Olhe nos meus olhos

Me acompanhe ao crepúsculo


(...)E muito certamente haverá tempo
Pra que flua pela rua a parda fumaça
Esfregando o dorso pelas vidraças;
E sim, haverá tempo, haverá tempo
De preparar um rosto que outro rosto encare;
Haverá tempo para matar e criar,
Tempo de mãos, para os trabalhos e os dias,
Que erguem e lançam questões no seu prato;
Tempo para você, tempo pra mim,
E tempo ainda de mil e uma indecisões,
Também de inúmeras visões e revisões,
Antes da hora de torradas com chazinho.(...)

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E muito certamente haverá tempo
Para se perguntar: “Devo eu ousar?” e, “Eu devo ousar?”
Tempo de dar meia volta e descer as escadas,
Com o meu cocuruto calvo como um alvo —
(E dirão: “Como o cabelo dele está ficando ralo!”)
Meu paletó, colarinho engomado, o queixo firme,
Alfineto a gravata, mui discreta e chique,
(E dirão: “Como as pernas e braços dele estão magrinhos. ”)

E eu devo ousar
Perturbar o universo?
Em um minuto temos tempo
Pra decisões e revisões que num segundo verão seu reverso.(...)
A todos conheci, já sei de tudo: —
Sei bem as noites, as manhãs, as tardes,
Tenho a vida medida em colheres de chá;
E sei, num fim de outono, as vozes moribundas
Que vem de um salão remoto, sob música.
Como então eu presumiria
E eu começaria como?(...)

Diria: Caminhei no crepúsculo por vielas estreitas,
Vendo a fumaça subir dos cachimbos
De homens sós, em camisetas, nas janelas? (...) - J. P. Sayon

— E qual é a sua coisa favorita sobre ela? - Ruby bebericou seu vinho, se aconchegado melhor no grande sofá da sala.

Essa pergunta surpreendeu Emma um pouco. Ela não tinha certeza do que tudo isso tinha a ver com Regina trocando ela por Belle, mas ela mordeu o lábio e tentou dar uma boa resposta, debatendo entre algo engraçado e algo sério.

— Temos vivido juntas por apenas alguns anos e eu vou admitir que não sou a pessoa mais certinha que já viveu nesse mundo. Eu tenho muitas qualidades fortes, mas tenho a mania de deixar para trás uma coisa ou duas, onde quer que eu vá pela casa.

Ruby sorriu, conhecia bem a desorganização da amiga, afinal, dividiram um apart por 3 anos antes do casamento com Killian. Sorriu mais ao ver que Emma continuaria seu discurso.

— Regina não é uma aberração ou coisa assim, mas ela gosta das coisas organizadas. Ela gosta que tudo fique em seu devido lugar, assim é mais fácil encontrar mais tarde. E pensei que quando eu me mudasse, iria encontrá-la andando atrás de mim com uma vassoura varrendo migalhas e um cesto pra todas as roupas que eu jogasse em todo lugar, mas ... ela não as toca, ela só deixa tudo onde deixo. E ela nunca me pede para catar também. Me deixa invadir seu espaço e ela nunca reclama. Essa é a minha coisa favorita sobre ela. Ela sabe quem eu sou e me ama, mesmo eu tão errada. Ela não me pede pra mudar, só me toma como eu sou.

— Awwwnnn - Ruby pulou o sofá e deu um abraço forte em Emma.— Oh SOCOOORRROO! Você é fofa demais. Aí meu Deuuss!

— Tem um espaço aí pra mim? - Killian entrou na sala, sorridente. Ruby levantou rápido e abraçou o amigo. - Que saudades!

O abraço foi forte, necessitado, carregado de saudades e boas lembranças.

— Me perdoa, esqueci de falar que estava vindo. - Ruby se desculpou sem sair do abraço.

Killian abraçou a amiga mais uma vez antes de abraçar Emma.— Tudo bem. Regina me ligou falando que você chegou ontem e vai passar a semana aqui com Emma.

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Ruby e Emma trocaram um olhar assustado.

— De um crédito a ela - Killian defendeu— Ela ama a Emma, nós viemos no pacote - riu. - Apesar que não acho que eu seja a pessoa favorita dela. E por falar nisso... Cade ela? Hoje é domingo.

— Me trocou pela namorada da Ruby. - Emma resmungou.

— Não esqueça que também fui trocada. - Ruby foi na cozinha pegar uma taça para o amigo.— August ta vindo aí. Já é? — brincou subindo e descendo as sobrancelhas.

— Você ta brincando que teremos o retorno do "Tigres de bengala'"?! - Animação era a palavra que descrevia o tom que Killian usou.

— Uuuhhhuuuu!!! VAMOS BAGUNÇAR ISSO AQUI!!!! - Ruby gritou animada.

