O padre aguardou na escuridão de seu quarto com os olhos fechados. Esperava fazia horas, mas a igreja permaneceu quieta. O único som era seu coração, as batidas preenchendo seus ouvidos como tambores.

Nathan estava exausto, mas o sono não veio. Não nos últimos dias. No passado, quando a insônia atacava, ele lia a bíblia. As palavras do Senhor o acalmavam e apaziguavam sua mente. Mas eu não mereço Suas palavras de misericórdia agora, pensou; a imagem do Livro Sagrado o paralisava naquele momento.

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Levantou-se e caminhou até sua escrivaninha. Até na escuridão, sabia onde a gaveta estava. Nate pôs a mão no Livro. Ainda que não visse, era o mais perto que estaria das palavras d’Ele.

Seja forte e corajoso. Não tema; não perca a fé, pois o SENHOR, seu Deus estará contigo para onde quer que vá, pensou ele, com um sorriso triste nos lábios. Um dos versículos favoritos de Nate; aquele com o qual gostava de encerrar sua missa. Mas, depois de tudo, era ele quem não tinha coragem.

Deus, rezou ele, pela primeira vez em dias. Não sei se o que fiz foi o certo a fazer. Sou um mero homem, que não conhece o caminho que traçou para mim. Mas se eu tiver pecado, por favor, perdoe o garoto. Ele não tem culpa. Por favor, Senhor… este humilde servo implora que perdoe o jovem.

O padre chorou enquanto orava para o silêncio.

Aqueles que teu nome conhecem em ti confiam, pois você, DEUS, nunca abandonou aqueles que o buscam, enquanto repetia as Preces em seu coração, Nate escutou algo. Foi fraco, pouco mais alto que suas próprias lágrimas, mas o padre sabia o que era e foi até a sala secreta após pegar a sacola em cima da escrivaninha.

No instante em que empurrou a porta secreta, a intenção assassina do jovem envolveu Nate. Mandou calafrios para seu corpo. Ele precisou segurar o braço para parar de tremer.

— É você — disse Samuel com a voz rouca, a intenção assassina sumindo no segundo seguinte.

Não tema, não perca a fé, repetiu Nate até acalmar seu coração. Ele ficou assim por minha culpa. Ele só olhou quando Samuel estendeu as mãos cobertas de sangue e sujeira atrás de comida. O padre nada disse, mas o jovem notara.

Samuel olhou para sua mão, fechando e abrindo os dedos.

— Enterrei Mirela — disse, sua voz indiferente e o olhar morto.

O padre sabia que era melhor não perguntar mais. Esperou até o jovem mal comer a comida.

— É isso que ia perguntar, né? — Samuel pegou algo do bolso da jaqueta e jogou pro padre.

Mesmo na escura sala, Nate conseguiu pegar. Ele sentiu a dormência o preenchendo assim que sentiu o coração frio ainda bater de alguma forma. Engoliu a ânsia de vômito repentina. E pensei que também já havia morrido por dentro. Nate inspecionou o órgão, o sangue escuro em suas mãos.

— Agora, só precisamos da…

— Da cabeça. — Até os sussurros dele transbordavam raiva.

Nate encarou o jovem perante si. No passado, aconselharia a abandonar a raiva. Ela o machucava mais do que qualquer outro. Diria para crer no Senhor e assim seu caminho surgiria, por mais misterioso que fosse. Contudo, agora as palavras pareciam vazias. Até para o próprio Nate. Sua fé no Senhor não podia forçá-lo a dizer qualquer coisa para Samuel.

O padre colocou o coração no velho baú, perto da pedra vermelha-escura. Carne e sangue, pensou, enquanto fechava a tampa.

— Melhor descansar. Trarei comida mais tarde — disse, antes de sair. Ele empurrou a estante de volta a sua posição original, escondendo a porta.

Voltando a seu quarto, ele se sentou na cama de novo e cobriu o rosto com ambas as mãos. Meu Senhor… há qualquer coisa que eu possa fazer por ele? Suas palavras não alcançam o coração dele ou fazem qualquer diferença mais. Por favor, Deus, diga-me por que o destino dele é sofrer e morrer consumido pela raiva… por favor… Rezou mentalmente, porém, de novo, não obteve resposta. Antigamente, gostava de rezar para o silêncio. Para ele, era como se o próprio Deus permitisse que a calma e paz o preenchesse. Dessa forma, encontraria a resposta sozinho. Agora, o padre sentia-se vazio.

