O resgate do tigre

O portão dos espíritos


Começamos nossa caminhada que duraria vários dias. Eu permanecia como tigre, para me manter aquecido. Nos alimentávamos bem, com refeições fornecidas pelo fruto. Na hora de dormir, Kelsey montava a barraca e eu dormia com ela, para ajudá-la a se aquecer. Ela ainda sentia falta de Ren, eu não tinha dúvidas, mas era bom saber que eu podia substituí-lo, ao menos como o tigre de Kelsey.

Nossa rotina era bem estabelecida: eu na forma de tigre, abria caminho na trilha para Kelsey. Ela, por sua vez, era a responsável por preparar as refeições e acender a fogueira. O trajeto era difícil, mas Kelsey estava bem preparada fisicamente. Ainda assim, a medida em que subíamos, ela sentia mais dificuldades, por causa do ar rarefeito. Assim, parávamos mais vezes para descansar e beber água.

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No sétimo dia do nosso trajeto, eu me afastei para procurar madeira e um bom lugar para acamparmos, como eu sempre fazia. Eu nunca deixava Kelsey sozinha por muito tempo, e nesse dia não foi diferente. Após encontrar um lugar, eu voltava em sua direção, quando senti um cheiro no ar. Era o cheiro de um predador e ele estava próximo de Kelsey.

Imediatamente me pus a correr, com a esperança de alcançá-la antes dele. Então eu a ouvi gritar. Fiquei desesperado e consegui correr mais rápido. Avistei o urso sobre Kelsey, que estava deitada na neve, ferida.

Rugi furioso, chamando a atenção do animal. O urso bramiu de volta, virando-se para mim, ameaçadoramente. A fera atingiu a perna de Kelsey com a pata. Eu senti o cheiro do sangue dela e a ouvi gritar de dor, o que me deixou ainda mais furioso.

Rodeei o urso e então o ataquei, mordendo-lhe a pata traseira. Ele revidou enfiando as garras em meu dorso. Nós dois nos atacamos furiosamente, ficando ambos muito feridos e cansados. Eu me afastei um pouco e fiquei andando em círculos ao seu redor, tentando confundi-lo e cansá-lo. Eu estava cansado e o urso era muito forte, mas eu não iria desistir.

Algo atingiu o focinho do urso, fazendo-o se afastar num passo rápido, urrando de dor e frustração. Eram os raios de Kelsey. Imediatamente me transformei em homem e corri até ela, que tinha um ferimento feio na perna. Estava muito frio e eu precisei vestir as roupas de inverno antes de prosseguir. Depois amarrei um tecido na coxa e na panturrilha dela.

— Me desculpe se doer, mas preciso mover você. O cheiro do seu sangue pode atrair o urso de volta.

Eu a peguei no colo com delicadeza, mas ela gritou e se contorceu de dor, perdendo a consciência em seguida. Meu coração doeu-se de culpa e de piedade. Caminhei até o lugar do nosso acampamento e a coloquei deitada no saco de dormir. Depois, acendi a fogueira e comecei a examinar seus ferimentos. Eram um pouco profundos e poderiam infeccionar. Pedi ao fruto sagrado que produzisse algumas folhas que eu pudesse usar para limpar os ferimentos. Kelsey acordou quando eu usava a efusão em sua perna.

— Isso pinica! O que é?

— É um remédio à base de ervas para aliviar a dor, deter a infecção e ajudar seu sangue a coagular.

— Não cheira muito bem. O que tem nele?

— Canela, equinácea, alho, hidraste, milefólio e algumas outras coisas cujo nome eu não conheço em sua língua.

— Está doendo!

— Imagino que sim. Você precisa de pontos.

— Onde você... aprendeu a fazer isso?

— Lutei em muitas batalhas. Sei um pouco como cuidar de ferimentos como estes. A dor deve diminuir logo, Kells.

— Tratou de ferimentos antes?

— Sim.

— Pode... me contar como foi?— ela gemeu —— Vai me ajudar a me concentrar em outra coisa.

— Tudo bem.

Contei a história a ela enquanto cuidava de suas feridas.

— Parece um pouco melhor agora. Está latejando menos. E você? Seus ferimentos estão doendo?

