The Queen's Path

Capítulo IV - 12 de Maio de 1863 (Parte II)


— Mais rápido, mais rápido! — Sarah exclamava enquanto ria demoradamente.

Tinha algum tempo desde a última vez que a princesa tivera a oportunidade de montar em um cavalo e seguir sem rumo. Era um pouco aborrecido precisar de Elliot para selar, montar e cavalgar, mas em decorrência de sua baixa estatura e destreza mínima para lidar com aqueles animais, a companhia do garoto se fazia necessária. Felizmente, depois que eles se punham em movimento, todo o resto desaparecia para a menina. Ela se tornava alheia a tudo em seu redor. Naqueles momentos só conseguia sentir as passadas pesadas do cavalo sobre a terra, provocando um tremor em seu corpo devido ao impacto daqueles dois elementos e também a força do vento gelado contra seu rosto, fazendo com que as bochechas ficassem avermelhadas pelo frio.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Você vai matar a Pandora desse jeito, sabia? — Elliot respondeu com uma reprimenda, ainda que ele também estivesse se divertindo com aquela situação toda.

Os dois haviam cavalgado por um longo tempo, indo quase sempre rentes a muralha que circundava o castelo. Quando estavam próximos ao portão, o menino pôs-se a puxar as rédeas, indicando que a égua já poderia desacelerar o passo. Ela passou de um galopar intenso para um trotar calmo, até finalmente parar. Elliot desceu da sela, no intuito de aliviar um pouco a égua do peso de carregar duas pessoas ao mesmo tempo. Tratando-se de duas crianças, acabava não sendo um fardo tão pesado assim, afinal.

Ele fez uma longa carícia em seu pescoço e depois direcionou os dedos delicados para o rosto, acariciando-a entre os olhos, o que a fez soltar um relincho satisfeito. Elliot adorava mimar seus cavalos e esse era possivelmente o ponto em que ele e Sarah mais tinham em comum: eram ambos apaixonados por equinos. O menino retirou um cantil de água que trazia junto a sela e quando fez a menor menção de tomar um gole d’água teve o corpo empurrado pela cabeça da égua, que reivindicava a água para si.

— Onde estão seus modos, Elliot? É óbvio que Pandora está com muito mais sede que você. — Sarah zombou em meio a uma risada, ainda sentada sobre a égua.

— Eu sei disso, mas eu preciso tomar água primeiro. — ele respondeu enquanto foi novamente empurrado para o lado, posto que Pandora estava resoluta em conseguir seus merecidos goles de água. — Depois que ela colocar a boca aqui eu não posso mais tomar.

— E por que não? Você já passa tanto tempo cuidando dos cavalos que já até exala o mesmo cheiro que eles. — a princesa finalizou, rindo longamente de sua própria piada. Apesar do tom de zombaria que ela havia empregado, aquilo não deixava de ser uma verdade.

— Ora sua… Pandora não!

Mas já era tarde demais. Pandora havia tomado com o cantil das mãos do menino ao prender os dentes sobre o bocal. Inteligentemente, a égua ergueu a cabeça e verteu o conteúdo, podendo assim finalmente saciar sua sede. Apenas soltou o cantil no chão quando o mesmo já se encontrava absolutamente vazio. A menina mal podia conter as gargalhadas, aquele era definitivamente o melhor dia de sua vida até então. Sem tarefas, sem pessoas dizendo-lhe o que fazer, apenas indo aonde lhe desse vontade.

— Está satisfeita agora? — o menino perguntou bastante emburrado. Ele ensaiou seu melhor olhar irritado, mas a égua não parecia nenhum pouco incomodada com isso.

Apesar da distração das duas crianças, ela se mantinha atenta, com as orelhas empinadas, girando em todas as direções. Pôde então perceber um som ao longe e passou a encarar a campina que separava a muralha do castelo. Elliot percebeu a direção que Pandora observava e pôs-se a fazer o mesmo.

