Quadras

O Nômade


Da porta de casa a velinha dividia sua atenção entre a televisão chiando e o garoto no seu telhado tentando pôr a antena na posição adequada. Antes disso, Comfrey havia varrido a cozinha e aspirado o carpete da sala. Depois disso, ele ainda lavou o banheiro e consertou a encanação debaixo da pia. Com a lua já em posição, recebeu cem dólares da dona da casa, certamente o suficiente para três ou quatro dias, se economizasse. Quando já andava em direção a pickup, a velha resolveu interrogá-lo, coisa que não havia se dado o trabalho de fazer o dia todo.

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“Quantos anos você tem garoto?”

“Dezenove”

“Eu já conheci gente como você filho.” Ela tossiu por alguns instantes antes de continuar “Está fugindo de que?”

“Algumas pessoas só não servem pra morar num lugar só” Comfrey desviou os olhos, desconfortável em visitar memórias antigas.

A velinha sabia que ele estava mentindo, mas resolveu não perguntar mais sobre o assunto. “E para onde vai agora?”

“Vou seguir pra Montana, pro Rainbow Gathering”

A senhora Fieldman gargalhou. “A reunião regional de hippies? Bons tempos aqueles. Aproveite filho!

“Eu prometo que vou!” Comfrey riu de volta

“Tudo bem então, até nunca mais Comfrey Todd.”

“Até nunca mais, senhora Fieldman.” Eles se abraçaram e se deram as costas mutuamente, a velinha entrando em casa e o jovem sentando no banco da frente da caminhonete.

Numa estrada no meio das longas rodovias de Nevada, um posto de gasolina se erguia imponente. Árvores, bosques e rios o cercavam na distância de pelo menos três horas dirigindo com calma. Exatamente o tempo que Comfrey, na sua velha caminhonete vermelha, demorou para chegar lá. Ele parou ali para abastecer não o tanque de gasolina, mas o estômago, que roncava desde que deixara a casa da senhora Fieldman. O menino andou ferozmente até a pequena lojinha de conveniências e se pôs a caçar guloseimas.

Quando Comfrey chegou ao caixa, mais um carro estacionou do lado de fora e um homem entrou na lojinha compartilhando da mesma cara de sono dos outros presentes. Ele foi direto as máquinas de milkshake, chegando rapidamente ao caixa, do lado de Comfrey. Os três se cumprimentaram roboticamente e mantiveram o silêncio do local, com exceção do pequeno radinho tocando musicas de caipira.

“Eu preferiria música de elevador” Disso o homem na fila.

“Pode chegar em outro posto se quiser, daqui a três horas.” O garoto no caixa ironizou.

“Dá pra acreditar nesse cara?” O homem olhou para Comfrey, mas este desviou o olhar.

Imediatamente Comfrey reconheceu o sotaque californiano do homem e logo deduziu que o homem o conhecia, afinal todo mundo a Califórnia o conhecia. O rapaz pegou sua sacola e o troco o mais rápido possível, mas assim que se virou, já era tarde demais.

“Eu acho que conheço você de algum lugar” o californiano cerrou os olhos.

“Eu tenho certeza que não.” Comfrey andou até a porta.

“Não, eu conheço você sim! Você é Jason Altman, não é? De Sacramento!”

Comfrey revirou os olhos em frustração, já fazia mais de um mês que ele não era reconhecido.

“Sim, sou eu. Posso ir embora agora?” Ele já estava com a mão na porta, mas algo o impediu de sair.

“Cara...” o homem tomou um tom sério “A sua mãe ta muita puta contigo, e ela tá te procurando há um tempão.”

“Ela sempre está.”

“Muita puta contigo ou te procurando?”

Comfrey simplesmente foi embora. Pôs tudo na caçamba da caminhonete, por debaixo de um lençol velho com pressa, e voltou a dirigir na direção de Montana. Definitivamente não queria reviver as memórias da infância em Sacramento. Dirigir tão perto da Califórnia tinha sida uma ideia ruim, mas Comfrey já estava por consertá-la. Quando achou que tinha dirigido o suficiente, já pelas uma da madrugada, ele saiu da estrada e parou o carro em meio às árvores. Desnudou a caçamba revelando todos os bens que possuía. Dentre as aquisições, uma maleta de ferramentas, roupas dobradas em rolos, um violão e um lampião a bateria. Comfrey se ajeitou em meio aos lençóis, abriu uma embalagem de chips de batatas, acendeu um cigarro e se pôs a resolver as palavras cruzadas sob a luz do lampião. Aquilo era o mais próximo de uma casa que ele tinha desde que fugiu da casa da mãe, aos dezoito anos.

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Desde então, vivia dirigindo por todos os Estados Unidos, nunca ficava no mesmo lugar mais do que dois dias. Para ganhar dinheiro, fazia bicos aonde podia. Já foi aprendiz de mecânico, faxineiro, babá, caçador de veados e até guarda-costas. Uma vida instável, irregular e nem um pouco saudável, o que rendeu ao garoto um corpo magro e fraco, uma barba constantemente por fazer; o rosto cheio de sardas causadas pelo Sol e um cabelo castanho que chegava até as costas, que ele não lavada há semanas (tanto as costas quanto o cabelo).

Depois de uns minutos, com o cigarro já no fim, o garoto guardou o livreto e a caneta entre as roupas e se preparou para dormir. Antes que ele apagasse o lampião, porém, uma figura surgiu em pé a sua frente. Alarmado, Comfrey pôs a luz sobre ele, revelando um homem que parecia ter quarenta anos, os olhos puxados o fixando com sentimentos mistos. Ele rapidamente pensou em alcançar a pistola escondida entre as mudas de roupas, mas o homem não parecia ameaçador. Comfrey então desceu da caçamba com a lamparina na mão, mas assim que o fez se viu no topo de um prédio que, por alguma razão, sabia ser nas Filipinas. Confuso, ele olhou fixamente para o homem apoiado no terraço. Sem perceber, ele deu um passo na direção de Stefan, que sussurrou “Se ajudem”.

Com essa mensagem misteriosa, Comfrey se viu de volta a floresta, junto de sua caminhonete. Ele olhou ao redor, chamou por alguém umas vezes, mas logo reparou que não havia ninguém ali além dele. Passados alguns minutos ele resolveu dormir, sem saber exatamente o que tinha acontecido naquela noite.