A Herdeira do Olimpo

O que você fez?


Pietro

Naquele dia, enquanto via todos os semideuses se preocupando com o funeral de Chris e Uriah, Maya se tornou invisível. Quando os semideuses recobraram a consciência depois da luta e a encontraram chorando em meu ombro ao lado de um monte de poeira dourada e nenhum sinal do ruivo, entenderam quase instantaneamente o que tinha acontecido.

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Percy fez menção de avançar, provavelmente para perguntar se a irmã estava bem depois de tudo aquilo, mas assim que ela sentiu a aproximação do pequeno grupo, reagiu de uma forma inesperada para mim.

Ela desenvencilhou-se de meu abraço, ainda chorando, correu até uma parte da floresta, se transformou em um lobo branco e correu para dentro, sem olhar para trás. Encaro o nada algumas vezes ainda. Nunca fui muito bom com esse tipo de situação e ficava sem saber como agir quando me via nela.

Percy passa por mim um tanto apressado, provavelmente indo atrás dela, mas seguro seu braço. Ele para e me olha.

“O que está fazendo?” Pergunta puxando o braço.

“Ela precisa de um tempo sozinha.” Respondo. Percy fica sério.

“Não sabemos aonde ela foi, Pietro. No estado em que ela saiu é quase impossível dizer o que estava pensando, e ainda tem a profecia e você provavelmente já sabe o que ela diz.” Esbraveja. Fecho a cara para o moreno.

“Se acha mesmo que ela está indo se entregar, talvez devesse prestar mais atenção nela.”

“Ah, e como você pode saber o que ela vai ou não fazer? Está aqui só há três dias!”

“Não sei! Mas ela não me parece o tipo de pessoa que entrega as pontas assim e faz justamente o que querem que ela faça, ainda mais quando isso pode significar o fim desse mundo de merda!” Grito. Ele fecha a boca e seu semblante diminui de certa forma, mas eu já havia começado. “Está na cara que ela está abalada! Mas acha mesmo que ficar pressionando ela vai fazer a situação melhorar?” Ele não responde. Respiro fundo, controlando a raiva. “Deixe ela esfriar a cabeça, Percy. Maya está enfrentando muita coisa agora.”

Ele baixa os olhos constrangido e coloca as mãos nos bolsos.

“Está bem.” Se vira e sai, chutando algumas pedras pelo caminho e indo até aonde os outros quatro semideuses se reuniam. Antes de me juntar a eles, olho para trás, para o ponto onde Maya entrou na floresta, esperando que ela voltasse, mas não aconteceu. “Você vem?” Percy chama.

Volto o olhar para o grupo. Eles haviam se reunido na margem com Percy à frente, provavelmente esperando que ele abrisse passagem por entre o rio. Passo a mão nos fios, ajeitando o cabelo e embainho a espada.

“Claro.” Grito em resposta e me dirijo até o grupo, mas um pouco disperso.

Não falei muito durante o trajeto de volta ao acampamento. Na verdade, mesmo pelo evidente tempo que Percy e Nico estavam sem ver os amigos, ninguém falou muito. Um clima pesado pairava sobre todos ali. Percy havia explicado brevemente sobre o que estava acontecendo e mantínhamos um silêncio em respeito aos que haviam morrido, enquanto voltávamos ao lugar onde aquilo havia começado para buscar o corpo de Uriah. O encontramos no mesmo lugar que eu e Kye o havíamos deixado depois de que impedi que Matthew o matasse.

Ele estava caído, de bruços, em uma das extremidades da clareira. Quando o viraram, pude ver o buraco em seu peito onde havia cravado a espada, ainda aberto, apesar de as feridas feitas durante a luta anterior a este fato terem se regenerado. Em seus antebraços, era visível a presença de duas linhas verticais, que denunciavam o ato do suicídio.

“O que diabos aconteceu aqui?” Pergunta Hazel olhando em volta, para o campo que mais parecia ter sido cenário de uma guerra. “Foi sua irmã que fez isso, Percy?”

