O Caminho da Andorinha

Perturbação nas Montanhas


Teméria, 1279.

Montanhas de Mahakam

(Dois meses atrás)

Um pouco de sangue gotejou das mãos de Saskia. Não era um corte profundo, como muitos outros que a jovem guerreira já tivera em sua vida atribulada em um campo de batalha, mas foi o bastante para irritá-la. O sol já estava alto, a água já fervia na panela e em breve, Iorveth apareceria ali. Os legumes não estavam completamente picados ainda porque a faca precisou ser amolada. E agora, ela estava amolada até demais, a ponto de não perdoar a pressa da rebelde em terminar o almoço.

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E agora, Saskia havia se cortado. Amolando uma faca de cozinha, e não uma espada. Quem poderia pensar...

Havia um tempo que Saskia não segurava uma espada de aço com outro intuito que não fosse massacrar mais um pouco os espantalhos de palha montados nos fundos de sua casa. Não foi bem assim, há alguns anos atrás. Quando a jovem guerreira chegou, ao lado de Iorveth, nas montanhosas e pouco acolhedoras montanhas de Mahakam, o começo foi difícil e sangrento. No início, foram os anões e suas piadas repletas de ironia e que, embora tudo “não passasse de uma brincadeira”, como diziam alguns deles sobre a situação dos rebeldes de Vergen, tanto Saskia quanto Iorveth sabiam que havia um fundo de verdade ali.

Boa parte dos que estavam em Mahakam haviam recusado participar das fileiras de rebeldes de Vergen. Ora porque tinham sua família e próprio negócio para tocar, ora porque não se simpatizavam com a causa a ponto de arriscar suas robustas barbas no reino vizinho. Alguns até alegavam a preguiça de descer as montanhas – estes, Saskia notou, eram os anões mais gordos e que pouco faziam pela comunidade anã em geral.

Mas a teimosia de Iorveth venceu as piadinhas, e não tardou para que concedessem uma casa pequena, mas aconchegante, ao elfo na terra dos anões. “Aproveite e trepe bastante”, disse um deles, ao entregar as chaves da casa de pedra, que agora Saskia compartilhava com ele. Saskia chegou a ver os lábios de Iorveth se entortarem em uma feição macabra, mas o Scoia’tael era maduro o bastante para saber aguardar a hora certa de dar o troco, e de uma melhor maneira que um soco bem colocado no rosto, não importando o quão sedutor pudesse ser esta idéia. Havia resistência entre os anões, mas Iorveth sentia-se capaz de vencê-la.

Mas nem todos enxergavam tamanha boa vontade na presença do elfo por ali. Na semana seguinte, representantes das autoridades de Mahakam logo bateram à porta. Fizeram inúmeras perguntas, boa parte delas envolvendo os Scoia’tael, e principalmente, o que planejavam as duas figuras mais controversas do Norte naquelas montanhas ricas em minérios. A conversa não acabou com uma expulsão, mas sim com uma promessa. Uma promessa de que as coisas ficariam feias se eles se intrometessem na política dali.

Obviamente, Iorveth estava pouco se fodendo para a beleza ou feiura da vida, e tratou logo de se movimentar. Aos poucos, com a perícia de um agitador e a sutileza de um guerrilheiro, o elfo começou a adquirir a simpatia dos anões e também, com o tempo a ouvir seus problemas. Logo percebeu que eles eram bastante desunidos e brigas entre clães anões por futilidades não eram incomuns. Na verdade, Iorveth achou milagroso que nenhum soberano do Norte não tivesse aproveitado essa falha naquela sociedade, que dormia sobre minérios e minas tão almejados por qualquer dh’oine.

Custou-se dois anos. Dois anos de desentendimentos, brigas e até mesmo duelos, mas os mesmos homens que haviam batido à casa de Saskia e Iorveth para debruçar ameaças agora tinham suas cabeças em estacas. E é claro, as cabeças de seus mandantes também tiveram o mesmo destino. Foi preciso um pouco de derramamento de sangue e diplomacia, mas todos precisavam admitir: desde que Iorveth se meteu na política local, os anões estavam mais fortalecidos.