— Já estou curado.

— Isso não é justo!

— Trocaria de lugar com você se pudesse, Kells.

Eu lhe entreguei um comprimido para a dor e um copo de água.

— Consegui parar o sangramento. Só um dos ferimentos me preocupa, por ser mais profundo. Descansaremos esta noite e começaremos a voltar amanhã. Terei que carregá-la, Kells. Acho que você não vai poder andar. Seus ferimentos podem abrir e voltar a sangrar.

— Mas, Kishan...

— Não se preocupe com isso agora. Descanse e veremos como se sentirá pela manhã.

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Ela me agradeceu por cuidar dela. Eu disse a ela que gostaria de poder fazer mais.

Eu me sentia mal pelo que tinha acontecido e me perguntava se Ren teria cuidado melhor dela. Eu não podia deixar de pensar que ela estaria melhor com ele do que comigo, afinal, ela o amava.

Quando Kelsey conseguiu dormir, não teve um sono tranquilo. Ela gritava e se debatia. Fui até ela e a chamei, sacudindo seu corpo para acordá-la. Ela agarrou minha camisa e arranhou meu peito e pescoço, como que para se defender. Então ela acordou e me olhou surpresa:

— Kishan?

— Você estava sonhando de novo.

— Ah, Kishan, me desculpe. Está doendo muito?

— Tudo bem. Já estão cicatrizando.

— Não tive a intenção. Estava sonhando com Lokesh de novo. Eu... eu não quero voltar, Kishan. Quero seguir em frente, continuar a procurar o portão do espírito. Ren está sofrendo. Eu sei.

Ela começou a soluçar. Estava disposta a se sacrificar para ajudar Ren, mas eu não podia deixa-la prosseguir com a perna daquele jeito. Eu não lhe respondi, apenas mudei de posição para abraça-la.

— Shh, Kelsey. Vai ficar tudo bem.

— Isso você não sabe. Lokesh pode matá-lo antes de encontrarmos essa porcaria de portão do espírito.

Ela chorava enquanto eu massageava suas costas.

— Lembre-se de que Durga disse que cuidaria dele. Não se esqueça disso.

— Eu sei, mas...

— Sua segurança é mais importante do que a busca e Ren concordaria com isso.

Ela riu,

— Provavelmente sim, mas...

— Nada de “mas”. Precisamos voltar, Kells. Quando estiver curada, podemos tentar novamente. Temos um trato?

— Acho que sim.

— Ótimo. Ren tem sorte... de ser dono do coração de uma mulher como você, Kelsey.

Ela me olhou nos olhos e tocou meu pescoço, no local onde antes haviam arranhões. Pude sentir toda a ternura em seu toque e seu olhar.

— E eu tenho sorte de ter dois homens tão maravilhosos na minha vida.

Peguei a mão dela e beijei.

— Sabe que ele não ia querer que você sofresse por ele.

— Nem que eu encontrasse consolo em você.

Eu ri.

— Não mesmo.

— Mas você me consola. Obrigada por estar aqui.

— Não há outro lugar em que eu desejasse estar. Durma um pouco, bilauta.

Eu me deitei com ela e a puxei para o meu peito, sentindo o calor de seu corpo junto ao meu. Ela suspirou e não demorou a dormir, desta vez tranquilamente. Então me transformei em tigre e continuei a seu lado.

Na manhã seguinte, quando pude voltar a ser homem, continuamos a viagem. Nós descemos a montanha de volta, mas Kelsey não conseguia andar. Assim, eu precisava carregá-la durante todo o trajeto, o que nos fazia viajar apenas 6 horas por dia.

A maioria das feridas de Kelsey já estava cicatrizando, mas o mais profundo começava a supurar. Dois dias depois, ela começou a ter febre, o que me deixou desesperado, porque nós não tínhamos antibióticos. Nós precisávamos chegar logo à cidade, mas eu só conseguia viajar poucas horas por dia na forma de homem. Senti raiva pela maldição.

Uma tempestade nos atingiu, mas eu continuei caminhando o mais rápido que eu podia. Com febre e mais susceptível ao frio, Kelsey perdia e recobrava a consciência constantemente.