Descendo a campina, dois guardas aproximavam do portão, indo em direção aonde as duas crianças se encontravam. Sarah não parecia se importar com a presença dos dois guardas, estava acostumada a vê-los espalhados por todo o castelo, sempre silenciosos, como verdadeiras estátuas vigilantes. Já Elliot encontrava-se alerta, vez que a Guarda Real nada mais era que a seleção de alguns soldados do exército designados para controlar toda a movimentação dentro da morada dos monarcas. Afora isto, a rivalidade entre os serventes e o exército era constante, pois tinham o péssimo costume de sempre achar que a outra categoria detinha privilégios demais. Ao final das contas, eram ambos desfavorecidos, mas nenhum lado jamais daria o braço a torcer.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Sarah, aqueles guardas não estão vindo atrás de você, estão? — o menino questionou sem que conseguisse ocultar suas desconfianças.

— Que pergunta mais estúpida, é claro que não! Eu não lhe falei que hoje é meu dia livre? Não tenho obrigações com ninguém. — a princesa respondeu levemente aborrecida. — Eles devem estar indo se revezar com o guardas que cuidam do portão, só isso.

No entanto, quanto mais os guardas se aproximavam, mais Elliot tornava-se descrente quanto às palavras da princesa. Puseram-se os dois de frente para a égua e o menino achou prudente montar novamente, sentando-se bem atrás de Sarah na sela.

— Princesa, perdoe-nos por nossa intromissão em seu passeio, mas receio que teremos de escoltá-la de volta para o castelo. — disse o primeiro guarda.

— São ordens da Senhorita Evangeline Cuesta. — completou o segundo.

— Quanto absurdo! — respondeu a menina, cheia de autoridade. — Não tenho nenhum compromisso agendado para hoje. Tenho certeza de que estão enganados.

— Não há engano algum, deve retornar ao castelo imediatamente.

— Pois fique certo de que não irei a lugar algum com vocês. — a princesa determinou e virou o rosto, passando a ignorar os argumentos empregados pelos guardas.

Em determinado momento, eles se entreolharam sem saber ao certo o que poderiam fazer para convencê-la e Elliot aproveitou a chance para tentar escapar dali. Puxando as rédeas de Pandora para a esquerda, ele pretendia contornar os guardas e seguir em trote até que pudesse despistá-los. No entanto, os guardas perceberam a movimentação e afastaram-se dois passos para trás enquanto abriam os braços, não deixando qualquer espaço para manobras. A égua assustou-se com a algazarra em torno de si e ergueu-se sobre duas patas no intuito de ganhar espaço. Elliot precisou prender as pernas com força sobre o lombo de Pandora para que não escorregasse e fosse ao chão, ao mesmo tempo que segurava a menina contra o peito para que a mesma também não caísse.

Quando a égua retornou ao chão, os dois guardas seguraram as rédeas para que o menino não tentassem mais nada, o que aterrorizou profundamente Pandora, que ainda tentava se desvencilhar das mãos dos desconhecidos. Sarah gritava para que a deixassem em paz, mas ninguém parecia ouvir suas ordens naquele momento. Sem muita escolha, Elliot não viu outra opção senão reunir toda sua força no pé direito e chutar um dos guardas bem no meio de seu peito, o que o fez cambalear para trás sem ar. Estava prestes a repetir a violência com o segundo guarda quando foi parado por um assobio vindo de longe.

Do alto da campina, a imagem de Guardião surgia a uma velocidade inimaginável. Tinha o pêlo castanho claro ao passo que a crina era escura, mais se assemelhando a um véu negro. Era o animal mais veloz do estábulo, e quase diariamente era possível encontrá-lo na companhia de Earnshaw. Aquele momento não havia de ser diferente. Outro longo assobio seguiu o anterior e os guardas já não importunavam mais as duas crianças, ainda que se mantivessem bem próximos a elas.

— A que devemos o desprazer, Eric Earnshaw? — disse um dos guardas, o mesmo que havia sido chutado por Elliot instantes atrás.

— Para começar, afaste-se do meu cavalo, está maltratando a Pandora, coisa que eu não irei admitir. Duvido muito que você seja capaz de mensurar o valor de um animal deste porte.

— Não queremos nada com o seus cavalos estúpidos. Recebemos ordens de levar a princesa de volta para o castelo e o seu ajudante está dificultando nosso trabalho. — reclamou o segundo guarda, irritado com os insultos do tratador de cavalos.