Mas Iorveth ainda não estava satisfeito em ter apenas os anões ao seu lado. Ainda havia o seu povo, seu verdadeiro povo, que estava fora daquelas montanhas, padecendo nas mãos dos intolerantes dh’oines, passando todo tipo de horror e sofrimento imaginável. Aqueles eram tempos difíceis para os inumanos, e especialmente para os elfos, mais perseguidos do que nunca.

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Mahakam é um complexo de montanhas que os dh’oine jamais se atreveram a tomar dos anões, mas não era completamente isolado. Os comerciantes que negociavam com os anões trataram de espalhar pelo Norte a notícia de que Iorveth e Saskia haviam feito uma espécie de “revolução” por lá. E ao contrário de Vergen, Mahakam prosperava, intocada pelos dh’oines. Em meses, as primeiras caravanas de elfos chegaram. Homens e mulheres – apenas duas crianças dentre centenas – aportaram nas montanhas frias e pedregosas dos anões, trazendo tudo de bem que possuíam e um bocado de esperança, além de muita vontade de recomeçar sob a liderança certa.

O único sangue que Saskia viu nos últimos anos era o seu próprio. E de certo modo, isso era reconfortador.

De certo modo.

Saskia já havia passado dos trinta anos. Nos últimos anos, sentia-se estranhamente fascinada por crianças. E foi assim, de modo despretensioso, que a guerreira deu-se conta de que seu organismo clamava pela maternidade. Apesar do sangue draconiano, Saskia era humana e ainda estava em idade fértil, pronta para gerar filhos, mas havia um problema: Iorveth. Ele era estéril, pois já tinha mais de duzentos anos de idade. Era um “elfo de meia-idade”, algo que Saskia gostava de dizer só para irritá-lo às vezes. Saskia sabia que os elfos eram férteis apenas nas primeiras cinco décadas de vida, algo que ela sempre considerou injusto para seres que vivem de três a quatro séculos, em média.

E no fundo, Iorveth sabia de seu desejo.

Nos últimos anos em que estiveram juntos, os dois jamais conversaram sobre filhos. Talvez porque não houvesse necessidade, afinal Iorveth era estéril, e pronto. Saskia estava ciente de sua limitação quando propôs seu relacionamento, fazendo a hipótese de uma criança ser claramente descartada. Já estava claramente difícil disfarçar os sinais, como a enorme paciência de Saskia para com as poucas crianças inumanas que habitavam Mahakam, e tudo se tornou pior quando um comerciante da Teméria chamado Arkles apareceu em sua casa. Ele era conhecido dos anões por suas transações comerciais, e aos poucos, também se tornou conhecido de Saskia e Iorveth, mas a coisa mudou de figura quando ele bateu à porta dos rebeldes com uma criança de dez anos ao seu lado.

“Não quero deixa-lo na estalagem porque os anões falam muita besteira”, alegou o comerciante, pedindo para pernoitar com eles. Reticente e de poucas palavras, Iorveth não objetou, mas também não se mostrou o mais hospitaleiro dos homens. Trancou-se no seu quarto logo que a refeição foi servida, deixando Saskia e o menino sozinhos. Enquanto conversava com o pequeno temeriano, tudo que Saskia pôde ouvir de Iorveth naquela noite foi o som triste e soturno de sua flauta, cuja melodia escapava do quarto. Foi naquele dia que Saskia percebeu que o distanciamento de Iorveth perante as crianças tinha uma explicação muito mais complexa do que ela presumia.

Desde então, o menino chamado Carl estivera quatro vezes a pernoitar em sua casa. Na quinta vez, foram três dias. E na sexta e última vez, uma semana. O menino partiu há apenas um dia, recordava-se Saskia, mas ela já sentia falta dele. Ele era bondoso, obediente e bastante prestativo. A ausência dele parecia ter tornado a casa mais vazia do que deveria.

