Lucca

XXV. Um ano


Abril

A visita ao apartamento de Nathan durou dois dias consecutivos, nos quais Lucca não quis sair de casa nem para ir à praça de caminhada, a qual podia enxergar da janela do quarto do médico. Estava frio, e Lucca quis tanto conhecer o apartamento do médico que não quis sair dali até a hora de ir embora, muito menos para conhecer o tal de Kellan.

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O médico, que dormiu muito mal nas duas noites em que Lucca também dormira em sua cama, tentou à todo custo manter Lucca ocupado. Separou alguns jornais e alguns livros de medicina que achou apropriados para que ele lesse, e lhe mostrou alguns desenhos que gostava de assistir quando era criança. Comeram todo o bolo que havia sido feito na primeira noite e fizeram outro, satisfeitos com o trabalho.

Nathaniel nunca ouviu tanta palavra sair da boca do garoto como naqueles dois dias, pergunta atrás de pergunta, sobre a cidade, sobre os livros, sobre a vida de Nathan. Perguntas simples e de poucas palavras, mas perguntas que jamais seriam postas em palavras meses antes. Com paciência e um pouco de satisfação, o maior respondeu tudo com carinho e com extensas explicações, Lucca ouvindo tudo com atenção.

No entanto, Nathaniel já não era o mesmo.

Toda vez que Lucca ficava quieto, o nariz enfiado nos livros, os olhos fixos na televisão, os dedos percorrendo toda a extensão do pequeno apartamento que podia enxergar, Nathan o observava com atenção. Desde o momento em que estranhou todo o carinho de Lucca para consigo, não conseguia parar de analisá-lo. Suas palavras, seus olhares, suas ações. Estava preocupado em níveis alarmantes, embora se questionasse se estava sendo paranóico ou se realmente estava certo.

Certo sobre o quê?, se perguntava. Sequer podia pôr em palavras, de tão enojado que se sentia ao cogitar a respeito dos sentimentos do garoto.

Foi naqueles dois dias que o médico percebeu que, talvez, o que Lucca necessitava era de novas companhias. Quando se é criança, se faz amizades no colégio, só que Lucca não podia ir ao colégio. O foco principal era que aprendesse a viver em sociedade, primeiro, e depois o foco era que ele se deixasse ser abraçado pela querência de outras pessoas. Os dois objetivos, com muita satisfação, haviam sido cumpridos - mesmo que ainda estivessem em processo.

Lucca precisava de amigos de sua idade, e talvez ainda mais novos, por motivos óbvios. Mas tudo o que o médico pensava, naquele instante, era que o que Lucca não precisava era um homem adulto - com mil afazeres -, em torno de si, o tempo todo, como se fosse seu melhor amigo. Amava Lucca de todo o coração, mas começava a se questionar se ele não precisava mais do garoto do que o garoto precisava dele. E que, por estar tão envolvido com ele, talvez não estivesse atrapalhando o desenvolvimento de Lucca sem querer.

Assim que o tempo deles acabara, Nathaniel dirigiu até Cherubfield e deixou o garoto que fazia de seu mundo um lugar melhor nos braços dos pais, para partir de volta à cidade de trabalho e ir direto para o hospital. Sua mãe, perceptiva do jeito que era, estranhou o fato dele não ficar nem que fosse uma meia hora com eles antes de voltar, como sempre o fazia. Ou talvez o que tenha estranhado era o semblante pensativo e sério do médico, que apenas bagunçou os cabelos de Lucca com um sorriso fraco antes de retornar à Wingloush.

Durante quatro dias, Nathan dormiu nas salas destinadas à tal no hospital, incapaz de voltar para o apartamento e sentir-se vazio sem o garoto dos olhos negros ali.

*

— Sim, estou certa de que irá ser incrível!

A dra. Lisa havia visitado Lucca pela primeira vez naquele mês, como conhecida, já que o caso de Lucca passara para outro psicólogo naquele meio tempo. Quando a polícia encerrou a investigação, Lisa já não mais era permitida para ser a profissional a lidar com Lucca, já que ela fazia parte da equipe da I.E.C agora. Isto não impedia que ela visitasse seu paciente preferido para ver como as coisas estavam andando, como uma amiga da família.

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Lisa tomava café da tarde com os Walker's quando sugeriu que eles fizessem visitas à orfanatos ou colégios de bairro, para que Lucca tivesse a oportunidade de fazer algumas amizades fora do âmbito onde se encontrava todos os dias. A princípio, os dois ficaram um tanto receosos, mas a empolgação de Lisa a respeito os incentivou a considerarem a ideia.

— Creio que Lucca já está preparado para mais um passo, e além disto, creio que ele está precisando de novos rostos. — Sorriu para o garoto, já que o podia ver pela janela do lado de fora, brincando com Sassenach. — É claro que terão que conversar com o psicólogo responsável — acrescentou, com uma careta que fez os dois rirem. — Mas estou certa de que ele irá concordar comigo!

