Crescendo

Capítulo 4


"Ao temermos a morte estaremos desejando a vida eterna; a realização deste desejo diante dos valores que conhecemos seria, no mínimo, tão enfadonho que passaríamos a sonhar com a morte."- Ivan Teorilang.

A grande quantidade de neve que já se acumulava na grossa camada de mato era impressionante. Cortava os caminhos de terra batida, ouvindo os meus passos sob a ramagem quebradiça. Olhava em redor, enquanto tentava limpar o meu nariz ruborizado, que insistia em pingar, devido ao vento gélido daquele final de tarde do Colorado. O início da primavera ali tinha um tom muito diferente ao que estava acostumada, sem flores e tons alaranjados, apenas branco. Um branco impiedoso e gélido. Tentava correr o mais rápido possível, tentando que as minhas botas não se enterrassem totalmente na espessa camada pálida, mas era quase impossível. Sabia que me dirigia a passos largos para os grandes portões que me guiariam para fora da escola. Não poderia continuar. E se pensassem que estava tentando fugir da escola? Não me iria sujeitar a arrumar mais problemas, não mais do que aqueles que já havia arrumado, num apertado prazo de quase 42 horas.

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Sendo assim, me tentei concentrar em nada mais que os barulhos provenientes do agrupado de frondozas árvores e pequenas plantas que haviam sobrevivido à neve. A minha respiração ruidosa e descompensada estava prejudicando a minha capacidade de pensar, e pior que tudo, a de ouvir com clareza. Mas, adentrando mais fundo no denso arvoredo, o consegui ouvir. Ouvi uma doce melodia, que explodia no ar como grandes fogos de artifício. Alguém estava definitivamente tocando algum tipo de flauta, e as minhas apostas estavam em Jean-Pierre. Seria esse o seu instrumento? Apertei mais o passo, ouvindo a melodiosa composição soar ainda mais alto aos meus ouvidos, como se estivesse chamando por mim, desesperadamente e incesantemente. Perscrutava aquela imensidão em silêncio, tentando seguir aquele som que me acompanhava naquela jornada. E então, finalmente o avistei. Nunca havia estado naquela parte do ressinto da escola antes. Um pequeno lago estava congelado, rodeado por uma clareira coberta por um manto esbranquiçado. Jean-Pierre estava sentando em um tronco, ali caído, muito provavelmente devido ao grande peso que a neve havia feito nos seus finos ramos. Ele balançava a sua cabeça com o ritmo da melodia, enquanto segurava firmemente junto da sua boca, uma grande flauta amadeirada. Nunca havia visto uma flauta tão diferente, e começava a me questionar se aquilo seria mesmo uma flauta e não um outro tipo de instrumento que eu desconhecia. Porém, aquela música me soava bastante familiar. Não ao ponto de a reconhecer, mas sabia que era oriental. O que me remetia para países distantes, como por exemplo o Japão. É isso mesmo, música tradicional Japonesa!

—Bonita melodia!- decidi intervir assim que ele terminou. Ele não pareceu surpreso por ouvir a minha voz, pelo que quando virou o seu rosto na minha direção, ele já sorria. Um sorriso divertido, sem malícia. Ali, naquele momento, só conseguia ver um garoto sendo genuíno.

–Você sabe o que é isso?- perguntou ele, levantando o seu instrumento, o suficiente para que o pudesse ver por completo. Me aproximei mais do mesmo, e assim que me encontrava junto dele, me sentei do seu lado.

—Uma flauta?- respondi incerta.

—Isso é muito mais que uma flauta.- corrigiu ele, abrindo um sorriso largo e descontraído. -O seu nome é Shakuhachi, e ela é feita de bamboo.

—Ela é muito bonita...-comentei interessada, avaliando as suas características. Era muito maior que uma flauta convencional, porém , tinha a mesma constituição. Era castanha clara, de aspeto robusto e antigo.

—E difícil de tocar também.- completou Jean-Pierre, soltando uma pequena gargalhada. Nunca tinha ouvido o seu riso, não era gentil e melodioso como o de Adriel, era um riso mais descontraído e de certo modo engraçado.- Sabia que são precisos três anos para aprender a tocar ela?