Mas é claro, Saskia jamais comentaria isso com Iorveth. Sentia que o elfo ficava mais tempo fora de casa quando o menino estava por perto, “ocupado” com os problemas diários de Mahakam que só a difícil convivência entre anões e elfos poderiam causar. Mas não deveria ser coincidência que esses problemas se agravassem sempre que Carl estava de visita em sua casa.

—Saskia!

E falando nele...

Deixando a faca de lado, Saskia terminava de despejar os ingredientes na panela quando Iorveth entrou na cozinha. Em suas costas, seu inseparável arco e aljava recheada de flechas. Seu semblante não era dos mais agradáveis.

—Você se feriu.

Não foi uma pergunta de Iorveth, mas uma constatação. Saskia, então, percebeu que ele estava falando do corte em sua mão.

—Superficial. Amolei demais a faca. Mas o que foi? Você parece abatido.

O elfo assentiu.

—Mais uma briga entre Baradan e Gronj.

Saskia franziu a sobrancelha. Essa briga entre o elfo Baradan e o anão Gronj estava se desdobrando há meses. Não era preciso maiores detalhes para que a guerreira entendesse o que havia acontecido. Decerto, outra vez o anão Gronj andou a declamar “gracejos” para a esposa de Baradan.

—Esses dois vão acabar se matando. – disse Saskia, deixando a panela com legumes fervendo. Ao dedicar atenção à sua mão, Saskia percebeu que nem era necessária uma atadura, pois o sangramento já estava estancado, estando o corte reduzido a uma mera linha em sua pele, praticamente seca. Em algumas horas, não haveria ferimento algum, graças às propriedades curativas do seu sangue draconiano.

—Pois seria melhor que se matassem logo. Seria um problema a menos. – disse Iorveth, deixando recostado a um canto seu arco e aljava. Livre de suas armas, Iorveth retirou do topo da lareira uma caixinha, onde o elfo mantinha sua coleção de cachimbos à sua disposição. Acendendo seu cachimbo curto com um pedaço de brasa da lareira, Iorveth acabou por voltar seu olhar para um pequeno peão de madeira. Decerto, um brinquedo esquecido pelo menino Carl.

Com Saskia longe de suas vistas, Iorveth atirou o peão ao fogo.

—A sopa estará pronta em breve. – disse Saskia, já presente na sala, enquanto Iorveth assistia ao peão queimar, oculto em meio à lenha.

—É impressão minha ou essa sopa atrasou um pouco? – perguntou o elfo, deixando fumaça escapar de sua boca a cada palavra.

—Culpe Dirwen, que mais uma vez ficou até tarde bebendo na taverna e se esqueceu de trazer os meus repolhos.

—Anões podem ser uma péssima influência, até ao mais sério dos elfos.

—Ao menos ele está se dando bem com os anões, se entrosando com eles. O mesmo não se pode dizer de metade dos elfos que vivem por aqui. Se houvesse mais Dirwens e menos Baradans, o almoço seria o jantar, mas ao menos você não teria que ficar o dia todo apagando incêndios por Mahakam.

Iorveth estava prestes a fazer um comentário sobre os ditos “incêndios de Mahakam”, mas não foi preciso. O próprio incêndio se materializou sob a forma de batidas fortes à porta. Abrindo a porta, Iorveth foi recebido por um anão, Gothrie.

—O Conselho está solicitando uma reunião urgente.

§§§§§§§§§§§§§§§§§

O “Conselho”.

Quando Iorveth chegou à Mahakam, notou que o sistema político dos anões era ainda pior do que imaginava. As reuniões do Conselho de Anões nada mais que consistiam em uma roda na pesada e antiga madeira de mármore anã onde assuntos sérios acabavam concorrendo com competições de peido e arroto, quando não um argumento acalorado terminava com um dos membros do Conselho tendo sua garganta cortada porque xingou a mãe de um deles. A inserção de Iorveth foi difícil, mas a chegada dos elfos, inevitavelmente, trouxe benefícios ao lugar, a ponto de anões aceitarem “representatividade élfica” por ali.

