O pequeno intervalo de tempo entre a colisão com o carro e as palavras de Perseu foram o suficiente para fazer com que todo o corpo de Nico se arrepiasse. Até um minuto atrás, ele estivera com Reyna e Perseu na calçada da casa da garota — o rapaz estava sempre reclamando do quão abafada a mansão era, e honestamente, qualquer pessoa que não fosse Hazel (munida de seu completo desligamento com o mundo material quando estava pintando no porão) concordaria. Por isso, Nico resolvera com uma caminhada não poderia fazer mal a nenhum deles.

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Estava errado. Mas isso não era novidade.

Perseu, surpreendentemente, não comentara sobre o incidente com Annabeth e Will. Nenhuma palavra sobre o quase estrangulamento ou sobre a misteriosa sentença que saíra de sua boca. Na verdade, ele parecia nem se lembrar ao certo do que havia dito. Notoriamente, não era a alma mais cooperativa do submundo — era taciturno e mal-humorado, mas Nico não podia culpa-lo por isso, podia? —, mas também não era a mais trabalhosa de todas. Não parecia gostar da ideia de estar de volta ao mundo mortal, mas não havia feito nenhuma tentativa de escape.

Sendo completamente sincero, Nico achava que Perseu ainda não havia compreendido completamente a situação. Depois que Reyna basicamente o arrancara de cima de Annabeth pela nunca e o jogara contra a parede oposta com tanta força que o concreto cedeu, Perseu se mantivera longe da garota enquanto Hazel entoava seus cânticos e acionava a cortina de ilusão que permitiria que Nico os levasse de carro até o hospital mais próximo sem que eles percebessem, e que, com sorte, faria com que eles acordassem no dia seguinte achando que tudo não passara de um longo sonho.

Mas, desde então, Perseu estivera absurdamente recluso.

Até aquele momento.

Quando o carro vermelho surrado de Will adentrou na via, Nico sentiu algo estranho contorcer-se dentro dele. As nuvens pesadas que circulavam no céu pareceram concentrar-se sobre as cabeças deles, enquanto Perseu, sentado na calçada, acompanhava o movimento do veículo com seus estranhos olhos escuros.

Por instinto, Nico girou o anel de caveira no dedo.

Tudo deveria ter acabado muito mais rápido. Hades só havia pedido que eles trouxessem alguém de volta a vida — não havia comentado que seria necessário também que eles bancassem babás por dias a fio! Nico estava acostumado com os efeitos colaterais da ausência de sono, mas, recentemente, sabia que estava extrapolando os limites. Pela primeira vez no que parecia uma eternidade, seus olhos pesavam de sono. Seu corpo todo doía, músculos e nervos tensos. Parecia que alguém o acertava repetidamente com uma marreta nas têmporas a todo momento.

Ele não podia ter certeza sobre isso, claro, mas achava que se Hades o houvesse dito que trazer alguém de volta à vida teria esses efeitos, talvez Nico tivesse considerando melhor as suas opções.

Além disso, Perseu tinha os seus momentos.

Quando Nico encontrava-se particularmente distraído por alguma coisa, Perseu tomava essa oportunidade para fita-lo como um caçador a momentos do abate. Uma vez que o semideus percebia o olhar sobre ele, sentia um arrepio assustador.

Por algum motivo, Hades havia simplesmente sumido. Não era incomum que o pai saísse em viagens de negócios, mantendo as aparências afinal, embora até então Nico nunca houvesse tido uma razão para aguardar ansiosamente pelo retorno dele. No entanto, dia após dia, quando ele ou Hazel iam bater à porta do escritório, Perséfone sempre os recebia com a mesma curta e fria resposta.

Alguma coisa se remexia na cabeça de Nico toda vez que ele pensava que essa tal “viagem” poderia durar até aquela parte do ano na qual a madrasta ia embora. E então ele e Hazel seriam, literalmente, deixados no escuro. Não era a possibilidade que ele gostaria de considerar.

Quando as gotas de chuva começaram a cair com violência, Nico soltou uma exclamação surpresa. Levantou-se quase de imediato, buscando rumar de volta para casa, mas foi detido por uma visão: Perseu, de pé, com o rosto inclinado na direção do céu. De olhos fechados, ele permitiu que a água lhe ensopasse o corpo, parecendo estranhamente em paz.

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E, quando ele abriu os olhos novamente, suas írises já não eram escuras: eram verdes, e brilhavam. Nico abriu a boca para comandar algo: que parasse, que retornasse, que não fizesse...

Mas foi tarde. Em um momento, Perseu estivera ali, e no outro, uma rajada poderosa de chuva mandara Reyna para trás, escorregando no calçamento e dando de cara no asfalto. Nico engoliu um pouco de água da chuva quando exclamou, transtornado:

— Ó, céus...!

Reyna se remexeu onde estava. Ela tirou a faca que mantinha na bota e a cravou no asfalto, a lâmina — que não era de longe de material mortal — atravessando-o como se fosse algodão doce. Usou a faca para equilibrar-se, uma vez que a água que escorria da chuva parecia manda-la para trás, como algum tipo de feitiço.