—Me deixe experimentar!- pedi decidida. Ele me olhou divertido, e depois me entregou ela em mãos. Pude sentir o seu peso e textura diferente, estava encantada com tamanha beleza.

—Você não vai conseguir produzir nada que se pareça com música.- advertiu ele, abrindo um sorriso provocador. O olhei desconcertada, tentando manter uma expressão dura, me convencendo a mim própria de que seria capaz. Coloquei a boca junto do pequeno orifício e soprei, tal e qual como faria com uma flauta. Para meu espanto nenhum som foi produzido, apenas o barulho nojento de saliva sendo expelida juntamente com o ar. Ele soltou uma forte gargalhada e depois pediu o seu instrumento de volta.

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—Eu sabia!- reconheceu ele. Cruzei os braços chateada, e depois suspirei indignada.- Não importa quanta força você faça, Lis. A técnica, essa sim você precisará.

—Como você consegue tocar isso?- perguntei surpresa. Ele deu de ombros, sem nunca perder o seu sorriso zombeteiro. E em seguida, guardou aquela estranha invenção dentro da sua mochila.

—Sabia que esses instrumentos eram os grandes companheiros dos monges Japoneses?- neguei com a cabeça. Estava bastante curiosa em relação a todo aquele tema, porém não havia sido aquele o motivo pelo que o procurei.- Por vezes, eram até a sua única arma de defesa, devido à sua robustez...

—Que instrumento fantástico!- disse em seguida, aproveitando o impulso.- Porque não o usou na luta à pouco, então? Talvez lhe desse algum uso.

—Sabia que essa visita viria com algo mais, do que simples curiosidade pela minha Shakuhachi.- comentou ele entredentes. A sua expressão havia mudado, não parecia mais divertido. Todo o seu bom humor estava se transformando numa careta horrenda de ira.

—Eu ouvi o meu nome, Jean.

—Eu sei o que você ouviu. Mas também sei que sabe o porquê.- disse ele, enquanto pegava na sua mala e a colocava no ombro.

—Tenho uma vaga ideia.- admiti.

—Não precisa fingir, sei que se pudesse arrancaria os meus olhos nesse momento...

—Não sei do que você está falando.- garanti confusa. Tentava encontrar qualquer tipo de informação nos seus olhos, mas eles estavam completamente vazios. O seu olhar estava perdido.

—Eu bati no seu amiguinho, Adriel. Deve me odiar nesse momento, por ter quebrado o seu lindo rostinho.- explicou ele. A palavra "amiguinho" havia saído mais azeda que o esperado, e isso me fez estremecer, perante toda a situação.

—Você também não me parece estar no seu melhor estado.- comentei eu, apontando para a sua blusa clara, agora manchada pelo sangue de Adriel.

—Como queira, Lis...- disse ele, antes de se começar a afastar. O segui imediatamente, decidida a tirar satisfações.

—Olha, eu sei que é dificil...eu sei, mas...

—Vai mesmo me aconselhar sobre algo, Elisabeth? O que você sabe sobre perder alguém?- as suas palavras saíram frias e implacáveis. Senti uma dor precorrer todo o meu coração, como uma pontada de dor dilacerante. Senti os meus olhos se enchendo de lágrimas, ao me lembrar da minha falecida avó.

—Sei o suficiente sobre perder alguém...- disse em voz baixa.

—Me desculpe. Eu me exaltei...- disse ele mais calmo, assim que olhou para o meu rosto. O olhei magoada e frustrada, tentando encontrar palavras boas o suficiente para responder.

—É, parece que é algo que você faz com alguma facilidade.- acabei por dizer.

—Não precisa ser assim, sabe?- disse após alguns momentos de silêncio. O olhei confusa, enquanto tentava fechar o meu casaco a todo o custo.- Eu sendo grosso com você, dizendo coisas que machucam você... Eu não sei ter amigos, Lis. Nunca soube, e eu não consigo.

—Talvez porque você não tenta.- respondi, me controlando para não dar o exemplo de Vivian.

