Nós iremos

"Nós iremos"


Particularmente, eu não era fã do natal.

Mesmo assim, liguei para mamãe. Ela gostava de escutar a minha voz em datas comemorativas. Dava a sensação de que eu não estava tão longe.

— Recebeu minhas lembrancinhas? Não queria ter demorado tanto para enviar, fiquei com medo de que não chegassem a tempo - confessou com sua voz sempre baixa e assustada.

— Recebi, maman. Adorei o casaco. Obrigada.

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— Eu não sabia se você gostaria. Imagino que aí pela Coreia as garotas usem coisas diferentes, né? Mais bonitas.

— O seu casaco é bem mais.

— Não se esqueça de ir pra igreja, certo? Hoje é dia de reza. Eu e seu irmão vamos mais tarde (aí deve ser noite já, não é?) - e deu um suspiro pesado. — Queria tanto que você estivesse aqui, Hannah. O coro da igreja vai parecer tão pobre sem a sua voz. Eu sinto tanto a sua falta…

— Eu também, maman. Eu também.

A conversa não se alongou mais depois desse ponto - mamãe não gostava muito de tecnologia, então preferia reservar um dinheiro ao final do mês para poder me ligar. Ela também não gostava de, como sempre dizia, tomar o meu tempo, ainda que esse jamais fosse o caso. A mim, só restava respeitar as suas limitações.

Depois de uma rápida pesquisa, guardei o celular dentro do casaco, puxando as suas abas para me aquecer melhor. Empurrei o óculos, ajustando-o sobre meu nariz, e segui em frente. De acordo com o mapa, a igreja católica mais próxima ficava a pelo menos oito quadras de distância de onde eu estava. Seria bem mais fácil pegar um metrô e poupar a caminhada, mas eu não sabia os horários dos transportes públicos em feriados. E, de qualquer maneira, não estava quente para andar.

Desde a minha chegada em Seul, eu não havia procurado nenhuma instituição católica. Por mais fervorosa que tenha sido a minha criação, minha fé não seguia o mesmo esquema. Os últimos acontecimentos foram suficientes para colocá-la em dúvida. Mesmo assim, resolvi ir para a missa do galo. Era uma forma de me sentir perto, pelo menos um pouquinho, da vida que deixei em Nîmes. De mamãe.

A igreja ainda estava vazia na hora em que, razoavelmente suada pelo esforço, cheguei. Era um prédio pequeno, totalmente condizente para um país cujo catolicismo não era a religião oficial. Me sentei num dos bancos mais próximos da saída para não atrapalhar quem já estava assistindo à missa das nove e fiquei escutando as palavras do padre. Meu coreano ainda não era tão bom para compreender tudo, mas pelo menos dava para pescar a ideia principal.

Minha cara deveria ter denunciado que alguma coisa ali me deixava confusa, porque um rapaz ao meu lado chamou a minha atenção - em inglês:

— Estrangeira?

Empurrei o óculos novamente e o encarei. Jamais vi sorriso tão malicioso em dezenove anos - mas não aquela malícia cheia de intenções sexuais. Me lembrava mais o sorriso do Gato de Chesire: cheio de camadas, impossível de interpretar.

— Difícil de perceber, heim? - rebati, sem devolver o sorriso. Não estava a fim de ser simpática.

Ele riu, afastando uma mecha vermelha que caía sobre seus óculos amarelos, com listras pretas.

— Você tem sotaque - disse. — Não pode ser americana, nem inglesa.

— Você também não. Deixe-me adivinhar: você é… coreano!

— Bem na mosca - ele arregalou os olhos amarelos para mim, empurrando seus óculos para o topo da cabeça. — Essa foi bem complicada! Mas você se saiu muuuuito bem.

Balancei a cabeça e dirigi a minha atenção para o altar. O padre já daria início à comunhão.

O barulhinho de teclas do celular desviou minha concentração para o lado mais uma vez. O dito cujo digitava tão rapidamente que era impossível manter o foco no que o padre dizia.

— É a minha empregada - confessou após perceber que eu estava observando. — Ela não me deixa nem ao menos vir para a igreja num dia sagrado, veja só.

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— Empregada? - perguntei mais pela retórica do que por interesse.

— Dá pra imaginar? Ela gosta tanto de trabalhar pra mim que resolve mandar mensagens até no natal!

Ele vasculhou o celular antes de me entregar o aparelho.

— Essa é ela. Mary Vanderwood 3ª.

Eu realmente queria ter segurado o riso, mas não consegui e acabei deixando escapar um gritinho razoavelmente alto que os fiéis não puderam ignorar.

— Que ofensivo! - ele falou, exclamando como se realmente tivesse sido afetado pela minha risada. — May Vanderwood 3ª ficaria realmente muito triste se alguém risse dela e pelas costas.

— Boa piada - falei, devolvendo o celular para o rapaz e enxugando as lágrimas que escaparam furtivamente. — A menos que ela se pareça muito com você travestido de empregada.

— Fazer o que se ela se inspira em mim? Sou um modelo a ser seguido.

— Muito engraçado.

Ele estendeu a mão para mim. Fiquei olhando para seus dedos longos antes de me decidir se os apertava ou não.

— Defensor da paz e da justiça - disse, apresentando-se. — Agente 707.

E, como quem não tinha muitas opções além daquela, apertei sua mão.

— Uma pessoa não muito importante para o mundo. Hannah Martin.

— Como eu imaginava - ele sorriu, vitorioso, assim que escutou o nome que não conseguia esconder o meu sotaque. — Você é francesa.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.