O som de adagas perfurando o reboco ecoava dentro do banheiro feminino.

— Idiotas… - sibilou Chara, conjurando mais uma adaga de energia, acertando-a acima dos azulejos – eu não preciso deles… - sua voz perdeu a acidez macabra, tornando-se um choramingo sufocado – eu… sei que sou uma aberração…

Nascida invulgar, a única de sangue mágico em uma extensa família de humanos comuns, Chara havia tido de lidar com muito sofrimento desde cedo.

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Nunca havia tido oportunidade de entender por que se sentia e agia tão diferente das outras crianças. Receber a visita de um guardião e entrar em Underground havia sido a melhor coisa que lhe acontecera na vida.

A hostilização e humilhação que havia tido de suportar na mão dos demais - cujo medo do desconhecido fazia com que a maltratassem – haviam sido o bastante para torná-la uma criança secretamente amargurada e triste.

Sua ambição em se provar, e sua personalidade supostamente sarcástica e irritante, eram apenas uma fachada – o seu mecanismo de defesa, que havia forjado lentamente com o passar dos anos, na tentativa de evitar mais sofrimento.

E tudo aquilo escondia uma garota frágil e carinhosa, que agora encontrava-se magoada, parecendo ter fracassado outra vez em manter as pessoas ao seu lado.

— Eu só queria… que fossem meus amigos…

Uma lágrima de cor escura escorreu pelos olhos da menina. Chara passou os dedos pela trilha úmida, constatando o pranto negro - que tendia a escapar quando estava especialmente abalada.

Violentamente, voltou a atirar, como se o tinir das armas pudesse distraí-la de sua decepção angustiada.

Outro som chamou sua atenção. Chara virou a cabeça, espreitando por cima do ombro.

— Quem está aí? - exclamou, forçando-se a disfarçar o tom choroso em sua voz.

Não houve resposta. Chara desceu da pia, erguendo a varinha na direção da penumbra.

— Apareça! - bradou, ignorando o tremor em sua mão.

Ofegante, abaixou-se a tempo de não ser atingida por um raio alaranjado, que explodiu contra a parede, abrindo um rombo no concreto.

Atônita, ergueu o olhar, vislumbrando uma luz pulsante e flutuante diante de si. Várias ramificações ao redor da pequena esfera ondulavam no ar, como tentáculos hostis e imateriais.

Embora nunca tivesse visto uma pessoalmente, Chara sabia o que era.

— Um traço – arquejou.

Corrompido e parasitário, só poderia ser isolado após possuir um corpo humano ou monstro.
E Chara estava completamente sozinha.

O traço rutilou, lançando outra vez seus raios contra a menina. Embora tivesse conseguido desviar alguns deles sem problemas, Chara foi atingida pelo último raio, desabando de volta ao chão.

Antes que o traço atacasse novamente, porém, um feitiço brilhante e claro causou um clarão, impedindo que os golpes da alma corrompida terminassem de subjugar Chara.

— O quê..?

Asriel estava resfolegante, agora retraído de choque ao chamar a atenção do traço. Frisk não estava menos perplexa, brandindo sua varinha a esmo, tentando mirar na esfera esquiva que flutuava diante deles.

— O que fazemos? O que fazemos? - ofegou Asriel.

— Lembra do que eu te disse! - Chara rolou pelo chão, fugindo de outro raio – girar e sacudir!

Asriel obedeceu, gesticulando sua varinha. Finalmente, emergindo do canalizador, uma espada brilhante surgiu, escudando habilmente os golpes do traço.

— Boa, Asriel! - exclamou Frisk e agora?

— Precisamos deixar que ele possua um de nós – frente aos guinchos de medo de Asriel e Frisk, Chara acrescentou – é só por alguns segundos! Eu sei como extrai-lo!

Frisk prontificou-se, antes mesmo que Asriel pudesse reagir.

— Tudo bem! - acenou – mande-o para cá!

Acuando o traço, Chara conjurou mais de suas adagas, confundindo-o e fazendo-o recuar. Sem ter para onde flutuar, mergulhou em espiral, entrando dentro do corpo de Frisk.

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A garota ofegou baixinho, sentindo uma quentura desproporcional tomar conta dela, resvalando-se em ondas até a ponta de seus dedos.

Accio! — bradou Chara, apontando sua varinha para Frisk.

Frisk tossiu, sentindo que algo sólido e quente se retirava de seu corpo. Atônita, assistiu uma pequena e dócil esfera emergir para fora dela, flutuando calmamente na direção de um frasco que Chara havia conjurado.

