era minha culpa. E o pior de tudo é que me afastar de Olen doeu mais do que eu poderia ter entendido. Não era exatamente dor física, mas machucava quase tanto. Era como um peso apertando meu peito.

Eu já tinha ouvido falar disso, da reação química e de como o começo dos tempos com sua alma gêmea causar efeitos parecidos com o de uso de drogas. Eu estava, literalmente, em abstinência. Isso porque eu nem mesmo tinha tocado nele.

Me virei na cama. Meu celular estava sem bateria. Eu estava com fome e me sentindo miserável. Precisava urgente de um banho.

Demorei mais um par de horas para me levantar, ir ao banheiro e me enfiar debaixo da água fria.

O que eu ia fazer?

O que eu podia fazer?

Eu não queria ser refém do destino.

Imaginei ter que explicar para Olen que eu não ficaria com ele por causo do que eu acreditava. Até em minha cabeça soava ridículo e errado. A possibilidade de magoá-lo por isso fazia a dor em meu peito aumentar.

Ah, como eu odiava a existência da conexão entre as pessoas. Gostaria que o mundo fosse livre, nossas escolhas, com nossas mãos no volante que guiaria nossos futuros.

Terminei o banho com uma única decisão estúpida em mente: Ir visitar o meu pai.

5 – Meu pai é a melhor pessoa que já pisou na terra



Quando cheguei em sua casa era noite e meu pai estava sentado no sofá cochilando enquanto passava um jogo de futebol na televisão. O acordei e ele me jurou que não estava dormindo. Depois ele foi me fazer um café.

Enquanto eu esperava pelo café, fiquei andando pelo corredor. Haviam montes de fotos nas paredes, a maiorinha de minha irmã e eu, mas ainda tinha algumas de minha mãe. A mais bonita do dia do casamento de meus pais, os dois juntos, sorrindo como se nada no mundo pudesse abalar aquela felicidade. Será que minha mãe sabia que ainda havia uma foto daquelas na parede da casa de meu pai?

— Vicente? – Meu pai chamou. – Tá pronto o café.

Eu voltei para a cozinha. Nos sentamos juntos, comemos biscoitos acompanhando o café e falamos bobagens. Eu desviei do assunto quando ele perguntou de Isa. Ele estranhou, mas esperou um pouco antes de perguntar.

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— O que há de errado, meu filho?

Eu respirei fundo. Girei meu celular, desligado, entre os dedos. Olhei para todos os cantos da cozinha em busca de um apoio.

Irritantemente me lembrei do dia em que minha mãe chegou a nós e contou que tinha acontecido, de como ela pareceu perdida, do meu pai em cacos, minha irmãzinha pequena demais para entender. Naquele tempo eu me senti puxado por uma correnteza.

E agora me sentia de novo.

Meu sentiria rancor de mim? Raiva não é racional e eu não o culparia se ficasse irritado, ainda mais se soubesse sobre o envolvimento de Isabella.

— Eu conheci um cara, um rapaz. – Por algum motivo eu não conseguia falar sobre ser minha alma gêmea. Ainda parecia surreal.

— Se você veio para me dizer, de novo, que gosta de meninos e meninas, Vicente, eu diria que já sei disso faz alguns anos. – Ele sorriu.

— Não, eu… – Olhei para o chão, com medo de sua expressão, enquanto esfregava meu dedinho da mão esquerda. – Nós tivemos uma conexão.

Silêncio. Não ousei levantar a cabeça. Até que meu pai estava em minha frente e, me pegando de surpresa, me envolveu num abraço de urso.

— Meu deus, Vicente! Parabéns! – Ele disse, com alegria. Eu realmente, realmente fiquei surpreso.

— Pai…

— Por que você fez suspense para me contar uma coisa boa? – Ele olhou para mim. Ele sorria de verdade.

— Tá tudo bem para você?

— Por que não estaria? – Ele segurou meu rosto entre as mãos. – Meu filho encontrou sua felicidade, eu estou feliz também!