— Eis que chegamos ao segundo ponto, afaste-se do meu ajudante. Eu sou o único aqui com autoridade para reclamar das coisas que ele faz ou deixa de fazer. — ele deu um leve toque com os pés na barriga de Guardião e o mesmo avançou, apenas o suficiente para colocar-se ao lado de Pandora. — Evangeline estava preocupada que vocês dois não tivessem destreza o suficiente para lidar com o problema e pediu que eu viesse procurá-los. As rédeas, Elliot.

Earnshaw estendeu a mão direita, enquanto aguardava que o menino lhe entregasse as rédeas de Pandora. Resignado e também envergonhado, Elliot o fez. Mal podia olhar nos olhos de seu mentor, ele sabia o que aquele comando significava. Havia falhado como tratador de cavalos, não sendo portanto digno sequer de guiar a égua de volta para o estábulo. Sarah fez menção de perguntar algo, mas desistiu ao ver a face decepcionada do garoto consigo mesmo. No fundo, ela se sentia culpada por ter originado toda aquela situação.

— Eu mesmo vou levar a princesa de volta para o castelo. Pedido de Evangeline. Vocês estão dispensados.

Os guardas não ficaram nada felizes com a situação, mas a aceitaram sem mais questionamentos. Mal sabia que a verdadeira situação havia sido bem diferente. Eric havia flagrado os dois guardas conversando enquanto tentavam localizar a princesa. Estando a menina desaparecida e sem que Jacques soubesse de seu paradeiro (pois ele mesmo havia feito questão de perguntar), era evidente que deveria estar na companhia de seu ajudante. Bastou uma passada rápida nos estábulos para notar a falta de Pandora, confirmando suas suspeitas. Então, ele mesmo foi atrás de Evangeline, pedindo-lhe para cuidar da situação por conta própria. Naquele momento de urgência, a governanta aceitou sem maiores questionamentos.

Nem mesmo Earnshaw sabia explicar o porquê daquilo. Não era de seu feitio tomar as rédeas dos problemas alheios, mas naquele momento ele havia sentido uma vontade insustentável de ajudá-la. Era quase como se pudesse sentir no ar que as coisas não estavam certas. Além disso, prestar aqueles favores a ela eram reconfortantes para sua alma. Tinha consciência do mal que havia feito Evangeline anos atrás e essas gentilezas quase sempre o faziam sentir-se melhor.

Os três seguiram em silêncio até os estábulos. Eric guiava Guardião com uma mão, enquanto segurava as rédeas de Pandora com a outra. Aquela formação fazia com que cavalgassem mais lentamente, mas garantia que o grupo não se dispersasse. Logo adentraram no grande estábulo, onde Evangeline e Jacques estavam à espera das crianças. O tratador foi o primeiro a desmontar, ajudando a princesa a descer do cavalo logo em seguida. A menina estava prestes a agradecer a ajuda quando vislumbrou sua governanta, tendo imediatamente um acesso de raiva.

— Evangeline, não acredito que pôde fazer isso comigo! Você me prometeu que caso eu cumprisse as minhas tarefas sem distrações por cinco dias eu teria um dia livre. Não é justo mandar dois guardas irem atrás de mim antes do fim do entardecer. Você é uma mentirosa!

— Olha como fala comigo, mocinha! — a governanta ralhou com uma expressão séria e austera. — Eu não menti acerca do nosso trato. Ocorre que houve uma situação emergencial e agora preciso que retorne ao castelo imediatamente.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Evangeline segurou a mão a princesa e tentou puxá-la para fora do estábulo, mas a menina rapidamente desvencilhou-se, dando dois passos para trás, visivelmente transtornada com aquela situação.

— Nada disso, eu não vou a lugar algum. Você me prometeu um dia livre, portanto não estou obrigada a fazer nada do que você me pedir até que este dia termine.

— Mas que menina mais insolente! — a governanta proferiu, extremamente aborrecida com aquela situação.

Sarah estava a causar uma cena por motivo algum. Se ela ao menos soubesse qual era a situação emergencial de que falava, talvez mudasse de ideia. Mas não poderia revelar o motivo, ao menos não com Earnshaw, Jacques e Elliot observando toda a conversa. Aliás, a governanta se questionava porque o jardineiro ainda não havia se retirado junto de seu filho encrenqueiro. Não havia nada naquela conversa que pudesse interessá-los e, ainda assim, estavam lá mudos e atentos a todo o seu diálogo. Felizmente, Evangeline ainda tinha uma carta na manga, literalmente falando. Ela retirou de um bolso oculto de seu vestido escuro uma carta, justamente aquela que havia recebido mais cedo, informando-lhe sobre a rebelião que se iniciava na cidadela e tinha como destino final o castelo de Odarin.