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A dita “representatividade élfica” consistiam em Iorveth, Saskia e mais dois elfos de notório respeito: um alquimista-cirurgião e um armeiro.

Quando o último assento da mesa foi ocupado, a reunião teve início.

—Qual o motivo da urgência desta reunião? – começou Iorveth. Guthier coçou sua vasta barba negra, antes de pigarrear.

—Um roubo.

Um forte burburinho começou a ser ouvido entre os presentes à mesa. Se havia algo imperdoável entre anões, era roubo. Nos pensamentos de seres, tão comprometidos com comércio, o ato de roubar era inadmissível.

Iorveth suspirou com discrição. Roubo. Elfos e anões já tinham mil motivos para brigar, mas nada tão grave que um pouco de conversa não pudesse resolver. Mas roubo... Já era uma questão diferente.

—Recebi esta manhã uma denúncia de roubo, que foi apurada e confirmada.

—Mas o que exatamente foi roubado? – perguntou um dos anões. Imediatamente, Iorveth percebeu Guthier entreolhar-se com Dwer, um dos anões com conhecimentos científicos e que se autodeclarava um cientista, sendo motivo de escárnio entre elfos.

—Uma de minhas criações.

Algumas risadas foram escutadas.

—Não riam, é sério! – reclamou o cientista, com vigor a ponto de surpreender alguns presentes. Afinal, Dwer era sempre calado, enfurnado em seus livros e experimentos que não davam em nada.

—Espero que tenha algo melhor para ser tratado nesta reunião, Guthier, do contrário ficarei muito puto da vida por me fazer chegar atrasado ao meu sagrado pôquer de dados da taberna.

—Se vocês fizessem uma mínima idéia do que está em jogo...

—Mas nós fazemos, Dwer. – disse um dos anões, contendo uma risada. – Uma das suas invenções imbecis, que servem para porra nenhuma.

As risadas tornaram-se ainda mais fortes. Longe de participar delas, Iorveth e Saskia se entreolhavam. Guthier era um anão serio e responsável e reuniões de brincadeira não condiziam com seu perfil. Apesar de envolver uma das invenções mirabolantes e imprestáveis de Dwer, algo lhes dizia que a questão era muito mais séria, longe de provocar risadas.

—Silêncio, caralho! Porra! – ordenou o sujeito, finalmente sendo obedecido. – Dwer, faça uma demonstração do que foi roubado. – pediu Guthier, com seriedade.

O anão inventor assentiu, retirando do bolso uma pequena esfera e um objeto de formato cilíndrico, com um barbante amarrado na ponta. O objeto cabia em sua palma da mão, percebeu Iorveth.

—O que esse troço fará dessa vez? Falar? Imitar um cachorro? – caçoou um dos anões. Compenetrado e disposto a mostrar-se certo, Dwer colocou com cuidado o objeto cilíndrico sobre a mesa, inseriu uma pequena esfera dentro dele e tomou o candelabro nas mãos. Aproximando o barbante do fogo, Dwer olhava para os presentes à mesa. O escárnio logo foi substituído por curiosidade, senão apreensão. Em seus séculos de vida, nenhuma de suas invenções proporcionou tamanha reação, considerava Dwer. E aqueles olhares de curiosidade e expectativa em torno de seu invento já eram recompensadores o bastante.

Com o barbante pegando fogo, sendo consumido rapidamente pelas chamas, a reação de Dwer foi rapidamente direcionar o objeto na direção de uma parede, a uma distância segura da mesa. Logo que a atingiu, uma forte explosão se seguiu. Estilhaços de pedra voaram pelo lugar, seguidos de uma nuvem de poeira que fez Saskia tossir. Quando a nuvem de poeira se dissipou, pasmo tomou o semblante de todos, menos de Dwer.