—Ou talvez porque você seja uma intrometida. Tenho certeza de que se tivesse deixado esse narizinho curioso fora desse assunto, e não tivesse incentivado o Adriel a contar seja o que fosse, nada disso teria acontecido!- as suas palavras cortaram o silêncio da floresta de uma forma tão ríspida, que me pareceram mais gélidas que o vento que me sacudia. Senti as lágrimas se intensificando, e o olhei suplicante. Pedindo para que parasse, mas isso não aconteceu.- E se quer tanto saber mais sobre o assunto, porque não pergunta para a sua amiga, Vivian?

—O que a Vivian tem a ver com isso?- perguntei novamente confusa. A minha cabeça latejava com perguntas naquele momento, me obrigando a levar as mãos à mesma.

—Você faz demasiadas perguntas, Lis. Se deixasse de ser uma criança curiosa e mesquinha, talvez as coisas corressem melhor para todo o mundo, e a essa hora Adriel não estaria com a cara quebrada e inchada.- a sua cara não transmitia mais nada a não ser rancor e fúria.

—Eu não o fiz por mal...

—Vi a sua outra amiga...qual é o nome dela mesmo? Ah, sim...Sabrine. Estava chorando faz pouco tempo.- começou ele.- Nem posso imaginar de quem seja a culpa. Pare de ser uma criança intrometida, Lis! Cresça!

Antes que pudesse ter dado conta, o meu punho fechado saiu disparado contra a sua cara. O soco ecoou pelas árvores de uma maneira surpreendente, e me assustei com o estalido que dele resultou, temendo ter partido algo. Ele ficou estático por alguns segundos, e depois passou uma das suas mãos pelo local onde havia sido acertado, o apertando. Depois disso, e visivelmente em dor, olhou para mim incrédulo. Continuei o olhando, sem demonstrar qualquer tipo de remorsos. Sentia que estava vingando mais que apenas essa situação, e isso amenizava o meu sentimento de culpa.

–Espero que isso tenha sido suficientemente adulto para você, visto que é a única forma de comunicação válida que você conhece.- cuspi as palavras com tanta fúria, algo que surpreendeu até a mim mesma.

Apressei o passo para fora da floresta, sem nunca olhar para trás. Ouvi a sua voz chamar pelo meu nome algumas vezes, mas nada me deteve. Continuei nesse ritmo até chegar no jardim principal. Passei por vários alunos, esbarrando contra alguns, que me lançavam olhares feios e irados. Vi duas das empregadas da diretora Cassanda retirando a maior porção de neve ensaguentada possivel, e por fim vi Sabrine. Ela conversava em voz baixa com Drake junto dos grandes portões da escola. Drake abanava a cabeça em sinal de reprovação, e ela parecia ficar cada vez mais irritada. Continuei a andar na sua direção, e assim que ela me viu, simplesmente entrou no edifício, deixando Drake completamente sozinho.

—Hey, Lis! Você está bem?- perguntou ele preocupado, quando viu o meu rosto esborratado pelas lágrimas.

—Agora não, Drake. Me desculpe.- respondi rápidamente. Cortei caminho até às grandes escadarias, desejando um banho quente e me trancar no quarto até a manhã seguinte. Não podia acreditar que ela estava fugindo de mim, me ignorando. Seria eu assim tão repulsiva? Quando nem sequer sabia que estava fazendo algo necessariamente errado?

Subi as escadas até chegar no segundo piso, depois diminuí a velocidade, me permitindo pensar um pouco em paz. O corredor estava vazio como já era costume, mas conseguia ouvir duas vozes femininas, discutindo. Eu reconhecia aquelas vozes, eram Vivian e Sabrine. A porta do quarto delas estava completamente aberta, pelo que era possivel ouvir os seus gritos. Fiquei parada na escuridão que o corredor me permitia, tentando não atrapalhar o momento.

—Você é tão idiota, Vivian! Como pensou que ela iria acreditar em você?- gritava Sabrine enfurecida.- Vivian e a sua carinha de santa...

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—Eu fiz o que pude, Sabrine. Você sabe que sim.- a voz calma e doce de Vivian, fazia um contraste enorme da voz gritante de Sabrine.