— Acha mesmo que sou eu que está por trás de tudo isso? Pois saiba que está enganada. Esse é um pedido direto do príncipe Allen e estou certa de que ele não ficará nem um pouco feliz sabendo que você se recusa em atendê-lo.

— Uma carta de Allen? — a menina parou de gritar e espernear-se. Seus olhos estavam fixos na carta que Evangeline tinha nas mãos. — Dê-me essa carta imediatamente!

A governanta ergueu a mão que segurava o pequeno envelope cravado com o selo real. Se revelasse seu conteúdo agora, era certo que a princesa não conseguiria guardar o segredo por um minuto sequer e todo o plano de fuga estaria arruinado. Sarah dava pequenos pulos tentando alcançar o envelope, mas era uma tentativa claramente infrutífera. Ela era demasiadamente pequena e Evangeline além de alta, tinha os braços longos, tornando seu objeto de desejo absolutamente inalcançável.

— Poderá ler a carta quando chegarmos ao seu quarto. Agora venha, está desperdiçando nosso tempo.

Ela voltou a segurar a mão da menina, agora sem qualquer resistência. Enquanto se afastava do local, Sarah virou-se para encarar seu amigo. Do outro lado do estábulo, Jacques tentava convencer o menino de que tinham que ir para casa imediatamente, ainda que não explicasse o motivo. Mas Elliot não se movia, apenas encarava sua amiga com um grande aperto no peito, sem saber exatamente explicar o motivo daquele sentimento de perda.

— Acorde garoto! — Earnshaw proferiu com aspereza, como lhe era característico. A frase veio acompanhada de uma rápida bofetada em sua cabeça. — Obedeça seu pai e volte para casa com ele. Não preciso mais de você aqui.

— Mas e o restante do trabalho? — o menino questionou enquanto pressionava a mão sobre a cabeça, tentando aliviar a dor da bofetada que havia recebido. Paralelamente, ele ainda encarava a menina se afastando, até que sua figura tornou-se pequena e distante demais para enxergar.

— Não banque o trabalhador eficiente, você já matou mais da metade do dia de trabalho mesmo. — o velho tratador respondeu com severidade. — Eu não preciso mais de você, ouviu bem? Não discuta e volte para casa.

Jacques normalmente repreenderia seu amigo Eric por um tratamento tão duro e frio como aquele. Entretanto, dada as circunstâncias ele preferiu permanecer silente. Quando o menino se deu por convencido, restou-lhe apenas acompanhar o jardineiro durante todo o caminho até sua casa. Quando já adentravam a vila dos serventes, Elliot quebrou o silêncio que os circundava e questionou:

— Por que mesmo que estamos voltando para casa? Você ainda deveria estar trabalhando, não? Ainda é dia, o sol nem se pôs ainda.

— Estou com um mal pressentimento. — Jacques confessou, enquanto girava a grosseira chave de ferro dentro da fechadura. A porta se abriu de modo ruidoso, permitindo que ambos adentrassem na humilde residência. — Achei que seria prudente voltar para casa mais cedo que o habitual.

— Não acha que deveríamos fazer algo a respeito? Falo do seu pressentimento ruim. — o menino questionou, alheio ao que estava prestes a acontecer.

— Às vezes não há nada que possamos fazer. — reconheceu o servente de modo triste.

Houve um momento de silêncio entre os dois. O menino estava prestes a formular uma nova pergunta, mas sua voz fora silenciada por um som mais alto, imponente e ameaçador. O barulho estava distante e era difícil definir com precisão, mas sua repetição alguns minutos depois confirmou as suspeitas de Jacques. Seu coração tornou-se apertado e ele temia não só por sua vida e a de seu filho, mas também da pequena princesa. O som repetiu-se novamente, tornando-se mais audível, não havendo mais margem para erros. Os tiros se aproximavam.

— Elliot, tranque a porta.



