Velório

ONESHOT — VELÓRIO


SENTADA EM UM BANCO afastado, a criança observava o quanto sua mãe chorava próxima do caixão no meio da sala. Abraçada com a um patético bichinho de pelúcia e ignorando os olhares e comentários penosos em sua direção, a menina tomava a consciência de que sua vida não seria mais a mesma depois daquele dia.

Como poderia, depois que seu pai havia tirado a própria vida?

Gumi tentara amenizar a verdade, insistindo que outra coisa teria acontecido. Mas a filha — inteligente demais para seus sete anos — captara os sinais da mentira sem grandes esforços. Na verdade, conhecendo bem o pai, seria um absurdo acreditar nas histórias que a mãe inventara. Yuuma havia cometido suicídio e era isso o que importava.

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Sentada no meio daquelas figuras cobertas de preto, Meg afundava-se nas lembranças do homem que mais amara na sua vida, enquanto procurava os porquês de ele ter tomado uma decisão que a machucava tanto. As perguntas brotavam em sua cabeça, como pipocas que a família fazia nas raras tardes de inverno, quando a neve possibilitava paz e tempo para desperdiçar com televisão.

A criança tentava evitar o principal questionamento, mas ele dançava ao seu redor, com um demoníaco sorriso, provocando-a insanamente, exigindo que a menina de mechas esverdeadas lhe desse a devida atenção. Meg lutava para não ceder, mas era uma tarefa impossível no meio daquela atmosfera cruel para uma criança, de modo que — sem mais forças — ela caía de joelhos, diante da figura implacável.

As perguntas jorravam em sua mente e imaginação, espetando-a, torturando a criança que não conhecia o significado de paz. Os pensamentos afirmavam que Yuuma não a amara o suficiente, afinal, se havia sido tão fácil tirar a própria vida, isso queria dizer que o homem não tinha a mínima consideração por ela e sua mãe. Qualquer pessoa teria a consciência do que uma morte poderia fazer para uma criança, o quão forte poderia afetá-la, mas o homem que Meg um dia chamara de pai simplesmente ignorara isso. Ele jogara o amor dela no lixo.

Abraçando os próprios joelhos, que estavam envoltos no tecido de profundo tom preto do vestido, Meg ignorou a bronca que a mãe poderia dar por sua terrível postura. O problema agora eram as lágrimas que queriam escapar, enquanto a menina revivia as lembranças de quando seu pai estava vivo.

Ela o amara tanto, a ponto de ignorar as infinitas falhas do homem. O amara mesmo quando ele não queria levantar da cama e fazia Gumi chorar escondida no banheiro, ligando para a doutora Kagamine e exigindo ajuda. Nesses dias, Meg deitava ao lado dele e ficava abraçada fortemente ao homem, sentindo o peito dele subir e descer em uma respiração lenta, forte e profunda. Ela desejava que seus abraços curassem o sofrimento que assolavam o homem. Ela rezava para que seu amor destruísse a tristeza que enxergava nos opacos olhos verdes. Por suas pequenas e magrelas mãos, ela tentava transmitir a salvação de seu pai.

Agora, um novo monstrinho juntava-se na valsa mórbida.

Sussurrava para Meg que seu amor não havia sido suficiente. Ela não fizera o necessário para manter Yuuma vivo. Sua incapacidade trazia tristeza para sua mãe e a morte daquele que tinha sido sua luz nas noites escuras, em que os pesadelos a atormentavam. Agora, as trevas iriam prevalecer e não haveria mais a voz paterna, cantando doces canções e transportando-a para outros mundos com histórias sobre reis e dragões.

Em um abraço agoniante, outra figura afirmava que a ruína de Yuuma havia sido a criança. Se Meg não tivesse nascido, o pai não precisaria abandonar a faculdade e seria um astrofísico renomado. Ele não ficaria triste, não faltaria ao trabalho, não precisaria das responsabilidades que uma criança traz... O homem seria feliz.

As drogas são culpa sua”

Sentindo a garganta apertar-se dolorosamente — resultado por segurar o choro — a menina fechou as pálpebras e abaixou a cabeça.

Sabia que naquela idade não devia saber da existência daqueles produtos químicos, pois nenhum dos seus amigos sequer compreendia o significado de tais palavras. No entanto, acabara por apreender nas discussões dos pais o que era aquilo, nas noites de insônia em que Gumi ficava sentada na sala, observando a porta de entrada da casa apreensiva, nas explicações desesperadas de Yuuma, suplicando perdão da mulher e afirmando que era só por aquilo que ele conseguia levantar, trabalhar e arcar com suas responsabilidades...

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Trabalho. Dinheiro, Responsabilidades.

