Socorristas

Pinguça


Antes mesmo de abrir os olhos, a primeira coisa da qual me dei conta foi de que minha cabeça doía e meus lábios também, pareciam inchados, com o dobro do tamanho normal.

Meu corpo deu um tranco repentino; abri os olhos e sorvi o ar com o susto. O som de correntes batendo encheu meus ouvidos, mas logo cessou. A pele do meu braço estava exposta; o chão era frio e duro. O local estava no completo breu. O mínimo movimento que eu fizesse me trazia dor. Mas era tolice ficar parada ali.

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Ainda apoiada num dos joelhos para me erguer, respirando quase desesperada para não gritar de dor, um rangido alto soou acima de mim e o lugar se encheu de uma luz tão forte que me obrigou a fechar os olhos e xingar baixinho. Senti-me tonta, minhas pernas fraquejaram. Recuei e me apoiei na parede, tornando a fechar os olhos e controlando a respiração. Perguntas começaram a encher a minha cabeça, piorando a dor nela, então me recusei a pensar a respeito ao perceber o trabalho que daria para tentar desvendá-las.

Inesperadamente me dei conta de vozes além do buraco aberto. Não fazia ideia do que diziam e muito pouco me interessava saber. O cansaço me dominava. Tive vontade de fechar a passagem acima e voltar a deitar.

Concentrando-me na esperança de que o mal estar passasse para deixar o plano de lado, pisquei diversas vezes e cocei os olhos na tentativa de vencer a tontura. Arfei uma última vez e olhei para cima. Duas figuras sob o sol me encaravam e logo outras se aproximaram para observar; estavam muito longe, eu não alcançava a borda.

— O quê... — minha boca e garganta estavam secas, nenhum som saiu.

Girei o corpo para olhar ao redor à procura de uma saída (mover a cabeça só me faria cair de tontura). Uma das figuras próximas gritou algo e a voz soou grave. Pouco depois, uma corda foi jogada lá de cima, a extremidade amarrada num laço. Adiantei-me e coloquei um dos pés sobre ele, mas ao apoiar meu peso ele escapou. Apoiei na parede para manter o equilíbrio; sequer tinha forças para me sustentar direito.

Alguém disse alguma coisa indiscernível lá de cima.

Voltei para a corda, respirei fundo e arfei outra vez ao tentar segurá-la com mais força; era impossível. Encarei o chão e balancei a cabeça em sinal de que não conseguiria, e logo me arrependi de estar pedindo a ajuda de desconhecidos. No instante seguinte, alguém saltou e caiu com os joelhos dobrados ao meu lado. Era um garoto da mesma altura que eu. Não consegui prestar atenção em mais detalhes.

Ele pegou a corda e amarrou ao redor da minha cintura, e questionei mentalmente por que eu não tinha pensado naquilo antes. Depois, gritou para que me puxassem, acenando com a mão para cima.

Senti meus pés começarem a saírem do chão e os ouvi grunhir com o esforço. Eu queria ajudar para diminuir o peso, mas não tinha como. A uma altura suficiente, apoiei meus braços na borda para me puxar e joguei a perna esquerda para cima. Rolei até deitar de costas sobre o chão, duro também, mas desta vez com calombos. Tornei a fechar os olhos e a respirar fundo.

— Ela parece pior do que deveria. — uma voz masculina estridente comentou e percebi que tinha me acalmado o suficiente para entender o que diziam.

— Provavelmente vai ficar na cozinha. — outro disse.

— É, ou regando as plantas do Zart. — opinou uma voz fanhosa. — Mas talvez não vá muito longe se continuar deitada aí.

— Ei. Está me ouvindo? — uma voz mais grave indagou muito mais próxima do meu rosto. Abri os olhos e me deparei com um garoto de pele marrom-escura, a testa brilhando de suor e a expressão séria. Pisquei mais algumas vezes com a claridade que umedeceu meus olhos. — Está me ouvindo ou não?