—Sabe o que me apetece nesse momento? Quebrar a sua cara inteirinha, mas penso que não seria justo, visto que você não conseguiria ver a minha mão e muito menos o estrago nela no espelho!- levei a mão na boca, tentando manter o silêncio, não acreditando que aquelas palavras estavam saindo da boca de Sabrine. Após alguns segundos vi Vivian saindo do quarto, não conseguia ver com clareza, mas ela parecia chorar. Depois de verificar a sua bengala, passou a sua delicada mão pelos cabelos longos, e soltou um suspiro entrecortado. Ela apressou o passo na direção do banheiro, e ali entrou. Ouvi os passos de Sabrine se aproximando da porta, mesmo antes de deixar de ouvir o seu choro, e por isso mesmo desisti da ideia de seguir Vivian, e corri na direção contrária como uma verdadeira covarde.

Respirei fundo algumas vezes e depois segui para o meu quarto. Deixei que a minha mente voasse para longe, enquanto trocava de roupa, vestindo um pijama mais confortável. Não iria conseguir regressar no banheiro e encarar Vivian depois daquilo. Por isso mesmo, me decidi a conversar com ambas no dia seguinte. Me certifiquei de que a porta estava devidamente trancada, e depois me joguei na cama, completamente exausta. Ainda ouvia alguns estudantes no jardim, provavelmente esperando a hora do jantar. Suspirei pensando em como estava com fome, mas estava decidida a não ter que enfretar ninguém. Nem Sabrine, nem Vivian...e muito menos Jean-Pierre. E foi com todos esses pensamentos que acabei por adormecer.

Acordei com as vozes fracas que já se ouviam no corredor. Abri os olhos lentamente, tentando a todo o custo sair da cama e começar mais um dia complicado. Depois da minha habitual passagem pelo banheiro para o meu banho matinal, que pela primeira vez estava lotado, decidi ir comer alguma coisa. O meu estômago estava doendo, e eu sabia que eu era a grande culpada. Me insultei mentalmente por não ter jantado no dia anterior. Sabrine não tinha batido na minha porta naquela manhã, para me acordar com um simpático sorriso, e isso me entristecia mais que tudo. Sabrine...o que havia acontecido no dia anterior ainda não estava muito claro.— pensei para comigo mesma.

Ao entrar no refeitório avistei Drake e Sabrine, estavam ambos comendo numa das últimas mesas da cômodo. Acenei para ambos e apenas Drake retribuiu, Sabrine desviou o olhar, continuando a comer. Suspirei sem saber o que fazer e depois olhei ao redor. Adriel estava sentado numa das primeiras fileiras, brincando com um isqueiro na sua mão direita, enquanto que a mão esquerda guiava uma grande fatia de bolo até à sua boca. Sorriu assim que me viu e me chamou para perto dele. Sentia o olhar de ambos cravado em mim, mas naquele momento nada daquilo me importava, eu não queria me sujeitar a mais um ambiente pesado. Iria falar com ela mais tarde.

—Bom dia, flor do dia!- falou Adriel animado, quando me sentei junto dele. Ele empurrou um prato com uma fatia de bolo para mim, e eu a peguei automaticamente. A sua cara continuava inchada e roxa, mas os vários curativos disfarçavam em muito.

—Como se sente?- perguntei preocupada.

—Melhor era impossível! Já viu como o dia está lindo lá fora?- olhei pela primeira vez para o exterior, e constatei que ele tinha razão. O sol estava brilhando, e conseguia ver várias gotas escorrendo pelo telhado, isso queria dizer que o gelo estava finalmente derretendo.

—Parece que a Primavera finalmente chegou!- comentei com animação. Ele assentiu sorridente, colocando um cigarro entre os lábios.

—Penso que não seja permitido fumar dentro da escola, Adriel.- disse eu avaliando a situação. Ele abriu um sorriso irônico, e depois piscou para mim. Sorri para ele, enquanto avaliava a sua aparência. Já não haviam vestígios de sangue, mas os grandes hematomas ainda estavam ali.