“Creio que sim.” Diz pegando o corpo do semideus de Ares nos braços. “Quando Pietro me trouxe para ajudar, o lugar já estava assim.”

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“Eu estava no acampamento, ouvi o som de tiros vindo daqui e quando eu cheguei, Matthew estava usando o corpo de Uriah para fazer Maya se descontrolar e tentar matar Kye.” Explico. Jason franze o cenho.

“Matthew? Quem é Matthew?” Percy joga a cabeça para traz e solta um suspiro alto.

“Isso é uma looonga história.” E enquanto voltávamos para o acampamento, ele contou aos amigos sobre os acontecimentos daquela semana. Os lobisomens, os sumiços que haviam parado depois do ataque ao acampamento, sobre Maya ser a Herdeira do Olimpo e irmã do moreno, tudo. Volta e meia, eu olhava em volta, na esperança de ter algum vislumbre dela, mas isso não aconteceu. Os relatos de Percy se estenderam depois que chegamos ao acampamento, ele e os outros se dirigiam a casa grande para informar Quíron sobre sua chegada.

“Eu já vou então.” Digo quando eles começaram a ir em direção à casa grande. “Vou...ham...treinar um pouco”

“Tudo bem, a gente se vê na hora do almoço.” Diz Percy.

“Claro...a gente se vê.” Resmungo, mas não pretendia almoçar hoje. Ando de cabeça baixa até a arena, volta e meia olhando em volta, procurando Maya na multidão de semideuses que havia naquele lugar.

Não conseguia parar de pensar no que vira quando Kye passava seus últimos momentos com Maya. Quando o colar de Macaria se “ativou” de modo que eu pudesse ver as almas, o fato de não ter visto nada acima dele...isso fazia minha cabeça doer. Já havia presenciado antes o momento que uma alma deixava o mundo dos vivos, conhecia a sensação, mas não havia absolutamente NADA nele. E a forma como seu corpo se desintegrou em poeira dourada… algo estava faltando nisso tudo, uma peça importante...parecia estar na ponta da língua, mas a resposta simplesmente não vinha! Chuto uma pedra no caminho, frustrado e quando volto a andar, esbarro em alguém e cambaleio para trás atordoado.

“Desculpa.” Digo recobrando o equilíbrio e olhando para ver em quem eu esbarrara. Eram Luana e Jonas. “Ah, oi Luana. Desculpa de novo, não havia te visto.”

“É. Você parece meio disperso.” Diz com um sorriso bobo enquanto Jonas a abraçava de lado e brincava com sua orelha. “O que aconteceu? Onde estão Kye e Maya?”

Sinto um bolo se formar na minha garganta.

“Ela...ele...é que…” gaguejo várias vezes tentando explicar, mas não conseguia formar as palavras. Jonas coloca a mão em meu ombro.

“Respira cara, não vai chegar a lugar nenhum assim.” Diz, o rosto antes com a expressão sorridente e despreocupada agora ficando mais séria. Respiro fundo. “Isso, bom. Agora, pode falar.”

“Matthew entrou no acampamento, se apossou do corpo de Uriah que se suicidou e fez Maya se descontrolar.” Começo devagar, o bolo fazendo minha garganta doer a cada palavra. “Tivemos que lutar para fazer ela voltar ao normal e depois de um tempo, ele...me tirou da frente do caminho de um golpe fatal.” Digo baixando os olhos para meus pés. “Ele levou o golpe no meu lugar.”

Luana abafa um grito e arregala os olhos, como se não acreditasse. Jonas fica completamente sério e seus olhos violeta perdem.um pouco do brilho. Ele põe uma mão no bolso da bermuda.

“Como está Maya?” Pergunta o brasileiro.

“Muito mal. No rio, onde aconteceu, ela se transformou em loba e correu para dentro da floresta. Ainda não voltou.” Luana arregala ainda mais os olhos.

“ Acha que ela pode…?”

“Não. Acho que essa seria a última coisa que faria. Ela só deve estar precisando esfriar a cabeça…as coisas não estão indo bem.” Jonas suspira.