Eu não tinha pensado naquilo como “encontrar a felicidade”. Era estranho. Eu nunca tinha perdoado direito a minha mãe por uma coisa que ela não tinha culpa, mas meu pai que a amou a vida toda, que nunca esqueceu, ele estava bem com isso. A vida era mais louca do que eu pensava.

Abracei meu pai com força. Ele era, claramente, uma pessoa melhor que eu.

— Quando vou o conhecer?

— Nem eu o conheço de verdade ainda, pai.

— Mas vai conhecer. E acho bom que ele seja palmeirense.



6 – Ele gosta de café

Cheguei em casa e coloquei o celular carregar.

Haviam mensagens de Isa e de Olen. Claro. Eu tinha sumido por dois dias.

Respondi aos dois falando que eu estava bem, só tinha ficado sem bateria.

“Imaginei se poderíamos tomar um café juntos no fim de semana” Olen respondeu.

Eu pensei em negar, pensei mesmo, me manter um pouco mais de tempo longe. Mas antes que desse conta, eu tinha aceitado.

Era isso, eu tinha um encontro com minha alma gêmea.

Deitei na cama e abri a foto de perfil dele. Tão bonito.

Olha, eu era um cara bonito, eu entendia isso, mas ainda sentia que ele era muito areia para meu caminhãozinho.

Suspirei. Minha cabeça estava presa a bobagens.

7 – Ele gosta muito de café

Eu não queria evitar Isa, não queria mesmo, mas ela também não parecia tão disposta assim a falar comigo, então, claro, ela estava brava. Eu não a culpava.

Mas me culpava e esse peso, junto com a ansiedade do meu encontro com Olen, estava me matando.

Por isso nem mesmo lembro como cheguei a cafeteria no sábado. Minhas pernas pareciam ter se movido por si só, me levando até lá.

Foi insano entrar e encontrar Olen sentado numa daquelas mesinhas. Eu parecia estar prestes a entrar em combustão espontânea e minhas mãos suavam como nunca. E ele olhou em minha direção no exato segundo que entrei, como se soubesse. Bem, na verdade ela sabia. Como no momento em que nos encontramos, ele apenas se virou para mim, quase sem expressar surpresa.

Olen se levantou e eu parei atrás da cadeira em que deveria me sentar. E o mundo ao redor se tornou um borrão, mas de forma calmante, suave. O universo estava pintado nas minhas cores preferidas e eu podia respirar de verdade pela primeira vez em dias.

Eu não percebi, mas ele esticou a mão até meu rosto. Quando sua pele tocou a minha, minhas pernas fraquejaram e meus olhos fecharam. Eu fui para um outro mundo.

— Vamos nos sentar. – Ele disse baixinho.

Foi um pouco difícil voltar a realidade. Mas me sentei bem de frente para ele, onde podia observar os detalhes de Olen.

— Você quer tomar alguma coisa? – Ele ofereceu.

— Não sei. – Felizmente eu ainda podia falar. – Sim. Um suco de laranja.

Olen acenou para o garçom e pediu meu suco e um café grande para ele. Depois olhou para mim.

Seus olhos eram azuis. Mas uma cor clara, esverdeada. Ele tinha uma cicatriz pequena na testa e dessa vez usava um piercing no nariz, só um pequeno ponto brilhante. Sua barba estava feita e seu cabelo parecia ter sido arrumado com um secador. Oh, ele tinha se arrumado. Para me ver. Um calorzinho gostoso se espalhou no meu peito ao perceber.

— Você não parece brasileiro. – Ele me disse. Olen tinha as mãos sobre o queixo e me observava tanto quando eu a ele.

— Bem, você também não. – Brinquei. E ele entendeu de primeira, porque me mostrou seu sorriso brilhante. – Não acho que exista uma forma dos brasileiros se parecerem. Eu sei que tenho descendência de indianos, mas sei pouco sobre isso. No geral, posso supor que meus antepassados vieram de qualquer parte.

— Isso é muito… Rico. – Ele não pareceu achar a palavra certa para se expressar e dessa vez sorriu timidamente. Me perguntei se ele não era muito bom com conversas ou se apenas estava enferrujado em falar português.