O seu sorriso durou pouco tempo. Um grande estrondo se fez ouvir por todo o refeitório, seguido de vários gritos e burburinho. Sem que tivesse tempo de me aperceber do porquê o seu olhar se fixou atrás de mim. Me virei instintivamente ao ver o seu rosto estampado de horror, e me deparei com um grande número de alunos correndo para fora do grande salão. Me levantei rapidamente e comecei a seguir os seus passos, senti a mão forte de Adriel me puxando para trás. A sua expressão estava igual a todos os outros, e os gritos vindos da grande escadaria aumentavam cada vez mais. Não conseguia perceber o que estava acontecendo, Adriel não largava o meu braço, mesmo enquanto me debatia para me soltar. Ouvi a voz de Jean-Pierre chamando pelo seu primo, e aproveitando esse momento de distração corri para a fonte de todos os berros.

Vários alunos recuavam, atropelando todos os restantes, e conseguia ver o pânico no rosto deles. Avistei Drake a um canto, ele chorava horrorizado com as mãos no rosto. Tentei passar pelo meio da multidão, enquanto ouvia a voz fria da diretora Cassandra, nos alertando para nos dirigirmos imediatamente para os nossos quartos. Porém, ninguém se moveu. Apenas os suficientes para abrirem o espaço, formando um buraco suficiente para que eu conseguisse verificar o que estava acontecendo. Vivian estava no chão, e por baixo do seu corpo estava um verdadeiro rio de sangue. Uma das suas pernas estavam quebradas, o seu osso estava saliente na sua pele. A sua face estava virada na minha direção, como se me observasse. Porém, os seus olhos abertos e estáticos não se moviam, assim como o seu peito. Os gritos iam aumentando na medida em que mais alunos e professores chegavam ao local. A sua cabeça estava numa posição anormal, e do seu pescoço brotava mais do que poderia suportar. Não contive um grito que já se acumulava no meu peito quando vi a cena, senti várias mãos me segurando, de alunos que nem reconhecia as caras. Me debati contra todas elas, correndo para junto do seu corpo morto. Os seus longos cabelos loiros estavam ensopados de sangue, assim como a sua boca, que jorrava uma grande quantidade de sangue. Sentia os meus olhos toldados de choro, enquanto as minhas mãos agora ensaguentadas percorriam a sua cara. sSenti várias mãos me puxando para trás, assim como a voz autoritária da diretora que pedia ajuda para retirar toda a gente dali.

Os meus olhos passaram mais uma vez pelo seu corpo sem vida, e este continuava com os olhos postos em mim, enquanto duas mãos me puxavam escadaria acima. Todos os outros alunos estavam evacuando, para onde conseguiam, perante os gritos desesperadores da diretora Cassandra. Vários seguiam o meu exemplo e corriam escadas acima em pânico, outros saiam pela porta. E antes que os meus olhos deixassem de conseguir ver toda a cena, vi algo mais. Ali estava ela de novo, uma sombra. Não conseguia gritar e muito menos sentir medo, o meu corpo estava em completo choque. Mas desta vez ainda mais clara e visivel, cada vez mais humanoide, sentada sob o corpo pálido de Vivian. Aquela imagem passava os seus braços ao redor dela, e grunhia alto, mesmo que mais ninguém o visse. Os seus olhos vermelhos me perseguiam durante todo o caminho, e eu me debatia nos braços de quem me puxava para voltar ali. Gritava desesperadamente para que me largasse, mas isso não aconteceu.

Sabia para onde nos dirigíamos, para o meu quarto. Aquelas mãos me puxaram mais contra si, e depois me guiaram para dentro do quarto. Me soltei finalmente daquelas mãos, olhando aquela figura pela primeira vez. Adriel. O quarto estava completamente às escuras, devido às grossas cortinas avermelhadas da janela, mas conseguia ver o seu rosto. Ele chorava por debaixo do seu cabelo loiro que lhe caía sobre o rosto, e depois de alguns momentos de silêncio, ele me abraçou. Me permiti chorar por vários minutos, enquanto ouvia os gritos vindos do exterior, chorei até que a minha cabeça parecesse que iria explodir de dor. E quando percebi que o meu corpo estava perdendo as forças, me sentei no chão desamparada. Ele se sentou do meu lado silenciosamente. Ficámos assim durante minutos a fio, apenas observando o escuro.