Evangeline manteve-se em silêncio enquanto praticamente arrastava a menina às pressas de volta ao castelo. Sarah fazia o possível para acompanhar as largas passadas da mais velha, mas com sua estatura atual tornava a tarefa bastante árdua e ela já havia perdido as contas de seus próprios tropeços. Quando terminaram de subir as escadas da entrada principal do castelo, a menina viu os dois guardas que haviam lhe importunado mais cedo. A governanta não achou necessário dizer qualquer coisa, mas Sarah não perdeu a oportunidade de mostrar-lhes a língua logo que cruzaram a entrada. Seguiram imediatamente para o quarto da infanta.

— Já estamos aqui, dê-me a carta de Allen agora! — exigiu a princesa assim que fechou a porta de seu quarto.

Com impaciência, Evangeline atirou a carta no ar, que logo foi capturada pela menina. Sarah abriu o envelope às pressas, mas ao ler o conteúdo da carta, ficou profundamente decepcionada. Não era nenhuma das cartas divertidas de Allen, daquelas que lhe aqueciam o coração por muitas noites antes de dormir. Falava sobre uma rebelião. Falava sobre evacuar o castelo. Falava sobre fugir. Nada daquilo parecia fazer sentido

— Evangeline, o que isso significa? — a menina questionou com o coração angustiado. O quer que fosse, não parecia nada bom.

— Significa que temos pouco tempo para partir em segurança. — a governanta respondeu, abandonando as malas e sentando-se ao lado da menina em sua cama. — Seu pai Henrique, o rei de Odarin, é responsável por cuidar dessas pessoas e de todo o reino, não é mesmo? Agora ele está bastante doente e o povo já não acredita que ele tenha condições de cuidar do nosso reino. Por isso eles pretendem vir aqui e tomar o castelo.

Aquele sem sombra de dúvidas era um discurso demasiadamente simplificado, mas o que ela poderia fazer? Apesar de tudo, Sarah ainda era uma criança com apenas dez anos de idade, totalmente alheia às questões políticas mais complexas. Já tinha aproximadamente dois anos que uma crise financeira havia se instaurado em Odarin e a economia piorava mês a mês. Tratava-se de um reino pequeno afinal de contas e as transações comerciais existentes já não eram suficientes para sustentar o povo faminto e uma nobreza mercenária. Tomar o castelo era a menor das preocupações de Evangeline. Quando saudável, o povo não teria coragem de levantar uma unha sequer contra Henrique. Não porque fosse respeitado, mas sim porque era temido. Agora, já a dias adoentado e ainda valendo-se de um ataque surpresa, derrubar este reinado não seria a mais difícil das tarefas e ela bem que poderia enumerar alguns nobres que poderiam estar por detrás dos planos de montim. Mas não havia tempo para tais conjecturas.

— Querida, sei que isso tudo pode parecer muito confuso para você, mas não temos tempo à perder. Veja pelo lado bom das coisas, assim poderá se encontrar com seu irmão amanhã logo pela manhã. Não é o que sempre quis, ficar perto de Allen?

Evangeline mal podia acreditar que estava proferindo aquelas palavras. Para ela, deixar que a princesa fosse morar com o irmão era o mesmo que deixar um pequeno coelho na companhia de um lobo faminto. Mas não havia nada que ela pudesse fazer a respeito. Tinham sido bons e tranquilos aqueles anos em que estiveram separados. Agora, estava tudo acabado. Aquela altura, ela só podia rezar aos deuses que tivessem piedade da inocência daquela menina.

Sarah por sua vez encontrava-se em um estado de letargia, ainda tentando raciocinar o que estava para acontecer. Sim, ela encontraria Allen e tudo ficaria bem, quanto a isso não restavam quaisquer dúvidas. Mas não era consigo que estava preocupada. Deixar o castelo para trás significaria ter de abandonar todas as pessoas que, ainda que não fossem nobres ou ricos, compuseram sua infância de maneira única. Caso partisse, não iria mais ouvir as histórias de Jacques ou os resmungos de Earnshaw. Não poderia mais roubar os biscoitos de Martha ou implorar que Maria lhe preparasse um lanche antes do jantar. Não iria mais brincar com Elliot, seu único amigo em toda a vida. O que iria acontecer com eles? Iriam ficar para trás? Iriam trabalhar para outras pessoas, em outras casas ou castelos? Ou a pior coisa que poderia imaginar: seriam capazes de esquecê-la?