Palavras de adultos, mas que Meg conhecia melhor que boa parte deles. Era culpa dela seus pais brigarem tanto. Seu nascimento havia interrompido os sonhos deles e os feito aprender as cruéis palavras. Ela fizera Yuuma viver somente ao redor disso. Ela destruíra a vida dele.

— Oh, Meg... O que está fazendo aqui sozinha? — Na tempestade de sentimentos e pensamentos, voz da doutora Kagamine fez-se presente e a criança abriu os olhos, assistindo a mulher aproximar-se.

— Vou fazer a mamãe chorar mais, se ficar perto. — Mentiu.

Ela só não conseguia contemplar o corpo de seu pai diante de si e aceitar que aquele rosto nunca mais iria sorrir ou abrir os olhos, para que a criança observasse o profundo dos olhos verdes e admirasse a ruga em sua expressão, quando ele ficava pensativo.

— Compreendo — Rin disse com gentileza, sentando-se ao lado dela — O que aconteceu... Eu não sei nem o que dizer. Foi algo que nos pegou de surpresa, sabe?

— Sei.

— Mas queria dizer que se você precisar de qualquer coisa, eu estarei aqui. Se quiser passar no meu consultório depois, eu vou te atender.

— Acha que eu vou ficar louca, doutora? — Meg disparou, sentindo as lágrimas voltarem — Era assim que chamavam meu pai: o louco dos remédios fortes. — Limpou as lágrimas e sussurrou, em uma respiração cortada: — A mamãe também vai ficar triste e se matar?

— Não! Não diga isso, Meg! O que aconteceu com o seu pai, foi resultado de um probl...

— Que sou eu, não é? Se eu não tivesse nascido, o papai seria feliz e não teria feito isso. — Soluçou, escondendo o rosto atrás das próprias mãos — A mamãe não estaria chorando e ninguém estaria aqui sofrendo.

— Oh, Meg...

A menina observou a doutora curvar-se, envolvendo-a em um abraço apertado.

— Seu pai te amava demais, Meg. — Explicou, suavemente — Os olhos dele brilhavam quando falava do quanto sentia-se orgulhoso pelo seu nascimento. Afirmo com toda a certeza do mundo que em nenhum momento ele te considerou um problema.

— Então por que ele fez isso? — Sua voz era fraca e dolorosa.

— Isso é difícil de explicar, querida. Seu pai estava sofrendo muito por causa dos pensamentos dele, que eram cruéis e o faziam sentir-se mal. Ele tinha muito amor no coração e sofria demais por isso.

A criança soluçou mais uma vez e a médica apertou o abraço.

— Nesse momento você vai precisar ser forte, Meg. Você e sua mãe vão precisar ser fortes e enfrentar isso juntas.

— Eu não sei como fazer isso. — Admitiu — Sinto falta do papai, quero abraçá-lo...

— Pense que ele virou uma estrela e vai iluminar o céu, olhando por vocês e as protegendo de todo o mal.

Uma estrela?

— Uma brilhante e linda estrela, que vai ser admirada por todos daqui da terra.

A criança analisou a Kagamine com curiosidade. Aquilo fazia sentido.

— Obrigada, doutora.

Rin sorriu.

— Agora acho que seria bom ficar perto da Gumi. Ela precisa de você.

Meg fitou a mãe e concordou com a médica. Abraçou-a mais uma vez e, em passos hesitantes, aproximou-se da mãe, abandonando todos os monstros que lhe sussurravam coisas ruins, deixando-os para trás falando sozinhos. Eles haviam dominado seu pai, mas ela não podia deixar-se abalar naquele momento: precisava fornecer ajuda para a mãe.

Meu amor... — Gumi sussurrou, ao notá-la e a dor cruzou sua face ao perceber o bichinho de pelúcia que a menina carregava: um presente de Yuuma antes de entregar-se para a morte.

A criança não disse nada, deixando-se ser envolvida nos braços quentes da mãe. O abraço foi forte, sofrido e repleto de amor e preocupação. Meg o correspondeu na mesma intensidade, escondendo seu rosto no corpo da mãe e permitindo-se chorar tudo o que andara reprimindo.

— Estou com medo do que vai ser de nós agora — Admitiu.

— Nós vamos viver. — Foi a resposta da mãe, soltando-a e fitando o corpo sem vida do homem que as duas amaram — Nós iremos sobreviver e viver... por ele.

Meg assentiu e as duas ficaram observando o corpo de Yuuma.

O corpo que nunca mais iria respirar.

O corpo que nunca mais iria sorrir.

O corpo de alguém que tinha vivido a maioria dos dias preso em um mundo cinzento, recheado de tristeza, vazio e que não podia ser compreendido.

O corpo que de alguém que tinha sido vencido pela depressão.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.