“Isso está cada vez pior…” resmunga. “O garoto de Ares que havia sido mordido está com os primeiros sinais da transformação, mas...podemos procurar por Maya.” Luana acena.

“O garoto vai ficar bem, mas ela...é só uma criança! Alguém precisa falar com ela. Perder o melhor amigo assim...” comenta preocupada. Coço a cabeça e penso um pouco.

“Vamos dar um tempo para ela...ela está de luto, então é bom respeitarmos isso.” Digo. Eles concordam com a cabeça e trocam olhares, assumindo uma expressão de preocupação. Franzo o cenho. “O que foi? Tem mais alguma coisa?”

Ambos suspiram.

“Não é uma boa hora mas...Hoje mais cedo, Kye veio falar com a gente, dizendo que tinha um plano, que poderia nos ajudar contra a bruxa. O plano é realmente excelente. Tem seus riscos e tudo, mas nos daria uma vantagem imensa.” Explica. “Ele iria falar com você e Maya, pedir que fizessem parte do plano já que precisaríamos do máximo de ajuda que pudesse reunir, mas acho que não vamos ter tantas chances de sucesso sem ele e pelo que ouvi de Rachel, ele era praticamente o único que conseguiria convencer Maya participar também por conta do...hum...problema dela com a mãe.” Diz pesarosa. Suspiro.

“Às vezes gostaria de saber sobre o que aconteceu com Maya.” Murmuro para mim. Encaro Luana. “ Como é esse plano?”

Ela e Jonas se entreolham.

“Tem certeza que quer saber? Quer dizer...vamos entender se você ou Maya não quiserem ir pra frente com isso.” Diz Jonas. Balanço a cabeça.

“Sei que não é um bom momento, mas ainda tem muita coisa em jogo.” Levo a mão ao pescoço e sinto o colar que Macaria me dera. Esfrego o pingente em forma de folha que tinha desde pequeno, nervoso. “Ainda temos sete dias, não é?”

Luana acena.

“Foi o que Matthew disse. A profecia também disse que ela iria, ao menos foi o que Rachel nos contou.” Diz pensativa. “Bom, temos que aproveitar bem nosso tempo.”

Luana passou a próxima meia hora me contando sobre o plano de Kye. Parecia muito arriscado o que eles pretendiam fazer, levando em conta a imensa desvantagem...mas se funcionasse, poderíamos acabar de vez com esse problema! Coço o queixo.

“Quem mais está envolvido?” Pergunto.

“Gina, Yan e Alex, Rachel, Nico, Will e Percy. Percy falou também sobre uns camaradas de são Francisco.” Explica Jonas.

“É, eles já estão aqui, mas A desvantagem ainda é enorme…”

“Não se conseguirmos fazer com que Maya ajude.” Luana parecia pensativa, ao mesmo tempo que receosa em dizer aquelas palavras. “Quer dizer...não sabemos se Lorena vai estar lá.”

“Não acho que ela esteja em condições, Lua.” Jonas diz. “Cara, ela está muito abalada. O Kye era a pessoa que ela era mais apegada, qualquer um, mesmo que não os conhecesse, conseguia ver isso de longe. Eu mesmo não conseguiria levantar da cama por dias se você tivesse morrido.”

Luana ruboriza com as palavras do brasileiro e depois balança a cabeça, tentando disfarçar.

“Concordo com vocês. Ela seria de grande ajuda, mas está abalada de mais.” Dou um longo suspiro e apoio a mão no cabo da espada. “Podem contar comigo e quanto à Maya, eu falo com ela, quando a situação se amenizar.”

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Jonas suspira e encosta a mão fechada em punho no meu peito.

“Confio em ti, mano. Você tem uma coisa especial.” Diz, os olhos violeta cintilando.

“Se precisar, Jonas e eu estaremos no chalé de Ares com o Peter. Vai ser doloroso pra ele passar essa noite e vamos evitar que mais alguém morra.” Diz Luana. Aceno e eles se despedem, indo em direção ao chalé. Olho para frente, a arena a alguns metros de distância. Aperto o cabo da espada e passo o polegar sobre o rubi entalhado, acompanhando seu contorno e avanço diretamente para a arena, a raiva já me subindo à cabeça.