–Você está bem?- gaguejou ele, após algum tempo. Senti o seu olhar queimando em mim, mas eu não me conseguia mover.

—Não.- respondi fraca.

—Vai ficar tudo bem, Lis...eu te garanto.- a sua voz era doce, se assemelhando ao mel.

—Você não pode garantir nada, Adriel. Isso, que acabou de acontecer aqui...é a prova de que eu não deveria estar aqui.

—Do que você está falando, Lis?- perguntou ele, se aproximando mais de mim.- Eu sei que vocês eram amigas, e eu sei do problema de visão da Vivian, mas você não teve a culpa...

—Você não entende.- disse aumentando o meu tom de voz.- Isso é tudo, tudo minha culpa, Adriel. Eu sou um monstro. Eu matei ela, Adriel.

—Lis, por favor não diga essas coisas de você mesma...você vai ficar bem.- garantiu, ficando agora cara a cara comigo. Senti as costas da sua mão secando algumas das minhas lágrimas, antes de prosseguir.- Eu estou aqui para você.

—Você não entende. Você não entende. Eu vi...

—O que você viu, Lis?- perguntou ele sério. O olhei atordoada, sem saber o que responder. Conseguia ver os seus olhos brilhando de expectativa.

—Tem algo de muito errado comigo, Adriel. De muito, muito errado comigo. E você deveria se afastar de mim, porque eu só trago desgraças e problemas. Eu detruo tudo em que eu toco.- disse começando a chorar de novo.- E eu tenho medo de estragar a sua vida e dos restantes que me rodeiam. Eu preciso ir embora, Adriel.

—Não, você precisa sim é de descansar. Está me entendendo? Você precisa descansar.- disse acariciando a minha bochecha. Sentia a sua respiração muito perto do meu rosto, porém não conseguia perceber bem a que distância nos encontrávamos.

—Não posso sair daqui de qualquer maneira, Adriel.

—Você entendeu o que eu quis dizer...- respondeu calmo, enquanto puxava uma das almofadas da minha cama, sem se levantar.

—Eu não quero dormir. Eu só não quero ficar sozinha...- a última frase saiu como uma súplica. Ele me olhou por alguns segundos e depois beijou o topo da minha cabeça.

—Eu não vou deixar você sozinha, Lis...eu vou ficar bem aqui, do seu lado.- garantiu ele.

—Você acha que os pais dela já foram informados?

—Eu não sei, Lis. Mas tenho a certeza de que a minha tia, Cassandra, irá pedir para ser a psicóloga de serviço a comunicar. Parece que estou tendo um déjà vu.- reclamou ele, limpando o próprio rosto com as mangas do seu casaco.

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—Como assim? Ah, sim, claro...Pamela Colleen.- acabei por perceber.

—Não só por isso. É que...

—Prefiro que não me conte mais nada sobre esse assunto, Adriel.- cortei eu, me afastando um pouco do mesmo, para conseguir encostar as costas na parede fria.

—O que o meu primo falou pra você?- era uma pergunta normal, mas a sua voz demonstrava uma preocupação exagerada.

—Ele falou que eu me intrometo nos assuntos dos outros, e que tudo isso era culpa minha...e eu soquei a cara dele.- acabei por dizer após uma longa pausa.

—Pelo menos um de nós teve coragem de o fazer.- comentou ele abrindo um sorriso triste, enquanto afastava os longos cabelos das suas feridas.

—Foi um bom soco...- comentei, tentando imitar os seus movimentos, e manter uma conversa menos triste. Algo que não iria ajudar nada naquele momento.

—Posso ver a sua mão?- perguntou ele. O olhei insegura por alguns segundos, mas acabei por estender o braço na sua direção. Ele retirou algo barulhento do seu bolso, e depois pegou gentilmente na minha mão, avaliando os pequenos hematomas nos nós dos dedos devido ao soco. As suas mãos firmes mas cuidadosas se movimentavam rápido, fazendo um curativo, que envolviam todos os meus dedos.