Um pequeno buraco na parede havia se formado.

—Que porra é essa?! – exclamou um dos anões.

—Como um objeto tão pequeno assim foi capaz de destruir a parede?

Animado com tantas perguntas, Dwer deixou escapar um sorriso.

—Lembra-se da pólvora que usamos na detonação das minas? Pois bem. Encontrei um novo uso para aquele excesso de estoque. Consegui criar um dispositivo capaz de disparar projéteis.

—Como balestras, catapultas...?

—Exatamente. E tudo isso sendo necessário apenas fogo e pólvora. Uma catapulta precisa de um bom número de pessoas para funcionar, enquanto minha nova invenção só requer uma pessoa para inserir o projétil e acender o barbante.

—Finalmente conseguiu inventar algo útil, hein! – exclamou um deles, suscitando risadas dos demais anões.

—Mas afinal, o que exatamente sumiu?

—O projeto do protótipo. Estava trabalhando em algo maior do que essa demonstração, mas meu projeto foi roubado. Medidas, especificações, anotações... Tudo estava presente no projeto. E simplesmente sumiu.

—Puta merda! – exclamou alguns anões.

—Não entrem em pânico. Colocaremos os nossos melhores homens para vasculharem o laboratório de Dwer, ou até mesmo sacudir Mahakam desde a fundação, se preciso for. Encontraremos esse projeto, e especialmente, saberemos quem foi o cretino que nos roubou. Ele estará fodido.

—Eu posso ajudar. – ofereceu-se Iorveth, sendo aceito na busca.

§§§§§§§§§§§§§§

—Sentindo cheiro de alguma coisa?

Iorveth voltou-se para Saskia. Os dois estavam no laboratório de Dwer, junto a mais três anões. Mais meticulosos, Iorveth e Saskia olhavam para papéis, objetos fora do lugar ou qualquer anormalidade. Mas naquele laboratório, absolutamente tudo soava anormal. O local era uma verdadeira bagunça, dando a impressão de que alguém esteve ali e revirou tudo, enquanto Dwer dizia com veemência de que encontrara o laboratório exatamente do jeito que deixara. Pratos sujos, com restos de comida, roupas espalhadas e a fina camada de poeira sobre os objetos deixavam muita dúvida quanto a isso.

—Sempre que diz isso, faz com que eu me sinta como um cão.

Saskia riu. – Não tenho culpa se seu nobre e puro sangue Aen Seidhe deixa tuas narinas tão apuradas quanto a de um cachorro.

—Puro, sim. Mas nobre... Isso é coisa de dh’oines. Não há títulos de nobreza entre os Aen Seidhe. Mas respondendo à sua pergunta, não. É extremamente complicado sentir qualquer coisa relevante. O cheiro de tantos componentes químicos impregnados neste lugar atrapalha o meu olfato.

—E convenhamos, cheiro de anões também não ajuda.

Iorveth voltou seus olhos aos anões, procurando o recinto com seus machados em mãos, como se uma fera selvagem estivesse prestes a aparecer a qualquer momento dali.

—Não queria entrar nesse detalhe, mas sim. – disse Iorveth, deixando curvar levemente o canto de seu lábio. Algo que Saskia reconhecia como um sorriso.

—Encontramos o ladrão! – exclamou uma voz, do lado de fora. Iorveth e Saskia se sobressaltaram, imediatamente deixando o laboratório. Logo, depararam-se com uma grande confusão do lado de fora.

—Aqui está o ladrão! Pegamos na estrada, fugindo e todo esgueirado como um rato! – disse um dos anões, entregando a Dwer um pergaminho. – Veja se este é o seu projeto, Dwer. Estava nos pertences dele.

Um dos escudeiros de Mahakam trouxe à luz ninguém menos que Arkles, o pai de Carl. Abismada, Saskia olhava para o comerciante temeriano, já com o olho roxo e com o rosto coberto de sangue, resultado de um corte no supercílio.

