Eu tinha uma amiga chamada Daliah. Nos conhecemos na época em que eu morava na Alemanha. Éramos bem jovens e ótimas alunas na escola. Isso nos aproximou, e vivíamos juntas pelos corredores: Daliah, minha irmã Grethel e eu.

Tínhamos outras amigas, é claro, mas formávamos o triozinho emblemático. Lembro que, todas as tardes, depois da aula, fazíamos as tarefas de casa e seguíamos para a praça. Passávamos a tarde brincando com os meninos, porque eu e Daliah nos dávamos bem com eles. Minha irmã tinha umas frescuras, mas sempre nos seguia e acabava sendo aceita no grupo também.

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Quando soubemos que iríamos nos mudar para Paris, nós três ficamos muito tristes, porque eu e Grethel iríamos embora e não podíamos levar Daliah. E, claro, não queríamos perdê-la.

Então, quando a família de Daliah foi se despedir da nossa naquela estação de trem, prometemos uma à outra jamais perder contato. Sempre continuar conversando.

No começo, meu pai estava meio cético em relação à promessa. Ele achava que formaríamos novas amizades logo e com o tempo nos esqueceríamos dela. Até que a primeira carta chegou.

Trocamos cartas todos os meses. Em uma semana, ela me enviava uma carta e na seguinte, eu e Grethel lhe enviávamos as nossas. Durante um ano, permanecemos neste ritmo, até que a crença de meu pai tornou-se parcialmente verdadeira, porque Daliah e Grethel pararam de se corresponder com tanta frequência.

De certa forma, eu até a compreendo. Grethel era dois anos mais velha que nós duas, e talvez Daliah tivesse começado a parecer-lhe infantil, em certo ponto. Na verdade, eu acho que até eu começara a lhe parecer infantil, apesar de toda a proximidade que sempre tivéramos.

Diferentemente de minha irmã, eu continuei conversando com a Daliah, mesmo tendo feito novas amizades. Eu ainda tinha afeto por ela, e pelo país em que ela vivia.

Em algumas das cartas, ela me contava coisas sobre o que estava acontecendo na Alemanha. Me dizia em primeira mão como estavam sendo ao vivo algumas coisas que eu só via nos jornais. Me falava de Hitler e de seus discursos.

Hitler. Ouvi mamãe dizer uma vez que nos mudáramos para a França assim que pudemos depois que ele se tornou o chanceler, porque papai não gostava dele. Nem um pouquinho. Mas nunca escutei-o de fato afirmando isto, aquela conversa eu ouvira escondido, porque meu pai nunca falara nem para mim, nem para Grethel sobre os motivos pelos quais quisera sair da Alemanha e pelos quais ainda recomendara que a família de Daliah fizesse o mesmo, se pudesse.

E era pelas informações secretas das cartas de Daliah que eu queria descobrir. Além disso, ela era uma boa conselheira e sempre me dizia a coisa certa a se fazer em relação a Fréderic Ambroise, um garoto que começou a marcar presença em algumas de minhas cartas pelo simples fato de ser muito chato, dizendo o tempo todo que ele queria me beijar.

Eu não o suportava, porque definitivamente ele não fazia o meu tipo, e Daliah me ajudava a tentar afastá-lo.

Assim, mesmo três anos após minha mudança, Daliah e eu continuávamos a trocar cartas. Em uma semana ela, em outra eu. Claro que às vezes atrasávamos um pouco, quebrávamos este ritmo e acabava sendo apenas uma carta por mês ou, vez ou outra, até mesmo uma carta em dois meses. Mas sempre mandávamos.

Por isso, achei estranho quando, no dia 11 de novembro de 1938, minha caixa do correio apareceu vazia, a não ser pelo jornal matinal, que meu pai logo agarrou.

Era a vez dela de mandar a carta. Por que simplesmente não estava lá.

Fui tomada por um misto de frustração e preocupação. Esta última porque a carta mais recente dela falava sobre como a Alemanha estava hostil e assustadora e do quanto ela temia que algo de ruim pudesse acontecer com o país. Aliás, a maioria das cartas mais recentes era nesse estilo, praticamente nem falávamos mais no Fréderic. E eu sinceramente nem me importava, porque a situação dela era realmente pior que a minha e eu me sentia mal por ela. A minhas respostas eram tentativas de consolá-la, mas eu devo admitir que ultimamente, pelas condições que ela me narrava, eu estava perdendo um pouco dos argumentos. O que só agravava o meu receio por ela não ter mandado sua carta.

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Mas não devia ser nada demais. Eu precisava ser otimista, certo? Talvez ela apenas tivesse se enrolado de novo e tivesse esquecido da data, por estar tensa demais. Ou o correio podia ter atrasado. É, não precisava me desesperar.

Ainda assim, eu estava chateada, por isso, fui até meu quarto e peguei um livro para ler na sala, buscando me distrair.

Mal havia começado o capítulo quando ouvi meu pai exclamar irritado de sua poltrona, onde lia sua edição do jornal da cidade:

- Bárbaros!

A fúria em sua voz chamou a atenção da casa toda. Grethel parou de bordar a almofada em que estava trabalhando e minha mãe parou de lavar a louça, para indagar:

- O que aconteceu?

- Hitler aconteceu!- respondeu ele, inflamado. – Sua corja, na madrugada de anteontem, destruiu centenas de patrimônios judaicos. Há vários mortos, feridos e desaparecidos. Estão chamando de Noite dos Cristais, por causa da quebra das vidraças de várias lojas.

- Oh meu Deus, que horror! – mamãe se comoveu, com a mão no peito.

Grethel olhou para mim. Seus olhos azuis estavam arregalados. Antes que eu pudesse processar o que aquilo significava, ela me perguntou, a voz tomada por certo pânico:

- Luce, você recebeu a carta da Daliah hoje?

Minha primeira reação, a mais rápida, foi franzir o cenho. O que aquilo tinha a ver com o que papai acabara de mencionar? Mas então, eu entendi. Eu entendi.

Senti o corpo todo estremecer. As lágrimas invadiram meus olhos, enquanto o desespero e o desalento invadiam meu peito. O ar faltava um pouco. Não podia ser... ela era minha amiga.

- Não... – me forcei a responder, com um fio de voz, antes que as poucas lágrimas se transformassem em uma cascata, inundando os ombros de minha irmã que correra para me envolver de imediato.

Daliah era judia.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.