Eu acabei me perdendo na tempestade e fiquei desorientado, sem saber para onde estava indo. Kelsey não se alimentava direito e já estava muito fraca. Eu tentava não deixá-la dormir, contando-lhe histórias e fazendo perguntas a ela. Depois de alguns dias, ela mal conseguia falar.

— Prometo que vou tirá-la daqui, Kelsey. Não vou deixá-la morrer.

Kelsey desmaiou novamente e eu comecei a correr desesperado. Não sabia mais o que fazer para ajudá-la. A única maneira de salvá-la era chegar até Kadam o quanto antes.

Então eu avistei algo não muito longe dali. Parecia um portão. Aproximei-me rapidamente e vi. No meio de uma extensão nua e branca de neve encontravam-se duas estacas de madeira. Enroladas em cada uma delas, viam-se longas cordas de um material que tremulava na tempestade, como rabiolas de pipas. Uma fileira de bandeiras coloridas estava presa em diferentes seções das estacas. Algumas das cordas estavam atadas à estaca oposta. Outras se achavam presas a anéis fixados no solo ou apenas balançavam soltas no vento. Acordei Kelsey:

— Kells. Kells! Pensei que estivéssemos voltando, mas acho que encontramos o portão do espírito!

Ela abriu os olhos e olhou em direção ao portão.

— Tem certeza? — ela perguntou muito baixo.

Eu respondi gritando acima do vento:

— Pode ser um monumento ou memorial criado por nômades, mas há algo de diferente naquilo. Quero verificar.

Eu a coloquei no saco de dormir e a levei até o portão. Ela adormeceu novamente.Eu a coloquei no chão e fui verificar se aquele era o portão dos espíritos. Em seguida, eu voltei a acordá-la:

— É aqui mesmo, Kelsey. Encontrei uma marca de mão. A questão é: devemos atravessá-lo ou voltar? Acho que devemos voltar e retornar depois.

Ela tocou levemente meu peito para chamar minha atenção e sussurrou fracamente:

— Não... Não conseguiremos... achá-lo... de novo... muito difícil. O Mestre do Oceano disse que... provássemos nossa... fé. É... uma prova. Temos... que... ten... tentar.

— Mas, Kells...

— Leve-me... à... marca de mão.

Eu não estava certo sobre isso. Estava com medo de perder Kelsey. Ela percebeu minha indecisão e apertou minha mão nas delas, dizendo para eu ter fé.

Eu a ergui e a levei até à marca da mão, colocando-a de pé, mas sustentando seu corpo enfraquecido. Retirei a luva dela e guiei a sua mão até a marca no portão. Ela deixou a mão ali por algum tempo e parecia se esforçar para que algo acontecesse. Quase chorando ela me disse:

— Kishan.. n...não... consigo. Estou com... muito... fr... frio.

Eu tirei as luvas, abri meu casaco e rasguei a blusa, colocando a mão gelada de Kelsey em meu peito quente. Encostei meu rosto no dela e massageei suas costas frias com minhas mãos, enquanto sussurrava cânticos em hindi. Quando senti que ela estava aquecida, me afastei, pedindo a ela que tentasse outra vez. Ela voltou a mão para a marca com a minha ajuda e fechou os olhos.

Depois de alguns segundos, a marca começou a brilhar, assim como as estacas, que começaram a balançar. Um filtro verde cobriu minha visão. O chão tremeu e fomos envolvidos numa bolha de calor. Enfraquecida, Kelsey caiu em meus braços.

Uma pequena bolha de estática se formou entre as duas estacas e começou a crescer. As cores mudavam dentro da bolha, inicialmente muito borradas para que fosse possível distingui-las, mas foram crescendo e começaram e entrar em foco. Ouvi um estouro e a imagem tornou-se nítida.

Vi a grama verde e um sol amarelo e quente. Rebanhos de animais pastavam preguiçosamente em meio a árvores frondosas. De onde estávamos, eu inalava o perfume de flores e sentia o sol em meu rosto, embora o granizo gelado ainda caísse sobre mim.

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Eu passei pelo portão com Kelsey no colo, maravilhado com o que acabara de acontecer. Eu ia dizer à ela como aquele lugar era incrível, quando ela desmaiou.