—Vocês devem ter cometido algum engano... – disse Saskia, horrorizada. Iorveth trocou um olhar com ela. Um olhar breve, mas significativo. Como se seus olhos pudessem dizer “não se meta nisso”.

—Não há engano algum. – disse o cientista. – Este é mesmo o meu projeto. Mas... Mas está incompleto. Esta é só uma parte dele.

—Cadê o resto, seu idiota? – exclamou um dos guardas, dando um forte tapa no rosto de Arkles, que recebia as agressões sem reclamar. A multidão logo tomou-se de assombro e revolta. Um dos anões cuspiu no rosto do comerciante. Não contente o bastante, um deles deu um soco em sua barriga, fazendo Arkles cair prostrado de dor sobre o chão.

—Arkles... Diga a eles que isso é um engano... Você precisa se defender...

—Saskia... – pediu Iorveth, enquanto o comerciante, de cabeça baixa, recusava com a cabeça.

—Eu sinto muito, mas não há engano algum. Eu... Eu realmente roubei.

Todos ficaram horrorizados.

—E cadê o resto, filho da puta? – gritou um anão, segurando Arkles pelo colarinho.

—As páginas que faltam, eu... Eu já as vendi.

—Puta que pariu! – exclamou o cientista. – Você vendeu o meu projeto?!

—Sim. – admitiu o comerciante. – Eu os vendi... Para os Filhos da Teméria.

Uma série de espancamento caiu sobre Arkles. Iorveth o observava, com seu natural semblante estóico. Embora parecesse indiferente, Saskia sabia que Iorveth estava pensando profundamente na informação proferida por Arkles, e especialmente, avaliando todo o cenário formado, com um grupo de rebeldes dh’oine tendo invadido Mahakam e surrupiado um importante plano de importância militar.

—Faça alguma coisa, Iorveth... – cochichou Saskia.

—Não há o que ser feito, Saskia. Ele já é um dh’oine morto. E temo que seja só o primeiro. – disse, friamente, enquanto Arkles era fortemente espancado.

—Saskia... – disse o homem, em meio a socos. Saskia tentava desviar o olhar, mas era quase impossível. Não quando ele era pai de Carl, um menino adorável e por quem ela nutria grande simpatia.

—Cala essa boca, traidor de merda! – disse um anão, dando um forte chute.

—Saskia... Meu filho, Carl... Por favor... Ajude-o. Ele pode estar em pe...

Uma última pancada fez o homem desmaiar. Desanimados com o fim da diversão, os anões decidiram arrastar Arkles até as masmorras, carregando-o pelos braços como um saco de batatas.

§§§§§§§§§§§§§§

Saskia demorou a dormir naquela noite. Levantou-se da cama, bebeu um pouco de água e lavou seu rosto algumas vezes. Iorveth dormia tranquilamente, permitindo-se a um descanso quando estava prestes a se colocar de serviço outra vez. No dia seguinte, o elfo reuniria alguns dos Scoia’tael remanescentes, mais acostumados às táticas de guerrilha, e faria uma incursão de reconhecimento da área. Saskia o ouviu planejando tudo com os elfos, mas não se envolveu. As palavras de Arkles ainda zanzavam em sua cabeça. Carl... O que seria dele, com o pai praticamente decretado à morte? Saskia jamais soube se ele tinha uma mãe. E se não tivesse? Seria mais uma criança órfã no mundo?

O tilintar de metal a cair no chão a sobressaltou. Saskia foi verificar o que era na cozinha. Encontrou Iorveth, ocupando enquanto reunia algumas frutas em sua bolsa.

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—Pensei que arrumaria os suprimentos amanhã cedo... – asssinalou Saskia.

—Você não prestou atenção no que eu disse?! – indagou Iorveth, um tanto irritado por perceber que Saskia ignorara sua conversa. Suspirando em resignação, o elfo recapitulou seu plano mais uma vez.

—Partiremos ainda nesta madrugada.

Saskia parecia surpresa. – Já?!