— O que está acontecendo aqui? - Jesus e Blandon perguntaram ao mesmo tempo ao entrarem na sala. Nico apenas olhava a agitação assustado.

— Os "Tigres de bengala', kid. Vamos relembrar hoje. - Emma falou sorridente

— UHHUUUUUUUUU - Ruby comemorou outra vez. Sempre foi a mais "maluca" que todos.

— Eu quero! Me deixa participar?! Deixa?! - Blandon estava animado.

— Contavamos com isso, campeão. - orgulho e animação eram as palavras que definiam Killian.

— Eu vou filmar! Com certeza! - Jesus também estava animado, subindo as escadas e indo em direção ao quarto buscar a câmera.

— O que está acontecendo? - Nico estava perdido, olhando a alegria contagiante sem entender nada.

— "Tigres de bengala", é tipo, o melhor grupo que já existiu. - Blandon estava alegremente emocionado— É o grupo da mamãe e do meu pai na época da faculdade. Cara! Eles arrasavam.

— Ei! Meu também! - Ruby reclamou— Respeita sua tia, garoto. - brincou— Você só existe porque eu fundei esse grupo. Agradeça a mim porque você foi feito antes de uma apresentação.

— Vamos editar essa parte, Ruby. - Emma estava sem graça. - E vamos a garagem tirar algumas coisas lá. Regina irá nos matar se fizermos algo aqui. Vocês não tem noção do amor dela pela organização dessa sala. É um amor homicida.

***

— Era um grupo de quê? - Nico estava interessado enquanto ajudava empilhar algumas caixas.

— Era um grupo de teatro. Nós íamos em orfanatos, asilos e até fomos em um presídio uma vez. - Emma respondeu sorridente, estava sentada em uma cadeira, ninguém deixou que ela fazer nada. "olha sua patinha machucada" Ruby falava a todo instante. Sentia falta de Regina, sua esposa sempre a deixava sentir útil, mesmo com uma única mão.

— E o que vocês faziam?

— Tentávamos ajudar as pessoas. Levar um pouco de risos. Rir é sempre o melhor remédio - piscou para o garoto que a olhava admirado. - E meio que era uma banda também. A primeira vez que criei coragem pra chamar a Regina pra sair foi pra ver uma apresentação nossa.

— Onde foi? Como foi? Regina riu? - A cada dia admirava mais o relacionamento de Emma e Regina.

— "Me acompanhe ao crepúsculo", esse era o título da nossa peça que ela assistiu. A apresentação era melhor que o título, garanto. - riu.— Era de humor, mas também tinha romance e aventura. Regina disse que ficou encantada. Tinha uma parte que eu caia no meio do palco, foi o momento que ela mais riu. Jamais esquecerei o olhar admirado dela quando recitei um poema de P.J.Sayon. Depois jantamos juntas, foi o dia que mais conversamos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida.

— Então, vocês começaram a namorar?

— Não. - ficou triste— Nos aproximamos, então, no dia seguinte eu fiz um teste de gravidez, aí tive que me afastar dela.

— Então, você desistiu do teatro também?

— Virei mãe. - Seu tom estava desanimado. - Não que isso seja ruim, Blandon foi a melhor coisa que me aconteceu, mas... Uma criança trás responsabilidades e dívidas, eu não podia sair por aí atrás de sonhos que não dariam em nada ou que não pagaria minhas contas.

— Regina, teatro e música eram só sonhos? - Havia tristeza na voz do garoto. - Você disse que seus sonhos não dariam em nada...

— Sim. Regina foi um sonho que se tornou realidade, o melhor sonho que já tive. Por esse sonho eu lutei e morrerei lutando. Mas... teatro foi um sonho da minha adolescência. Os anos passam, nossas prioridades mudam e nossos sonhos também.

— Qual seu sonho agora?

Emma ficou um tempo observando o rapaz a sua frente, não sabia qual a resposta. Há anos não se fazia essa pergunta.
Estava apenas existindo sem grandes expectativas? Não havia reparado isso.

Não terminou a faculdade, teve um filho, casou, separou, casou novamente e teve mais dois filhos e, agora? Qual a expectativa?

Os olhos azuis a sua frente ainda ansiavam por uma resposta, resposta que jamais viria. Emma gostaria de não ter ouvido tal pergunta. Agora isso ficaria rodando em sua cabeça.

— Então, kid. Soube que seu passarinho está quase voando - sim, era melhor fugir que responder, jamais se orgulharia disso.

Nico ficou pensativo, havia uma tristeza nos seus olhos? Emma jamais saberia, aquele garoto ainda era um mistério. - Quer ver? - perguntou animado.

— Quero. Vamos deixar pra eles arrumarem essa bagunça.

— Ei! Eu ouvi isso! - Ruby gritou.