— Eu vou atrás dele — garantiu — você fica aqui, caso eu, sabe, morra.

Reyna saiu correndo debaixo da chuva, pisando com mais força do que normalmente necessário, afim de estabilizar os passos. Chegou perto, mas não o suficiente: Perseu atingiu o carro como um furacão, mandando a lataria para trás.

No entanto, quando ele se virou para as duas garotas — duas? Nico fez uma nota mental sobre a de cabelos ruivos — e disse algo que ele não foi capaz de ouvir, olhos verdes brilhando na chuva, Reyna o acertou por trás. Os dois caíram embolados no asfalto, e Nico viu o brilho da lâmina de Reyna quando ela a sacou.

Tomado mais pelo desespero do que pela racionalidade, Nico correu até eles. Will foi o primeiro a vê-lo, e não reclamou quando Nico instruiu que ele o ajudasse. Em pouco tempo, estavam os três de pé e rumando em direção à mansão. Nico tentou não olhar para trás quando ouviu Reyna soltar o que pareceu o mais doloroso grunhido de sua vida.

Ele respirou fundo. Reyna era Reyna. Era filha de uma dessa da guerra. De todas as hipóteses (que consistiam, basicamente em A) deixar que os mortais lutassem, o que era totalmente fora de questão ou B) deixar que ele lutasse, o que parecia uma ideia pior ainda) aquela era a menos suicida. Se havia alguém ali que tinha uma chance contra um morto-vivo capaz de amassar a lataria de um carro, era ela.

Nico ficou repetindo isso enquanto caminhava de volta, os gritos de Reyna reverberando em seus ouvidos.

Quando enfim alcançou a casa, escancarou a porta com um chute e jogou Will — que estivera até então andando meio apoiado nele, pois torcera o tornozelo na queda do carro — de qualquer jeito no carpete, correndo pela casa e gritando pela irmã.

Hazel surgiu no vão da porta, um pincel equilibrado na orelha e macacão azul claro coberto de tinta amarela.

— Hazel? — Rachel repetiu, atônita.

A garota pareceu um tanto desconsertada, olhar grudado em Rachel por mais tempo do que Nico conseguiu entender, mas demorou um segundo para registrar a cena, antes de começar a agir, indo buscar gelo na cozinha e alguma coisa para o que pareciam ser queimaduras na pele das garotas.

Quando ele soube que a irmã tinha a situação sobre controle, voltou para o gramado, coração na boca com preocupação pela amiga. Antes que pudesse avançar mais, no entanto, Hazel exigiu que ele voltasse.

— Nico — ela engoliu em seco.

Estava ajoelhada no carpete em frente ao sofá no qual Rachel estava sentada, enquanto, em uma poltrona do lado oposto, Will pressionava uma bolsa de gelo no tornozelo com uma expressão sôfrega no rosto.

Ele aproximou-se. Quando chegou perto o suficiente para ver do que se tratava, a risada de Belona, vinda de algum canto na enorme casa, ressoou diretamente em seus ouvidos.

Eu avisei que muitas coisas poderiam ser perdidas nisso, pequeno Ângelo, veio a voz, rouca e completamente entretida, agora me diga, o quanto duas vidas mortais valem para você? Tic-toc, tic-toc.

Ao mesmo tempo, a porta de entrada rangeu. Ele virou o rosto a tempo de ver uma Reyna curvada e respirando com dificuldade jogar o corpo de um Perseu apenas parcialmente consciente no carpete. Um corte profundo postava-se entre os ossos da clavícula da garota, e ela parecia ter levado uma boa surra. No entanto, Perseu, que caíra de bruços, respirando pesadamente, parecia tentar lidar com as três facas cravadas em suas costas e o cutelo entre duas de suas costelas. O sangue — escuro, como o de Nico e de Hazel — escorria lentamente, manchando o tapete.

Ele levantou o rosto penosamente. Um filete de sangue escuro escapava do canto de sua boca e seus olhos estavam desnorteados, mas ele conseguiu fitar a direção mais ou menos certa de onde Annabeth estava.

— Zeus...

No momento seguinte, Nico foi puxado pela gola da camiseta, até estar frente a frente com o olhar gélido e metálico da garota, que, entredentes, rosnou:

— Eu estou morrendo, di Ângelo. E eu acho que mereço uma explicação.

O anel de prata em seu dedo pareceu formigar, mandando correntes elétricas da mão dele até o restante do corpo. Nico respirou fundo duas vezes, procurando o olhar de Hazel. As írises douradas da irmã estavam cravadas na mão de Rachel, pousada cuidadosamente em um joelho ralado. Nico então fixou o próprio no pescoço de Annabeth: não era visível, como a de Rachel, mas estava ali.

Estava ali, e expandia-se, lenta e preguiçosamente, como uma praga que sabe que não pode ser parada.

Uma marca de morte. Se Annabeth havia conseguido aquela marca após entrar em contato com Perseu, aquilo só significava...

Que Perseu não havia sido trago de volta. Ao menos, não inteiramente. E se uma parte de Perseu ainda estava no submundo, então ela se esforçaria para trazê-lo de volta — e levaria todos os outros consigo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.