Amem

A Visita


— Padre Flávio, você não quer que eu vá? — perguntei um pouco confuso.

Talvez o meu desejo fosse o Flávio dizer para eu ficar. Afinal para mim ele era um exemplo de padre e se ele me aconselhasse a ficar, a ficar com o meu Miguel, eu deixaria de ver tudo aquilo como um grande pecado e ficaria ali, todavia eu sabia que ser apoiado por Flávio era praticamente impossível, simplesmente pelo fato dele ser esse padre tão exemplar. Ele nunca apoiaria uma relação como a minha com Miguel.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Não quero nem deixo de querer nada. A decisão é sua e você precisa estar consciente da sua escolha — declarou em tom sério.

— Eu estou, padre — disse com um tom de voz fraco.

Apesar de ter plena consciência do que estava fazendo, não me sentia corajoso bastante para tal, era como se a qualquer momento eu pudesse desistir da minha decisão, até porque a indecisão era uma marca da minha personalidade, para mim, parecia ser impossível estar seguro de algo e a cada momento isso tornava-se mais perturbador.

— E quanto ao Miguel?

— Deixei uma carta para ele. Na carta não digo para onde vou, mas digo que talvez, daqui a dois anos eu retorne.

— Você acha que essa é a melhor forma de comunicação? Não seria melhor ter uma conversa franca com ele e explicar as suas motivações para deixá-lo? — interrogou.

— Não, eu não conseguiria. Eu acabaria ficando e a nossa situação nunca se resolveria.

— Paulo, eu te entendo, mas também me preocupo com o Miguel. Será que ele vai reagir bem a tudo isso?

— Não sei, mas ele é um homem forte, padre. Ele irá se recuperar.

Na realidade, eu não sabia até onde ia a força do meu Miguel, obviamente eu tinha medo do meu abandono causar efeitos nefastos, entretanto preferia acreditar na força do meu amado, acreditar que Miguel era muito mais forte do que eu e suportaria essa distância entre nós da melhor forma possível.

— Assim eu espero. Agora a sua decisão está tomada. Você sabe que eu não sou, nem poderia ser, a favor dessa relação, mas caso, por algum motivo, você decida o Miguel ao invés do sacerdócio, saiba que a nossa amizade continuará a mesma, pois como já disse antes, vocês, ao contrário do bispo Meirelles, nunca forçaram ninguém a nada.

— Eu não entendo. Você não apoia a minha relação com o Miguel, mas também não a condena, isso não faz sentido.

— Padre Paulo, um padre não pode condenar algo ou alguém. Condenar é praticamente o mesmo que julgar e só Deus julga — respondeu calmamente.

A posição de Flávio sobre tudo aquilo era interessante, era visível o seu esforço para não nos julgar, pois a verdade era que o padre Flávio se portava da forma como todos os padres deveriam se portar. Ele levava a sério aquela história de não amar o pecado, mas sim o pecador.

— É verdade.

Um momento de silêncio instalou-se entre nós, porém eu logo o quebrei.

— Eu trouxe as coisas que você me emprestou.

— Pode ficar com as batinas. Aliás, deixe eu lhe dar mais algumas, você vai pro mosteiro é bom estar com algumas para usar lá e também no caminho.

— Não se preocupe, eu me arranjo.

— Eu faço questão, Paulo, espere um segundo.

Flávio foi rapidamente em seu quarto, colocou algumas batinas dentro de um saco plástico e me entregou. Achei aquele gesto tão bonito, aquilo significa que Flávio me via de igual para igual e me considerava digno de usar suas batinas.

— Obrigado… Chegou o momento de partir. Obrigado por tudo e na medida do possível cuide do meu Miguel.

— Farei tudo que estiver ao meu alcance, fique tranquilo. E se um dia você voltar, saiba que eu e a minha igreja sempre receberemos você e o Miguel, independente de qualquer coisa.

A fala do Flávio era comovente, meus olhos se encheram de lágrimas e eu quase chorei. Às vezes Flávio parecia ser o padre que eu tanto me esforcei para ser, mas não consegui. Ah, como eu torcia para que a carreira dele na Igreja fosse longe. Seria tão bom um bispo com a bondade dele.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Tchau padre, por favor, abençoe o meu caminho — pedi bastante emocionado.

— Espero que Deus te ilumine a cada decisão que você precisar tomar e te acompanhe sempre, para que você decida só o melhor.

— Amém.