***

Emma estava na varanda, esperando que Nicholas fosse buscar o tal passarinho. Jesus havia falado que o pássaro era o melhor amigo do garoto. Algo como uma versão viva de Tigra.

Novamente o pensamento da sua falta de sonho a incomodou, tentou admirar o céu, um espaço vazio, impossível ser mais inútil.
O vazio cria isso, inutilidade, pensou.


Odiava vazios, odiava inutilidade.

Seus filhos logo iriam para a faculdade e depois sairiam de casa, ficaria o vazio. O vazio que dolorosamente iria compartilhar com Regina.

— Ei! To aqui. - Nico apareceu animado, passarinho na mão.

— Hum, é um belga. Muito lindo. - Emma sorriu para o garoto, tão fofo. Cuidou durante semanas daquela ave. Deu tudo, mesmo quando não tinha nada.

— Eu ia fazer isso sozinho, mas fico feliz que você esteja aqui.

— Isso o que?

— Libertar o Tito.

— Você vai libertar seu pássaro? Usa a gaiola, kid.

— Gaiola é só pra ser temporário, nada deve ficar preso pra sempre e já usei ela por tempo demais. - acariciou a ave. - Temos que saber quando libertar algo. - levantou as mãos e abriu os dedos.
Tito ficou receoso no início, abriu devagar uma asa e depois a outra. Em um pulo, abriu mais as asas e voou. Subiu em uma árvore e depois ganhou o céu.

Emma observava a tristeza mesclada a alegria no rosto de Nico. O garoto deu a liberdade ao que tanto amava. Deu carinho, cuidou, alimentou, fez vigília e agora estava de pé, sorrindo ao perder o amigo pássaro de vista.

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— Não irá sentir falta do Tito, kid?

— Muito.

— Então, por que deixou ele ir depois de cuidar dele por tanto tempo?

— Por que ele não pertence a mim, pertence ao céu. Prender ele significa tirar uma parte dele, tirar seu pedacinho de céu. E sobre cuidar... - colocou as mãos na cintura e sorriu mais uma vez para as nuvens.— Eu cuidei pra incentiva-lo ao seu destino. Cuidei porque é isso que devemos fazer: estimular as pessoas a seguirem seu destino. O do Tito era a liberdade. Da minha irmã, segurança e amor. Eu sempre dei amor a ela, mas jamais pude dar segurança, como vocês estão fazendo. Sei que estou sendo ousado e ingrato ao pedir isso, mas... Fiquem com a minha irmã. Ela precisa de vocês. Nosso tempo aqui ta acabando e ela precisa de vocês.

Emma notou o tom desesperado por trás do "precisa". - Ela não tem sequelas do que aconteceu, kid. Quando algo acontece conosco, sempre nos marca e cada pessoa é marcada com uma intensidade diferente.

Nico olhou para o chão, parecia culpado.

— Você quer me dizer algo, kid?

— Ela não consegue dormir de noite. E o pouco que cochila tem pesadelos. - confessou, quase um sussurro.

Emma lembrou da primeira noite de Lara na casa, ela saiu muito cedo, cedo demais para uma criança, isso quer dizer que não havia dormido.— Você sabe que as camas chegarão amanhã, isso quer dizer que você não irá dormir com ela. Por que não nos contou antes?

— P-porque eu tive medo de vocês não querer dar abrigo pra gente. Tipo, crianças problemáticas são as mais difíceis de adotar ou de dar abrigo. Ninguém quer um problema em casa.

Emma pegou a mão de Nico e sentaram juntos no banco da varanda. - Nicholas, sempre que algo incomodar você ou sua irmã, vocês precisam nos falar. Não somos seus pais, mas somos responsáveis por vocês e você não faz ideia do quando gostamos de você e da sua irmã. Não podemos ajudar se não soubermos como, entende? E queremos muito ajudar vocês. O psicólogo está marcado pra essa semana, mas mesmo assim, conversa com a gente.

Abraçou o garoto que chorou em seus braços, molhando a jaqueta vermelha que Emma usava. Ela não se importou, aquele garoto precisava desabafar e ela precisava abraçar alguém. Uma criança não deveria guardar tanta coisa dentro, tanta dor e medo.

O vazio foi feito para ser preenchido, Emma pensou ao olhar o céu, enquanto consolava aquele garoto.

Era isso que sentia falta, de ser útil. Lembrou dos "Tigres de bengala", do olhar admirado de Regina, dos risos da plateia e da animação na voz de Blandon e Jesus.

"Se não tiver nada a oferecer, ofereça um sorriso." Esse era o lema do grupo.

Queria ligar pra Regina e contar todos pensamentos que rondavam sua cabeça, estava ansiosa, queria sua esposa ali, sua amiga e companheira, queria Regina para contar sua decisão e sua vontade.

Apenas queria Regina ali.

Abraçou mais forte Nico, abraçou seu filho.