Abigail olhou para o marido, que apenas ergueu os ombros.

— Eu não sei, Lisa... — começou ela, receosa. — Isto não irá alarmá-lo?

— Se houver esta possibilidade, o psicólogo atual não vai apoiar a ideia. Para isto que precisam da opinião dele — explicou ela, bebericando a xícara de café. — Mas, honestamente, depois dele haver se comportado em uma cidade como Wingloush, não acho que um orfanato vá espantá-lo.

Nigel arqueou as sobrancelhas esbranquiçadas.

— Você ficou sabendo — afirmou ele, em tom de questionamento.

Lisa pigarreou, remexendo-se na cadeira.

— Sim — respondeu, com cautela. — Nathan ficou tão animado que me ligou para contar — mentiu ela, com um sorriso crível.

No entanto, o casal ficou desconfiado, principalmente Abigail. Ambos sabiam que Nathan havia voltado com Lucca de Wingloush com uma expressão nada animada, e que depois disto, ele os havia visitado apenas uma vez e ficado apenas durante o dia com Lucca.

Quando ligava para o filho, ele geralmente ignorava as chamadas e respondia horas depois, dizendo que estava ocupado com o trabalho. Mas Abigail tinha o coração de mãe, e sabia quando o filho estava mentindo descaradamente. Na última vez que visitara, parecia relutante ao ir embora, como se quisesse ficar, mas por algum motivo, escolhera o contrário.

— Ora, que coisa boa! — disse Abigail, mesmo assim, ignorando a desconfiança. — Nathan sempre se empolga com o progresso de Lucca.

Naquele instante, Lucca voltou para dentro com Sassenach pulando à sua volta.

— Venha cá, Lucca, deixa eu dar uma última olhada em você antes de ir embora — pediu Lisa, com um sorriso.

Lucca assentiu, parando em frente à mulher pela qual já nutria certo carinho. Lisa riu, e o casal também o fez, quando retirou uma folha dos cabelos embaralhados de Lucca, que parecia ter saído de uma luta com Sassenach, ao invés de uma brincadeira. A roupa inteira suja de terra e grama, e Sassenach marrom ao invés de branco com preto.

— Você cresce tão rápido! — exclamou ela, olhando-o de cima à baixo. O queixo mais proeminente, assim como as linhas do rosto e os ombros ossudos. — Daqui um pouco está maior do que eu, já que sou baixinha — disse, com um riso.

Lucca franziu o cenho. — Sou pequeno.

— Só um pouco — disse ela, passando uma mão pelo rosto dele, logo a retirando para que ele não se afastasse antes. — Banho? — perguntou, usando das palavras-chave com ele, ao arquear as sobrancelhas.

Lucca sorriu minimamente, encarando a própria roupa, antes de assentir e dar as costas.

— Se tudo der certo — falou com os dois, tirando um cartão da bolsa —, eu tenho um orfanato muito bacana para indicar. Gloria me ensinou muita coisa a respeito!

A verdade é que a ideia de que Lucca estava pronto para mais um passo proviera de Nathaniel. O médico não a havia contatado apenas para contar que Lucca havia tido progresso em Wingloush, mas para usar tal fato para convencê-la de que estava na hora dele ter novas amizades. Principalmente, da idade dele.

Lisa não compreendeu o motivo por detrás do pedido de Nathan, mas imaginou que ele se dera conta de que Lucca estava se espelhando apenas nele, sua companhia constante de quase toda semana. Mal podia imaginar que estava um tanto enganada. À pedido de Nathan, ocultou sua parcela na ideia, já que o médico esclarecera que os pais ouviriam melhor uma opinião profissional, como a dela, e não a do filho.

A dra. Clark se despediu rapidamente, deixando um beijo para Lucca, que já havia entrado no banho. Ao invés de seguir para sua cidade, decidiu visitar a Delegacia de Cherubfield, pela qual nutria certo carinho depois de todo o apoio e ajuda que tivera dos policiais de interior. Especialmente o delegado, Gerard, com quem trocara mais do que palavras gentis meses antes.

Maio

Lucca acordou em uma segunda-feira perto do horário de meio-dia, cansado de haver passado todo o dia anterior correndo com Sassenach no pátio de seu lar. Desceu as escadas com lentidão, ouvindo o som da televisão e resmungos por parte de Nigel, seguidos de sons semelhantes provindos de Abigail.

Uniu as sobrancelhas, chegando ao térreo com rapidez, a ponto de ouvir o que dizia a televisão.

— ... sem respostas por parte do departamento policial. O caso passou para o esquecimento total, mas certamente não para o garoto encontrado, que hoje completa um ano em meio à sociedade. Fontes seguras afirmam que ele ainda vive em Cherubfield, mas não tem contato com o meio externo. Será verdade que ele foge para a floresta para correr com lobos? — perguntava a voz feminina, de dentro da televisão. — Mais informações sobre o garoto recluso, aqui, em...