—Não queremos perder tempo. O quanto antes partirmos, melhor. Dei algumas horas para os elfos reunirem seus pertences e se organizarem. Como eu sempre estou pronto para este tipo de ocasião, reservei-me ao luxo de dormir. Iremos procurar por rastros desses Filhos da Teméria e deixar alguns deles vivos para um devido interrogatório. Não podemos deixar essa espionagem impune.

—Pensei que não iríamos mais nos intrometer na guerra dos dh’oine. Pois o que sei é que esses Filhos da Teméria estão retaliando o governo nilfgaardiano da Teméria. Se os atacarmos, estaremos ajudando Nilfgaard. Pensei que isto fosse a última coisa que desejasse, visto o histórico dos Cavaleiros Negros com os Scoia’tael.

A menção dos tempos passados, na Segunda Guerra contra os Reinos do Norte, fez Iorveth torcer levemente o lábio. Por pouco, quase não morreu junto a muitos outros comandantes Scoia’tael, que lutaram por Nilfgaard naquela guerra e receberam promessas vazias e pagaram por seu papel na guerra com o sangue, saciando o ímpeto de vingança do Norte. Elfos e anões lutaram, e para quê? Para receberem um reino vassalo, com uma Rainha marionete de Nilfgaard. Desde então, Iorveth prometeu a si mesmo que não se envolveria nos conflitos dos dh’oine em troca de recompensas. Teria de lutar sua própria guerra.

—Minha opinião quanto a isto permanece sendo a mesma. – retrucou Iorveth. – Mas o que estes rebeldes fizeram merece uma resposta. Você virá comigo?

—Sim. – disse Saskia. – Como sempre, você pode contar com a minha espada.

Iorveth deixou um leve sorriso aparecer.

—É melhor nos prepararmos, então. Possivelmente encontraremos resistência.

Saskia levantou-se, animada. O olhar de Iorveth acompanhava seus movimentos pelo quarto, enquanto a guerreira de sangue draconiano retirava de debaixo da cama um baú vermelho, que detinha suas melhores espadas. Em um canto do quarto, sua armadura prateada, criada pelo melhor armeiro de Mahakam e sendo bastante similar à sua antiga, jazia pendurada. Nos últimos tempos, havia se tornado mais um objeto de decoração da casa do que uma armadura, o que deixava Saskia ainda mais disposta a finalmente usá-la de modo apropriado.

Quando Saskia atou à cintura a fivela de sua espada, o último de seus adereços, a guerreira deu um suspiro, quando seus olhos cruzaram com seu reflexo no espelho do quarto. Há muito tempo ela não tinha se visto assim, de modo que por pouco, não se reconhecia mais. Afinal, passara os últimos tempos longe de ação e vivendo uma vida praticamente doméstica.

—Algo errado? – perguntou Iorveth, pondo-se ao seu lado.

—Não. – ela disse. – Só revendo uma velha conhecida.

Iorveth riu um pouco.

—Eu disse a você que não precisava parar de vestir sua armadura.

—Eu sei, lembro bem disso. Você disse na primeira vez em que eu a dispensei. Posso me lembrar do pânico no seu rosto, quando pensou que eu estaria me tornando uma “senhorinha do lar”. E não adianta fazer essa careta, sei que foi isso que se passou em sua cabeça. Mas claro, meus bolinhos de peixe queimados e minha falta de organização te dissuadiram do contrário.

Saskia suspirou.

—A vida em Mahakam não me faz precisar de armadura. Ao menos não vejo necessidade. Não é como viver na estrada e sentir que posso embarcar em uma batalha campal em alguns minutos.

—Sente falta destes tempos?

Quando Saskia estava prestes a responde-lo, ambos ouviram o bater à porta.

—Deve ser os Scoia’tael que eu convidei. Vou atendê-los.