Quando eu já ia partindo, Flávio pediu para eu esperar um pouco. Ele entrou em casa e em instantes voltou com um aspersório e aspergiu um pouco de água benta sobre mim. Depois da benção de Flávio, finalmente parti, uma longa viagem me esperava. Primeiro fui até a rodoviária, procurar uma passagem para a capital, para de lá poder pegar um avião para o Sul do país e enfim poder chegar até o mosteiro. Acabaria tendo que pagar mais caro pela passagem aérea, devido a falta de antecedência.

Felizmente achei passagem para a capital, o ônibus estava marcado para sair dentro de uma hora, enquanto esperava a partida dele, resolvi ligar para Ângelo e informá-lo sobre a minha decisão.

— Então você vai realmente para esse mosteiro?

— Sim.

— É triste ver que você está jogando fora um amor tão bonito.

— Não diga isso. Eu ainda não me decidi, vou pra lá pra tomar uma decisão com mais calma.

— Paulo, tudo bem. Eu não vou tentar te fazer mudar de ideia, você já é indeciso e eu não quero piorar as coisas. Devo avisar pra mamãe sobre o mosteiro?

— Não, porque não sei se vou ficar lá por muito tempo. Quando eu tiver permissão pra sair vou visitar vocês, mas por favor avise à Michele, ela me apoiou muito na minha história com Miguel.

—Tudo bem, irmão. Eu irei avisar.

— Obrigado por tudo, Anjinho.

— De nada, Paulinho. De nada…

Desliguei o telefone e tive vontade de ligar para Miguel, queria ouvir o doce som de sua voz, entretanto sabia que se fizesse isso, a minha coragem acabaria. Eu me perguntava a todo momento se aguentaria esse tempo longe do meu amor.

[...]

A viagem foi longa e cansativa, várias vezes tive vontade de voltar, de esquecer tudo aquilo e de ficar com o meu Miguel, porém achei melhor seguir em frente com a ideia do mosteiro. Eu precisava fazer uma escolha, não poderia ficar oscilando entre a Igreja e Miguel.

Quando o avião aproximava-se do seu destino, eu desatei a chorar. Fiquei pensando no Miguel e pedi a Deus que o meu amor tivesse reagido da melhor forma possível ao meu abandono.

[...]

Ao chegar ao mosteiro, fiquei surpreso com a grandiosidade do lugar. A imponente construção era localizada no interior, afastada de tudo e todos, repleta de área verde e com alguns prédios anexos. Fui recebido pelo abade Francisco e esse paciente senhor que deveria ter por volta de seus setenta anos, quis saber o porquê de eu desejar me isolar naquele lugar.

— Eu me chamo Paulo Oliveira e sou procurado por Dom Fernando Meirelles por ter abandonado a minha paróquia, juntamente com o padre Miguel de Jesus. Agora, eu estou arrependido, quero meditar um pouco sobre o que fiz. O senhor nunca ouviu falar de nós?

— Sim, cheguei até a ver uma fotografia dos dois, mas nessa idade a memória é muito fraca e eu acabei esquecendo. Mas por que abandonaram suas paróquias?

Fiquei em silêncio e voltei o olhar para o chão, tinha vergonha de revelar o motivo e também não queria mentir.

— Tudo bem, não precisa dizer. Aqui não interrogamos ninguém. Só pedimos que obedeçam às regras.

— Eu obedecerei — garanti.

— Como o senhor já deve saber, aqui a maioria fez voto de silêncio, então fala-se pouquíssimo e o senhor, se desejar, poderá iniciar o seu voto de silêncio a qualquer momento. Tome, essas são as regras — disse me entregando um livrinho e um papelzinho

— Ah, tome uma pequena lembrancinha para te ajudar nessa caminhada — completou, me dando um terço de madeira com cruz de ouro.

— Obrigado.

— De nada, agora o senhor pode ir para o seu quarto.

O meu quarto estava indicado no papelzinho recebido junto com o livro das regras, eu pensei que seria fácil encontrá-lo, porém eu me enganei. O lugar era grande e eu nunca achava a bendita numeração.

— É novo aqui? — indagou um padre que encontrei pelo caminho.

— Sim.

— Prazer, eu me chamo Rafael. O senhor quer ajuda para encontrar o seu quarto?

— Sim, padre, por favor.

— Deixe eu ver a numeração — pediu.

Mostrei a ele o papel e felizmente, Rafael sabia como chegar até o bendito quarto.

Caminhamos silenciosamente pelo mosteiro e a todo momento Rafael voltava olhar para mim, parecia preocupado comigo, eu tinha vergonha de encará-lo e sempre desviava o olhar para a bela arquitetura do mosteiro, arquitetura tão bela quanto o padre que me guiava. Rafael aparentava ter cinquenta anos, tinha cabelos grisalhos, pele branca, um olhar marcante e sedutor. Se eu não fosse apaixonado pelo meu Miguel, provavelmente me apaixonaria pelo Rafael, aquele homem era uma perdição em forma de padre.