—Onde encontrou isso?

—Eu meio que os roubei da enfermeria...fiquei com medo que por alguma razão você retirasse o seu, e o meu plano seria a obrigar a colocar esse.- admitiu envergonhado, abrindo um sorriso fraco.- Parece que eu não errei por muito...

—Eu sou um desastre.- comentei, já sem forças. Sentia a minha cabeça inundada de pensamentos, como se tudo aquilo não estivesse acontecendo na realidade.

—Mas um desastre demasiado bonito.- revidou ele, analisando o seu feito.

—Desastres não são bonitos, Adriel. São horrendos e destrutivos.

—Pensemos assim, Lis...para você ver o arco-íris, primeiro terá que chover, correto? Bom, imaginemos que a chuva destrói plantações inteiras, que seriam o sustento de várias familias...você iria negar que mesmo no meio de toda essa destruição, o arco-íris não continuaria a ser das coisas mais belas que você já viu?

—Penso que não...- confessei.

—Temos que ser um pouco mais positivos por vezes. Todos nós, Lis.

—Gostaria de poder ver o lado positivo de tudo. Mas nesse caso, ele não existe.

—Tem razão.- concordou ele, fungando o nariz. O silêncio havia voltado ao quarto, e eu estava grata por isso. Manter uma conversa naquele momento estava muito complicado e eu não conseguia sequer controlar as minhas lágrimas.

—Você sabia que a Vivian foi a única a sobreviver aquela noite?- cortou ele o silêncio. O olhei desconfiada e depois consegui gaguejar uma pergunta:

—Que-que noite?

—A noite em que a Pamela decidiu ir para as montanhas com as amigas...

—Vivian era uma das suas amigas.- disse juntando todos os pontos. De repente um pequeno puzzle se montou na minha mente, e todas as peças se encaixavam perfeitamente umas nas outras. Ele apenas assentiu triste.

—Foi nessa noite que ela perdeu a sua visão. Isso continua a ser um grande mistério para todos nós, ela se recusou a falar sobre fosse o que fosse sobre isso e sobre essa noite.

—Ela falou que havia perdido a sua visão fazia três anos...- me relembrei. De repente tudo fazia sentido. O porquê de Jean-Pierre se ter afastado dela, o porquê de ela ter perdido a visão, tudo...

—Ela foi a única que sobreviveu a essa noite, Lis.

—Eu...eu não sabia...

—Sabe que por vezes podemos fugir ao nosso destino, mas ele sempre nos guiará para o mesmo caminho.- disse ele, se arrastando para junto de mim, se sentando de maneira a que os nossos corpos se tocassem.

—Isso é cruel.- comentei

—Isso se chama de realidade, Lis.- discordou ele.- É exatamente como um labirinto. Se você chegar em um caminho sem saída, eu posso te ajudar a regressar atrás. Mas se eu te enviar na direção de outro beco sem saída, de que valeu o esforço?

—Eu não entendo as suas xaradas.- confessei exausta.

—Não são xaradas, Lis. São apenas...pensamentos.

—E eu penso que você pensa demais.- disse friamente. Senti o seu corpo se remexendo no seu lugar, antes de responder.

—Talvez você tenha razão.

—Não consigo tirar aquela imagem da minha cabeça...- disse triste, baixando a mesma, observando o chão escuro.

—É compreensível, Lis...

—Você...você viu mais alguém junto do corpo dela?- acabei por perguntar. Senti o meu sangue gelar ao me lembrar daquela figura sentada em cima da pobre Vivian. E dos seus olhos vermelhos, me olhando...

—Sim, a minha tia e alguns professores. Porquê, Lis?- a sua voz parecia incerta, quase um sussurro.

—Mais ninguém, Adriel?- insisti eu.

—Elisabeth, o que está acontecendo?

—Eu não posso contar para você...- disse sentindo novas lágrimas de formando.- Você iria pensar que eu sou louca.

—Tente.- pediu Adriel, pegando na minha mão.