Asriel, ensandecido, tratou de fechar pessoalmente o frasco, arrancando a rolha da mão de Chara e tampando-o.

— Cara… mas que diabos…

Uma comoção alta emergiu repentinamente na entrada do banheiro. Para choque do trio, Undyne, acompanhada de Burguerpants e Riverman, adentraram afobadamente, parecendo decididamente atônitos.

— Minha nossa… - ofegou Undyne, a mão abarcando a maior parte da testa – será que os três podem me explicar o que estão fazendo aqui?

— Olhe – Burguerpants disse – eles conseguiram recolher o traço!

Riverman estava sem seu capuz, e parecia decididamente perplexo com o cenário que via à sua frente.

Frisk baixou a cabeça de modo tenso. Sabia que, embora as motivações deles tivessem sido as melhores, nada justificava terem ido sozinhos até a Ala Leste, ainda mais diante do toque de recolher. Ela e Asriel poderiam se considerar nada menos do que encrencados.

— A culpa foi minha, professora Undyne.

— Chara!

Frisk arregalou os olhos para Chara, cujo braço ainda sangrava, cortado por um dos raios do traço. Asriel também titubeou, perplexo.

Chara havia, desde o início, feito de tudo para ser uma aluna exemplar. Assumir a culpa por algo que não havia feito, apenas para proteger os dois…

Inevitável, o carinho fraternal que Frisk já andava nutrindo por Chara finalmente transbordou.

— É isso mesmo, professora – ela guinchou – ouvi sobre o traço e quis ver de perto. Eles só vieram me ajudar… e conseguiram. Frisk até se dispôs a ser receptáculo… se não fosse por eles, eu provavelmente estaria morta agora.

Os três professores se entreolharam. Undyne resfolegou, sacudindo a cabeça, erguendo a mão para Chara.

— Me dê isso aqui, garota – recolheu o frasco com o traço neutralizado, ocultando-o sobre as vestes – não esperava algo tão irresponsável de uma das alunas mais inteligentes da Sonserina, Chara, Tirarei cinco pontos de sua Casa pela sua grande insensatez!

Chara baixou a cabeça, envergonhada. Frisk sentiu-se mal por ficar quieta, deixando que a encenação continuasse.

Undyne virou-se para ela e Asriel, estreitando o olhar.

— No entanto… nenhum monstro ou invulgar do primeiro ano conseguiria lidar tão bem com um traço corrompido – suspirou, erguendo uma sobrancelha – dez pontos para Grifinória e Lufa-Lufa… pela pura sorte de estarem vivos – virou-se para Riverman – vou comunicar Gerson, e ver o que faremos com este traço. Podem voltar para a sala… retornarei assim que puder – disse aos dois professores – e é melhor ir até a Ala de Cura cuidar desses ferimentos, Chara.

Dizendo isso, Undyne retirou-se com Riverman e Burgerpants, deixando os garotos finalmente sozinhos outra vez.

Os três olharam-se por um momento, hesitantes.

Foi Chara que se pronunciou primeiro.

— Obrigada – sussurrou – vocês salvaram minha vida – olhou para Frisk – foi muito corajosa… se oferecendo como hospedeira do traço.

Frisk deu de ombros.

— Não foi nada – disse – precisávamos parar aquela coisa.

Asriel encarou a invulgar, o focinho tremendo ligeiramente.

— Ahn… valeu por não nos entregar para Undyne, Chara.

— Era o mínimo que eu podia fazer – a menina deu uma risada vacilante – afinal, eu podia ter morrido. Vocês… podiam ter morrido.

— Não, é sério – o monstrinho insistiu – obrigado. De verdade.

Tudo que Chara fez foi revirar os olhos e bufar.

— Ah, cala a boca. Ainda estou com raiva de você – proferiu, finalmente se encaminhando para fora do banheiro.

Humorada, Frisk observou Asriel sacudir a cabeça.

— Essa garota é maluca, Frisk – comentou, enquanto deixavam o recinto – e acho que vamos ser o pior tipo de influência pra ela, se você quer saber.

Mas, no fundo, Frisk sabia que Asriel sentia o mesmo que ela.

Á partir daquele dia, Chara se tornou melhor amiga dos dois. |Afinal, algumas coisas jamais podiam ser realizadas sem que todos os envolvidos virassem melhores amigos. E, decididamente, lutar contra um ser assustador, derrotando-o com a força da união, era uma dessas coisas.