— Está entregue, padre.

— Muito obrigado.

— Qual o seu nome mesmo? — perguntou.

— Paulo — respondi baixo, revelando a minha timidez e embaraço frente à beleza de Rafael.

— Seja bem vindo, padre Paulo. Espero que aprecie a sua estada no mosteiro.

Despedi-me e entrei no quarto, fechei a porta, sentei na cama e resolvi dar uma olhada nas regras. Abri o livro na primeira folha e lá vi coisas como tempo mínimo de dois anos, a importância do trabalho e da oração, as orações coletivas e individuais, o número de até duas chamadas telefônicas que poderia realizar por mês — com o telefone do mosteiro, pois o meu celular havia sido confiscado — as orientações à comunidade externa, que vez ou outra ia lá para buscar alento espiritual, e o risco de ser excomungado caso abandonasse o mosteiro sem autorização.

Não li todas as regras, já conhecia algumas e também estava cansado, acabei dormindo. Quando acordei já era quase de tardinha, porém eu não tinha fome. Fiquei recluso o resto do dia, somente no dia seguinte tentei interagir com os outros.

Acabei me aproximando mais do padre Rafael. Ele era simpático e voluntarioso, nós trocávamos poucas palavras, até porque não nos era permitido falar muito. Rafael me aconselhou a fazer voto de silêncio.

— Não sei — respondi confuso.

— Revigora a alma — argumentou — Saí de um a pouco — completou.

Estávamos no refeitório e quando o abade passou por nós, foi como se estivéssemos de volta ao ensino médio, nos assustamos e ficamos quietos. O abade Francisco se incomodava até com sussurros, Rafael me contou que o abade sempre fazia questão de lembrar o fato de estarmos num mosteiro e não numa colônia de férias.

[...]

Pensei bastante na sugestão de Rafael, porém depois vi que querendo ou não eu já estava num voto de silêncio. A cada dia eu falava menos não por medo do abade, mas sim por falta de vontade, peguei o hábito de me comunicar mais com gestos. Eu não tinha a menor vontade de interagir com ninguém. No final da minha primeira semana no mosteiro fui tomado por uma tristeza sem tamanho, quase não saía da cama. O padre Rafael foi bastante compreensivo e companheiro, às vezes levava até comida para mim no quarto, comida que eu praticamente não comia.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Que tal um médico?

Fiz sinal negativo com a cabeça.

Rafael não insistiu e começou a rezar baixinho. Em suas orações, ele pediu por mim, pediu para eu melhorar e eu me senti extremamente grato por aquilo.

O padre ficou um tempinho rezando, enquanto eu, em vão, tentava comer. Quando ele saiu me deu um beijo na testa.

— Fique bem — sussurrou.

[...]

Odiei a minha estada naquele lugar, ao invés de encontrar paz, só encontrava confusão. A saudade de Miguel aumentava a cada segundo. O abade sugeriu que eu trabalhasse no campo, ajudando com as plantações, porém passei mal no primeiro dia de trabalho. Acabei ficando com um trabalho um pouco mais leve, ajudando a preparar os alimentos.

O silêncio do local era terrivelmente incômodo e mesmo quando eu estava acompanhado por outras pessoas, me sentia só. Eu tinha vontade de fugir, mas não podia. Tinha vontade de gritar, porém também não podia. A verdade era que aquela havia sido uma má escolha e naquele momento percebi que eu não prestava para aquilo, não prestava para me dedicar a Deus, todavia, precisaria ser forte para aguentar o tempo que ainda faltava, pois se fosse para me afastar da Igreja eu não queria que fosse por meio de uma excomunhão. Eu poderia ser qualquer coisa, menos um excomungado, isso jamais!

Mantive-me forte na minha fé, as orações pareciam fazer o tempo passar um pouco mais rápido. Todos os dias rezava o terço. Ah, aquele terço, aquele terço em madeira e em ouro, me lembrava sempre da opulência da Igreja e da pobreza da grande maioria das pessoas.

Num dos meus solitários dias ali, fui surpreendido por batidas na porta do meu quarto.. Quando fui ver quem era, dei de cara com Rafael.

— O senhor tem visita.

Antes de eu questionar quem era, ele foi embora. E na mesma rapidez com que ele saiu de minha frente, a minha visita apareceu. Quando vi de quem se tratava, o meu corpo inteiro arrepiou-se, jamais esperava ver aquela pessoa ali.

— Entre, por favor — pedi.