— Acho que estou tão acostumado que não penso muito nisso. – Falei. – E você… Noruega?

— Isso mesmo.

— Como os vikings?

— Oh não, lá vem. – Ele sorriu.

— Devo te chamar de Thor?

— Eu estava pronto para essa. Devo te chamar de Capitão Nemo?

— Jogo sujo.

— Você começou.

Nós rimos. E logo nossas bebidas chegaram, então Olen pediu outro café antes mesmo de começar o primeiro.

E nós conversamos. Não coisas sérias, mas bobagens que nos faziam rir. Tínhamos gostos em comum para algumas coisas, diferentes para outras, mas um senso de humor parecido. Era confortável.

Muitos cafés foram bebidos, até chegar um momento em que eu realmente precisava ir embora para minha aula de música.

— Nos vemos semana que vem? – Olen sugeriu.

Respirei fundo. E me lembrei de Isa e todas as outras coisas complicadas em torno da situação.

— Não acho que… – Comecei a falar. Mas me perdi. O que eu achava? O que tinha de errado?

Olhei para Olen. Ele esperava, mordendo o lábio. Parecia tão ansioso por minha resposta.

— Se você vai dar aulas na universidade, não acho que vá levar uma semana inteira para nos vermos. – Falei. – Mas acho que devemos sair de novo no próximo final de semana.

Olen sorriu.

Oh deus, que sorriso.



8 – A culpa é do universo mesmo



Eu tive que tomar coragem para falar com Isabella.

Minhas mãos tremiam quando toquei a campainha do seu apartamento.

Ela abriu e sorriu quando me viu, mas não me abraçou.

— Entra. – Pediu, dando espaço. – Achei que nunca mais viria.

— Eu… – Minha voz falhou. – Vim me desculpar.

Olhei para baixo, envergonhado, enquanto mexia as mãos nervosamente.

— Vi… – Ela respirou fundo. Então veio até mim e colocou a mão no meu ombro. – Não vou mentir que não fiquei chateada, mas… Não fiquei irritada com você. Talvez com o universo, mas não com você. Não tem como ser culpa sua.

— Mas Isa… – Olhei para ela, ainda receoso. – Se não fosse por mim…

— Mas você existe, Vi. Vai se culpar por existir? – Ela sorriu um pouco. – Como eu poderia ficar bolada com você se você é perfeito para ele? O que eu poderia querer com alguém depois de descobrir que ele encontrou sua metade?

— Você tem direito de ficar brava.

— Tenho? – Ela deu de ombros. – É como dar murros em ponta de faca. Não me leva a lugar nenhum. Além do mais ele não era o amor da minha vida. É o da sua.

Senti meu rosto queimar e os olhos lacrimejarem.

— Mas… Por que esses dias sem falar comigo? Eu pensei que você…

— Eu precisava de um tempo para superar, tal qual você precisava aceitar. – Ela disse. E quando abri a boca para retrucar, como se tivesse lido minha mente, me interrompeu. – Sua história, o que houve com seus pais, eu sei o quanto isso te machuca até hoje.

Não respondi. Não queria falar disso. Mas era obrigado a ver, estava do outro lado da situação agora. Senti tanta raiva, durante tanto tempo, só para acabar passando por aquilo.

— Maldito universo. – Suspirei.

— Sim, é o culpado de tudo. – Isa concordou, fechando o punho como se fosse dar um soco no universo todo. Eu sorri um pouco e ela aproveitou minha guarda baixa para me abraçar.

9 – A derrota é doce

Durante a semana encontrei Olen mais vezes do que esperava. Poderia dizer até que ele (e eu mesmo) estava mudando de rota pelos corredores para nos encontramos e sorrirmos um para o outro, um pouco constrangidos, ou encostarmos para conversar um pouco.

Finalmente a semana acabou e eu pude sair com ele de verdade. Dessa vez fomos num shopping.

Ele me contou sobre seu país e sua língua, sobre alguns hábitos e tradições. Eu ouvia tudo tentando decorar cada detalhe.