Absorta em pensamentos e prestes a entrar em pânico, a menina despertou com o som estrondoso de um tiro. Involuntariamente ela soltou um grito agudo pelo susto, tendo a cabeça amparada pelos braços de sua governanta, que a abraçava de modo protetor. O relógio badalou cinco vezes, indicando que eram cinco horas da tarde. “Não posso acreditar nisso, eles realmente anteciparam o ataque”.

Uma nova onda de tiros, desta vez mais próxima e audível pôde ser ouvida. A porta do quarto foi aberta de uma vez, assustando as duas que gritaram por instinto. Felizmente, não passava de Earnshaw, que trazia consigo um mosquete em mãos.

— Vão ficar sentadas gritando o restante da noite ou vão fugir enquanto podem? — ele perguntou retoricamente, do mesmo modo irritado de sempre. — Tem uma carruagem esperando na saída da cozinha. Vocês vão ter de contornar o castelo pelo vilarejo, pois a frente já foi completamente tomada.

O tratador de cavalos adentrou no quarto e indicou que a governanta se ocupasse com as duas malas. Ele prendeu o mosquete no suspensório e ergueu a menina nos braços. Para quem estava acostumado a trabalhar carregando pesos, erguer a pequena princesa não era esforço nenhum.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Earnshaw, acha que conseguiremos chegar em Hallbridge à tempo? — ela perguntou ao servente, deixando transparecer sua angústia.

— É claro que vão. Coloquei Guardião bem na frente, nada poderá alcançá-las. — ele respondeu numa tentativa de acalmar a menina.

— Mas o Guardião é o seu cavalo favorito! Se fizer isso você não vai mais vê-lo! — ela disse ainda muito angustiada. Com um sorriso cansado, ele apenas deu os ombros para a menina. Era pequena e ingênua demais para compreender que os cavalos não os pertenciam e sim a sua família.

Earnshaw e Evangeline saíram do quarto e se dirigiram o mais rápido possível. Durante a travessia, havia um verdadeiro tumulto de empregados em frente ao quarto do rei. As portas estavam abertas e ela teve a impressão de vê-lo dormindo,o que era impressionante dado o barulho dos tiros. Cruzaram o Hall Principal, somente para ver um grupo de guardas tentando evitar que os portões de entrada de serem arrombados pela população. O som era ensurdecedor e ela sentia-se tão assustada e confusa quanto possível. Passaram pela cozinha às pressas, os serventes dando passagem, todos tão apavorados quanto a pequena princesa. Por cima do ombro do tratador de cavalos, ela pôde ver Martha chorando silenciosamente enquanto acenava para ela. A princesa acenou de volta, sem ter certeza do que o gesto significava.

Evangeline praticamente jogou as duas malas dentro da carruagem, quando ouviu seu nome ser chamado em meio de todo aquele alvoroço. Era Augusto que vinha correndo enquanto gritava pela governanta. Ele aproximou-se e disse-lhe qualquer coisa em um tom de voz mórbido e baixo. Aquela altura a governanta já não se impressionava com mais nada, ela apenas assentiu e o despachou de volta para o castelo. Earnshaw colocava a menina dentro da carruagem enquanto dava diversas instruções ao condutor.

— Velho Earnshaw. — a menina chamou sua atenção e ele apenas tornou a cabeça para o interior da cabina, encontrando um par de olhos pequeninos e temerosos. — Você promete que não vai se esquecer de mim?

— Não há como esquecer de uma criaturinha tão irritante quanto você.

Com aquela resposta ríspida, ele deu passagem para a governanta entrar e fechou a porta do veículo. Despachando o condutor, a carruagem seguiu por detrás do castelo, ganhando mais velocidade a cada momento. O som do chicote bradava de modo feroz ao lado de fora da cabina, obrigando Sarah a tapar os ouvidos. Considerava o instrumento realmente odioso. No entanto, deu em conta de que algo não estava certo. Faltava alguém ali.

— Evangeline, onde está o papai? Ele não virá conosco? — ela perguntou de modo ansioso, demonstrando preocupação com o genitor pela primeira vez em muito tempo.

— Se pai foi fazer companhia à sua mãe. — Evangeline disse de modo resoluto, em um tom de voz baixo. — A partir de hoje, Odarin está nas mãos do Príncipe Allen.