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Nate desabotoou a camisa. Com a fraca luz providenciada pelo sol nascente, ele viu a pele cinza em cima de onde seu coração estava. Está se espalhando, percebeu, surpreso por não temer aquilo. Abotoou a camisa enquanto se lembrava de como o mundo que conhecera fora destruído. As memórias assombravam sua mente outra vez. Não é de estranhar que não consiga sentir o Senhor mais. Este lugar não é mais a casa d’Ele… não mais… não após tudo que fiz…

Aquele dia começou como qualquer outro. Após Nate fazer o desjejum, no meio de suas orações matutinas, escutou um clank, tão baixo que o padre chegou a duvidar de suas orelhas e acreditou ser meramente sua imaginação. Continuou com a prece, todavia, após ouvir uma respiração carregada, soube que não era sua mente e seguiu o som com a bíblia em mãos.

A igreja estava deserta, mas logo os outros membros do clérigo chegaram. Então eles também ouviram, pensou Nate, atento para a fonte do som. Após alguns minutos conferindo o lugar, não conseguiram encontrar nada e se dispersaram, como se não fosse nada.

Só Nate permaneceu. Estou certo de que ouvi… Sem desistir, ele procurou dentro da igreja novamente. A única coisa fora de lugar era um banco. Alguém o empurrou enquanto procurava? O padre colocou o Livro Sagrado no banco e o alinhou junto aos demais. Enquanto limpava o pouco suor em sua testa, notou uma marca vermelha no chão.

Nate se ajoelhou e tocou com um dedo. É grudento, notou. Com um mau pressentimento, cheirou a mancha. Sangue. O padre olhou em volta, vendo manchas de sangue em todo lugar do nada. Sua visão embaçou e a respiração ficou pesada e ríspida.

Como não vi? Ninguém mais viu? Ele rezou para acalmar seu coração. Quando a respiração normalizou, Nate seguiu as manchas de sangue.

A trilha vermelha parou diante do altar. O padre olhou em volta, mas não viu nada que indicasse a fonte. Nate fechou os olhos e inspirou e expirou lentamente, tentando entender. O sangue não estava aqui antes… Eu chequei alguns minutos atrás. E nem perto do banco… Seria uma brincadeira de mal gosto? O cheio de sangue preencheu suas narinas. Ninguém faria isso na casa do Senhor. Nem aquele coroinha engraçadinho… O cheiro ficou mais forte enquanto ele respirava mais rápido. Então o que seria? De onde esse sangue veio? Do que… de quem?

O cheiro ficou tão forte que Nate passou mal. Ele conteve a ânsia de vômito e abriu os olhos. Foi um erro. Onde havia uma trilha de sangue, agora se encontrava uma poça. E ela crescia.

O padre derrubou a bíblia e colocou as duas mãos no chão, no sangue, e vomitou. Enquanto limpava a boca com as costas da mão, a igreja girou perante seus olhos. Sentiu outra ânsia de vômito e fechou os olhos. Nate rezou.

Enquanto recitava as Palavras em seu coração, algo agarrou seu cotovelo. Ele abriu os olhos, mas não viu nada. A força que segurava seu cotovelo aumentou, tanto que Nate pensou que quebraria seus ossos a qualquer segundo.

Ele tentou puxar o braço, mas o membro não se moveu. Ele tentou agarrar a força invisível. Os dedos de Nate pegaram algo, mas não importa o que fizesse, a mão invisível ainda o esmagava. O padre não aguentava mais.

Enquanto lágrimas caíram, ele fechou a mão livre e a balançou, tentando acertar qualquer coisa. Foi em vão. Porém algo agarrou seu pulso.

No meio do ar, onde nada além do sangue deveria estar, uma luz branca apareceu. Foi fraca no começo, mas aos poucos, ganhou forma e então Nate viu um rosto familiar através das lágrimas. Samuel…?

Era o rosto do filho de uma de suas fiéis. Contudo, não podia ser o garoto. O rosto dele estava muito mais velho e branco, além de empalidecer a cada segundo. O rosto arregalou seus olhos e o homem tossiu, sangue saindo de sua boca. Só agora o padre notara a ferida no peito dele.