Assenti com a cabeça, minha garganta ainda muito seca. Inclinei-me para o lado e me apoiei no cotovelo para sentar, fazendo uma careta com a dor no corpo. Só então me dei conta de que preferia que todos virassem os olhares para outro lado.

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— Bom, bem-vinda à Clareira. — o garoto disse, o tom muito menos receptivo e mais cínico do que a frase em si.

Apoiei-me nos braços e nos joelhos para me levantar e cambaleei para os dois lados ao ficar de pé. O círculo de pessoas ao meu redor não entrava em foco na minha visão.

— Parece uma pinguça. — a voz fanhosa tornou a soar e eu encararia o dono se soubesse ao menos da onde vinha.

De repente, meu batimento cardíaco tomou conta da minha atenção e meu corpo esquentou, não sabia se de vergonha por tanta gente me observando ou por provavelmente estar febril. Alguns cochichavam entre si e um garoto me olhava com deboche. Olhei ao redor e percebi: todos eram garotos. Pareciam ter em torno da mesma idade, mas o garoto de pele escura devia ser o mais velho.

Como previsto, mover a cabeça me deixou tonta, e novamente meu corpo cambaleou para o lado. Prestes a cair, mal sentindo minhas pernas, as duas mãos fortes e nada delicadas do garoto de pele escura agarraram meus braços.

— Não é melhor leva-la... — outra voz grave e mais distante começou e não consegui prestar atenção no restante. Não era sensato que eu deixasse que algum daqueles garotos me levasse para algum lugar; já bastava que eu nem soubesse como chegara ali.

Ao sentir as fortes mãos guiarem-me entre os rapazes, empurrei o garoto para longe, a respiração acelerada. Estava cercada, não me sentia forte para passar no meio deles e fugir. O medo atingiu meu estômago, mas prestar atenção nos movimentos deles era mais importante.

— Acalme-se. — ele disse, sem parecer alterado pela minha reação. — Vamos te explicar as coisas depois.

Eu só queria que o mal-estar passasse antes de saber de qualquer coisa.

— Socorristas! — ele gritou e pela primeira vez algo soou bem aos meus ouvidos. Estive a ponto de eu mesma pedir ajuda, mas eram completos desconhecidos à minha volta.

Dois rapazes mais velhos, um alto e outro mais baixo, passaram entre o amontoado de garotos e estacaram de repente ao me verem.

— Apenas façam o trabalho de vocês, acho que ela está com febre. — ele disse ríspido sob os olhares indagadores e surpresos deles.

O mais alto se aproximou com o cenho franzido e colocou a mão sobre a minha testa. O mais baixo pegou meu pulso e verificou a pulsação.

— Vamos levá-la para a Sede. — o segundo disse e me encarou. — Consegue andar?

Cheguei perto de responder, mas hesitei. Eu precisava me sentir bem ou não conseguiria me defender caso tentassem alguma coisa, mas para me sentir bem precisaria confiar neles. O desespero começou a crescer dentro de mim, principalmente quando o rapaz moreno cruzou os braços impaciente; eles me levariam à força se eu não fosse sozinha.

— Ok, abram caminho, vocês trolhos. — ele ordenou. — Carreguem-na para a Sede. – disse aos Socorristas, que se adiantaram e ergueram as mãos para me agarrar. Empurrei o mais próximo, consciente da confusão que estava causando. Não podia ficar parada ali o resto da minha vida, mas mal conseguia me sustentar. — Escuta, ou você vai sozinha ou vamos carrega-la, e ninguém aqui tem o dia todo.

— Anda logo, Pinguça. — a voz fanhosa disse zombeteira. Eu soube que vinha logo de trás de mim, então me virei num movimento só e agarrei a camisa do rapaz que sorria entre os outros. Puxei-o para perto e ergui a mão para desferir um tapa. Em vez disso, meu próprio peso novamente foi demais para as minhas pernas e me vi puxando o garoto para baixo, tentando manter-me erguida. Minhas pálpebras pesaram, os sentidos começaram a ir embora e isso me aliviou; até que enfim não senti nem vi mais nada.