A sala da casa de Iorveth e Saskia, repentinamente, encheu-se de elfos. Cerca de dez deles, sendo todos Scoia’tael remanescentes que abandonaram seus comandos e seguiram para Mahakam, seduzidos pela ideia de liberdade aos inumanos sob as ordens de Iorveth. Alguns vestiam ainda armaduras dos tempos de guerrilha, com caudas de esquilo atadas às couraças rústicas de couro e gibões verdes. Usavam, em sua maioria arcos, mas também espadas leves. Alguns permaneceram de pé, ouvindo atentamente as instruções de Iorveth, enquanto outros puxaram banquetas para perto da mesa onde se estendiam um mapa bastante detalhado da região. Assumindo sua postura de líder, Iorveth deu suas instruções de incursão. Passariam ao menos um mês procurando por acampamentos dos Filhos da Teméria em busca de informações sobre o projeto vendido por Arkles. Iorveth demonstrou esperança em conseguir recuperá-lo, antes que o projeto adquirisse vida nas mãos erradas, mas desconversou quando um dos elfos perguntou sobre o que fariam com os Filhos da Teméria depois que o projeto fosse recuperado.

—Aep ymladda! – disse Iorveth, na Linguagem Ancestral, incitando os elfos à batalha, que se levantaram com furor e grande animação. Decerto, assim como Saskia, estavam ficando entediados da vida de paz.

Descendo as Montanhas, Saskia e Iorveth lideravam o grupo, caminhando um pouco mais à frente. Haviam acabado de sair dos portões pesados de Mahakam quando ouviram um cavalo relinchar.

—Ouviram isto? – perguntou um deles.

—Deve ser o cavalo de algum mercador. – disse um deles.

—Não... Sinto cheiro de...

—Sangue. – respondeu Iorveth, o que tinha o olfato mais apurado do grupo, por causa de sua linhagem Aen Seidhe.

Os elfos e Saskia acompanharam os passos apressados de Iorveth, que seguia com determinação o cheiro. “Depois não gosta de ser chamado de cão farejador”, pensou Saskia, com certa graça. O animal relinchava cada vez mais perto, dando provas de que Iorveth estava indo na direção correta, algo que não era espantoso para os elfos em sua companhia, já cientes dos benefícios de ser um Aen Seidhe puro.

—Ysgarthiad! – xingou um dos Scoia’tael, em surpresa. O cavalo solitário trazia uma carroça fechada, cravejada de flechas. Na carroça, o emblema da Teméria. Iorveth aproximou-se, com cautela, desembainhando sua espada e pronto para qualquer ataque. Um dos Scoia’tael preparou seu arco, pronto para disparar uma flecha ao menor sinal de perigo.

—Saskia, venha aqui. – chamou Iorveth. Sem entender coisa alguma, a guerreira se aproximou. Logo que pôs seus olhos para dentro da carroça, a guerreira gostaria que não tivesse feito isso.

Carl estava deitado dentro dela. Com o tórax cravejado de flechas. Sangue escorria de sua boca, mas não por causa dos ferimentos. Com desgosto, Saskia percebeu que haviam arrancado a língua do menino.

—Um recado, eu acho. – disse Iorveth, friamente rasgando um pequeno envelope de papel preso a uma das flechas.

—“Um lembrete para aqueles que falam demais”, escrito no Idioma Comum. Colocaram dentro do envelope uma... Língua dh’oine, eu acho. – disse Iorveth, com frieza.

—Esse menino, Carl...

—Eu sei quem ele era. – interrompeu Iorveth. – O que só nos dá mais certeza de que fomos traídos por aquele dh’oine. Precisamos ir, rápido. Se abandonaram essa carroça por aqui, não devem estar muito longe...

—Eu não vou. – disse Saskia, suspirando forte e de um modo estranho demais para Iorveth. – Vou dar um desfecho digno ao corpo de Carl e avisar Arkles sobre isto.

Iorveth a olhou com descrença. Pensou em questiona-la, mas não faria isto. Não na frente dos demais Scoia’tael. Assentiu levemente e prosseguiu mata adentro, junto aos demais elfos comandados por ele.