As músicas que ele ouvia iam de metal norueguês a sertanejo romântico dos anos 90. Gostava de ovos com a gema mole, muito café amargo e bebidas alcoólicas doces. Falava fluentemente três línguas e se arriscava em mais duas. Dava aulas, estudava e amava bioquímica. E ficou impressionado só porque toquei um gaita. Falou que açaí era horrível, mas tomou o dele e o que não aguentei do meu. Prometeu que ia assistir jogos de futebol para entender as regras e torcer para o mesmo time que minha família e eu.

Quando o dia acabou, se alguém me perguntasse, eu podia afirmar com toda certeza que estava apaixonado por cada detalhe em Olen. Mas não disse nada para ele. Era muito cedo, deixa estar.

— Eu estou pensando em como contar para minha família. Que te encontrei. – Ele me olhou com uma expressão que eu não podia decifrar.

Já era noite e estávamos num canto afastado no lado de fora do shopping, sentados no chão, perto de uma pequena fonte. Eu me sentia tão cansado que poderia encostar a cabeça em seu ombro e dormir ali mesmo. Inclusive era uma ideia tentadora.

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— Bem, eu contei ao meu pai. – Respondi, me questionando de repente se deveria revelar aquilo ou se havia um tipo de regra social para essa situação.

— Sim, mas… – Olen esticou uma das pernas. – Tudo bem? Eu não quero fazer isso se não for… Se não tiver certeza.

Pensei nisso.

— Certeza?

— Isabella me falou sobre o que você acha disso. De ter a conexão. Ela tinha me dito antes, sabe? De acontecer. Falou sobre o melhor amigo dela não acreditar que o destino possa funcionar ou estar certo. Então eu não sei, tenho medo que você… Não queira.

— Ah. – Eu olhei para frente. Minha garganta estava seca de repente.

Não posso dizer que eu não tinha pensado e pensado e pensado nisso, mas até ali eu praticamente empurrei essa questão com a barriga.

Eu podia sentir o cheiro de Olen, ouvir sua respiração ao meu lado, sentir seu ombro encostado no meu. Dizem que o coração de almas gêmeas batem em sincronia. Talvez seja bobagem. Talvez a maioria do que falavam fosse bobagem. Mas Olen… Não me importava mais o que era real e o que não era, desde que ele estivesse perto de mim. Era assim que eu me sentia.

— O destino passou a perna em mim. – Finalmente falei, dando um sorrisinho meio desesperado. – Eu não vou dizer que antes eu queria. Mas agora que te conheci, Olen… Eu realmente revi minha opinião. Ainda acho um absurdo que as pessoas não possam escolher quem amar, mas se eu pudesse escolher, ainda estaria interessado em você.

Ele me encarou de uma forma que cheguei a me sentir constrangido.

— As coisas seriam diferentes se não fosse o destino. – Olen falou baixinho.

Pensei em como ele provavelmente acabaria namorando Isa. Meu coração se apertou.

— Ainda bem que o destino existe, então. – Falei, assinando definitivamente minha derrota.

Ele sorriu de canto. Então estendeu um braço e colocou no meu ombro. Respirei fundo e sorri. Posso ter sido passado para trás pelo destino, mas o final feliz foi meu.



10 – Mamãe

Não foi uma decisão fácil. Eu tive que engolir cada gota do meu orgulho e da minha vergonha. Ainda mais indo sem avisar.

Quando toquei a campainha, Gustavo atendeu. Ele me olhou, daquela forma que adolescentes olham para adultos chatos, e antes que eu pudesse falar qualquer coisa saiu gritando “mãããe”.

Respirei fundo. Gustavo não era meu irmão, mas ele chamava minha mãe de mãe. Filho do meu padrasto, um dia passou pela mesma situação que eu: teve seus pais separados pelo destino que escolhe quem deve ser sua alma gêmea ou não. A diferença é que eu reagi da pior forma possível, enquanto Gustavo abraçou a possibilidade de uma família diferente do que ele esperava, aceitou a existência de minha mãe e passou a amá-la. Não era à toa que ele desgostava de mim, o quanto imaturo eu devia parecer, tantos anos mais velho que ele e ainda batendo pé por um ressentimento antigo.