Lucca podia ver o casal sentado junto em frente à televisão, lado a lado, com os rostos horrorizados ao observar a mulher morena falar sobre ele mesmo. E Lucca já sabia o suficiente sobre programas de notícias e sobre a própria fama para saber que era mesmo a seu respeito que falavam.

— Oh, Lucca! — exclamou Abigail, e Nigel atrapalhou-se com o controle remoto para desligar, por fim, a televisão.

— Você não devia ter ouvido isto, garoto — disse Nigel, com uma careta culpada. — Não dê importância ao que esse povo diz! Que bobagem!

O motivo pelo qual Lucca voltara à televisão naquele dia, era exatamente a dezoito de maio.

Não parecia, mas um ano inteiro houvera se passado desde que Nathaniel acordara naquela madrugada e se deparara com o garoto que mudaria sua vida para sempre. Um ano desde que Lucca houvera sido acolhido por uma família que não sabia que seria a sua própria, meses depois. Um ano desde sua primeira aparição em seu genuíno lar.

Ao contrário dos outros, Lucca sequer se importou com as palavras a seu respeito, dando de ombros e seguindo para a cozinha, de onde vinha o cheiro incrível do almoço já pronto.

Abigail e Nigel se entreolharam, com certo alívio, antes de seguirem para a cozinha e arrumarem a comida para Lucca, já que houveram almoçado mais cedo.

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Nathaniel não demorou a aparecer, já que jamais perderia aquela data. Ao contrário de muitos homens, Nathan sempre se lembrava das datas comemorativas e, depois de haver falhado no aniversário de Lucca, se lembrava toda vez de não falhar novamente.

Lucca esqueceu completamente da comida quando a figura alta de Nathan apareceu na cozinha, com um sorriso largo no rosto. Nathan parecia mais pálido que o normal, com olheiras mais profundas abaixo dos olhos e o pescoço mais magro.

No rosto de Lucca refletiu-se o mesmo sorriso aquecido do médico, embora mais contido, enquanto os olhos negros permaneciam nos olhos amendoados do mais alto.

Nigel suspirou de alívio pelo filho aparecer depois de três semanas afastado, já que não sabia mais o que fazer com o garoto, longe do médico. Lucca houvera ficado agitado, sempre atento ao nome do médico nas conversas dos outros dois, e decepcionado quando quem passava pela porta de entrada era Gus.

Abigail deixou os olhos repreensivos para outro momento, observando com carinho a mudança extrema na postura do mais novo.

Lucca levantou-se, deixando o prato pela metade, até parar em frente ao médico, sem desgrudar os olhos dele.

— O que foi? — perguntou o mais velho, com uma careta contida. — Sentiu muita falta tanto assim?

No fundo, Nathan quase sentia vontade de chorar de tanta saudade. Já havia ficado três semanas longe, por causa do hospital, mas desta vez havia sido diferente, já que escolhera ficar longe. Achava estar fazendo o certo para Lucca e aguentou uma, duas, três semanas, até achar que podia fazer a visita na data especial - ao menos, para ele -, como um prêmio por haver ficado tanto tempo longe.

Sentia como se estivesse de dieta, forçando-se a ficar sem o que gosta de verdade, e no fim, se presenteou com o melhor pedaço de chocolate do mundo, que era aquele sorriso genuíno de Lucca. Engoliu em seco, sentindo-se um tanto culpado, porque Lucca realmente parecia ter sentido sua falta de verdade. Isto indicava de que talvez não houvesse feito tão bem assim, já que soubera que os pais ainda não haviam tomado iniciativa sobre novos amigos para o menor.

O abraço foi consequência.

Todos se surpreenderam quando Lucca quase escalou Nathan para abraçá-lo pela segunda vez, apertando o médico com tanta força que os dedos esbranquiçaram. Nathan teve que engolir as lágrimas, chorão do jeito que era, dando-se conta de que havia realmente tocado Lucca para que ele se dispusesse a abraçá-lo novamente, ignorando o contato que geralmente odiava.

— Falta — repetiu Lucca, fungando o cheiro de Nathaniel como se sua vida dependesse disto.

Lucca nunca pensou que isto ocorreria, mas teve que relutar para sair dos braços do mais alto, naquele abraço que parecera durar tão pouco, logo inspirando fundo e indicando o pátio com a mão. Um tanto emburrado, porque só depois de abraçá-lo bateu o rancor pelo médico haver demorado tanto, o guiou para os fundos da casa para mostrar sua casa da árvore, que havia sido finalizada por Nigel, com a ajuda do mais novo.

Nathan ainda ficou um tempo engolindo em seco, e desviando o olhar do sábio de sua mãe, antes de seguir Lucca porta afora. Sempre o seguiria.

Naquele instante, sua mente ficou em branco com os próprios motivos e decidiu-se. A dieta acabava ali e que se explodisse o resto.