A mente de Nate parou de funcionar. Ele não conseguia pensar. Esqueceu de respirar. Esqueceu de que ajoelhava em sangue. Esqueceu da dor que sentia. Só havia o rosto familiar perante si.

— Quem é você? — Escutou sua própria voz perguntar, mas não lembrava de ter falado.

— … — A boca moveu-se e ele falou, mas Nate não entendeu nada.

Enquanto ele permanecia onde estava, o homem levou sua mão coberta de sangue até o rosto do padre, tocando a têmpora com dois dedos. Ainda que Nate quisesse fugir, a força em seu cotovelo ainda estava lá. E mesmo se não estivesse, seu corpo congelado recusava-se a obedecer.

Os olhos do homem demonstraram dor e retirou a mão, deixando uma trilha de sangue na bochecha de Nate. O homem respirou fundo.

— Consegue… me entender… agora?

O padre esqueceu de como falar, mas conseguiu assentir.

— Encontre aquele… que pode… vê-los…

A força segurando o cotovelo do padre ficou mais forte e a dor trouxe a voz dele de volta.

— Quem é você?

— Eu sou… Alexandre… e este lugar… será… destruído — disse, tossindo mais sangue. — Faça aquele… que pode… vê-los… beber meu sangue…

Seus olhos observaram a igreja. Enquanto a respiração ficava mais fraca, Alexandre apontou para o altar. O Cálice Sagrado voou para sua mão. Ele ergueu o braço e o colocou perante a abertura.

Nate sentiu o horror preenchê-lo, mas não podia fazer nada além de assistir o sangue cair até encher o Cálice. Alexandre empurrou o Cálice para a mão do padre.

— Quem… beber isto… vai morrer… mas é a… única forma… de salvar… este lugar…

A mão de Alexandre caiu no chão e antes que Nate pudesse dizer algo, o homem desapareceu.

Junto com ele, o sangue também sumiu, sem vestígio, como se nunca tivesse estado lá.

Nate sentiu as lágrimas descendo por seu rosto de novo. Ele rezou mentalmente, esperando que fosse um sonho. Mas o cheiro de sangue, de morte, continuava lá, preso no nariz do padre. Quando ele olhou para baixo, viu o sangue no Cálice. Nate sentiu outra ânsia de vômito e não conseguiu conter dessa vez.

Ele tentou levantar, mas suas pernas trêmulas não tinham força. Com uma mão livre, arrastou-se até o banco mais próximo, porém, enquanto se arrastava, sentiu algo.

O Livro Sagrado, pensou Nate fracamente. Ele o pegou e virou-o, suspirando de alívio quando notou que não havia sangue. Mas, ao ver a capa, seu corpo tremeu. A cruz dourada que antes estava lá havia desaparecido. A beirada das páginas perdera seu brilho dourado e agora eram simples páginas brancas.

Com a mente em branco, ele descansou o Cálice no chão e abriu a bíblia onde seu marcador de página estava. No lugar de sua passagem favorita, ele não achou nada. Sentiu seu corpo ficar frio enquanto marcas vermelhas apareciam na página.

O vermelho cresceu até preencher tudo e então diminuiu até desaparecer. E agora a página não estava mais vazia.

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Nate tentou ler, mas as palavras não faziam sentido. Ele folheou as páginas; a bíblia estava escrita novamente, mas ele não conseguia ler nada.

Ele olhou da bíblia para o Cálice. O líquido vermelho não se parecia com sangue mais. Era grosso, escuro e, quando levou perto de seu nariz, não tinha mais cheiro.

Todavia antes que pudesse chorar de novo, o mundo tremeu.

A vidraçaria colorida da janela quebrou, a estátua da Virgem Maria caiu e quebrou em vários pedaços. O material para a missa caiu do altar.

Durou apenas um segundo, mas, para Nate, foi como uma eternidade. Alguns segundos depois, o som de uma explosão o alcançou e ele sentiu seu corpo tremendo.

A tremedeira parou, mas o sacerdote não se moveu. Tudo que pôde fazer foi sentar no chão. O que está acontecendo? pensou e a voz de Alexandre ecoou em sua mente.

Nate se forçou a levantar e os gritos chegaram a seus ouvidos. Respirando com dor, enfiou o livro profanado dentro das roupas e se arrastou para fora da igreja, olhando na direção da explosão.