Eu finalmente podia ver isso com clareza, como se antes houvesse um antolho¹ nos meus olhos até as últimas semanas. E, parado ali na porta da casa de minha mãe, me senti pequeno. Eu quis correr e chorar como uma criança, sendo esmagado pelo peso das minhas ações de toda uma vida. E justamente por tudo isso que eu devia ser um adulto pela primeira vez.

Minha mãe apareceu, seus olhos grandes de surpresa. Com seu cabelo preto longo e pele cor de canela, ela parecia uma atriz ou uma rainha disfarçada de plebéia.

— Vicente? – Ela vacilou entre um sorriso e uma expressão preocupada. – Quanto tempo.

— Oi, mãe. – Suspirei. Então, abri os braços. – Eu posso….?

Antes que eu terminasse de falar, ela me abraçou com força. Com muita força. Fazia tanto tempo que não nos abraçávamos, que da última vez ela ainda era mais alta que eu.

Respirei fundo, mas não consegui relaxar.

— Eu vim pedir perdão. – Sussurrei, antes que perdesse a coragem ou a força nas pernas. Ela se afastou um pouco para olhar para mim. Parecia intrigada e em choque.

Depois de um longo momento, ela respondeu.

— Entra, vamos conversar.

11 – Meus olhos ficaram inchados

Eu era uma pessoa tão ruim que sabia que se estivesse no lugar de minha mãe, não perdoaria o que eu tinha feito. Mas ela ria tranquilamente de algo que contei, enquanto eu lavava os pratos do jantar, horas depois. Meu padrasto, sentado à mesa, me lançava olhares furtivos como se eu fosse mudar de ideia e começar a gritar com todos a qualquer momento. Apesar disso, o clima era estranhamente leve, se você ignorasse meus olhos vermelhos das horas que eu tinha passado chorando anteriormente.

Eu era uma pessoa ruim, mas não queria ser. Eu queria ser como Isa, como papai e como minha mãe, eu queria ser digno de Olen e seus olhares de admiração. Ah, eu precisava melhorar, e muito.

Enquanto passava sabão nos pratos me dei conta que o destino pode até controlar os nossos caminhos, mas somos nós que escolhemos como vamos reagir ao trajeto. Ainda era irritante que as pessoas não tivessem total controle de suas vidas, mas culpar unicamente o destino por tudo não era certo. Meus erros foram cometidos única e exclusivamente por mim, sendo que ainda assim fui presenteado com pais amorosos, uma amiga com um coração enorme e… Olen.

Eu podia até ter sido derrotado em minhas ideias, mas ainda tinha saído ganhando, não precisava ficar emburrado por isso.

Sequei minhas mãos, encostei na pia e observei minha mãe, meu padrasto e Gustavo interagindo por um momento. Me peguei sorrindo e, em seguida, chorando um pouco mais. Como era possível que eu ainda tivesse lágrimas?

Tirei meu celular do bolso da calça. A última mensagem era de Olen, avisando que estava estudando, com um monte de emojis de corações. Encostei meus lábios na tela e fechei os olhos.



12 – Céu azul

Mesmo que já não estivesse calor e mesmo que ele jurasse odiar aquilo, Olen comprou um pote de açaí.

Sentamos na grama, num pedaço sem sombra, para aproveitar o sol. O céu estava limpo e claro. Eu estava feliz, verdadeiramente feliz.

Muitas vezes me perguntava como seria um mundo no qual as pessoas não pudessem reconhecer suas almas gêmeas, mas sabia que de qualquer forma eu acabaria me apaixonando por ele. Então, pensando bem, estava okay as coisas acontecerem como aconteceram.

— Você poderia tocar alguma música para eu ouvir. – Olen sugeriu.

— Poderia? Hmm. – Bati meu indicador em meus lábios, teatralmente, depois olhei para ele. – Não sei. O que eu ganharia com isso?

Olen se inclinou e me beijou. Sua bota estava gelada, mas meu corpo se aqueceu.

Suspirei.

Que bonita era a vida.