O lugar estava vazio quando cheguei. Havia vários bonecos de palha presos a estacas de madeira espalhados por toda a área de treinamento e algumas espadas e escudos de treino recostadas no degrau de baixo. Como não queria estragar o fio da espada descarregando minha raiva em um boneco, vou até o lugar onde as espadas estavam recostadas, desprendo a minha do cindo e pego uma espada de treino e um escudo. Testo o peso da lâmina. Era um pouco grande e pesada, mas não dei muita importância ao fato pois já corria em direção ao boneco mais próximo e começava a desferir diversos golpes com a lamina e o escudo, deixando que os instintos e reflexos que desenvolvi depois de nove anos praticando esgrima tomassem o controle de meu corpo.

“Deuses, monstros, profecias, morte…” cada uma dessas coisas que conseguiram fazer minha vida mudar de uma monotonia agradável para uma bagunça assustadora.

Maya.” Seu nome veio à minha cabeça depois do que pareceu várias horas e com um único golpe, cravo a lâmina da espada de treino na haste de madeira, separando a cabeça do corpo do boneco e fazendo palha se espalha pelo chão. Eu arfava e suava como se tivesse corrido por várias horas sem parar. Meus braços doíam pelo esforço. O escudo jazia jogado em um canto, havia desistido dele e passado a atacar só com a espada. Respiro fundo algumas vezes e tento tirar a espada da haste, mas ela estava presa. Solto o cabo e acerto um chute na cabeça de palha do boneco, fazendo mais palha se espalhar. Inferno. Murmuro para mim mesmo.

“Bem, esse boneco não vai machucar mais ninguém por aqui.” Uma voz fala atrás de mim. Me viro de uma vez, surpreso e dou de cara com um homem que aparentava ter quarenta anos, pele bronzeada, cabelos escuros quase negros e olhos verde-mar. Ele usava uma camiseta de botão folgada estampada com palmeiras e uma bermuda simples. O tridente que trazia em mãos denunciou sua identidade. Ele sorriu para mim, ressaltando as marquinhas em volta dos olhos, resultado de várias risadas. “Olá Pietro.”

“Poseidon?” Pergunto boquiaberto, mesmo sabendo que era ele, a pergunta meio que me escapou. Ele ri e acena, fazendo uma garrafa de água mineral aparecer em sua mão. Ele a entrega a mim.

“A maioria das pessoas faria uma reverência, se ajoelharia, mas não me dou muito bem com essas formalidades e me parece que você está cansado demais para isso também.” Aceito a água depois de alguns segundos o encarando, sem acreditar mesmo que um deus apareceria pra mim.

“Ahn...Obrigado senhor.” Agradeço. Abro a garrafa e dou um longo gole, sentindo meu corpo já melhorando do esforço. Quando paro, praticamente metade da garrafa estava vazia. Olho para o deus, que ainda me encarava, como se estivesse me analisando. Me sinto um pouco desconfortável então tento quebrar o silêncio. “Então...o que faz aqui?”

Ele dá de ombros.

“Vim falar com você.”

“Sobre o quê?” Pergunto dando outro gole na água.

“Maya. Você gosta dela.” Engasgo na mesma hora com o nome da morena e quase cuspo tudo. O deus dá um sorriso caloroso com minha reação e pude ver que segurava o riso.

“Quê? Eu? Ela? Quando você? Como? Quer dizer…” limpo a garganta depois de gaguejar essas palavras. “Como pode ter certeza disso?”

“Eu tenho observado vocês. Da para ver pela forma como olha para ela. ” Ele olha para a praia de modo pensativo. “Mesmo que ela não saiba, dá para ver que também sente alguma coisa por você. Mas não é exatamente por isso que estou aqui.”

Termino de beber a água, tentando esconder a vermelhidão em meu rosto, causada pelo o que o deus acabara de falar.

“O que tenho para falar? Ela é sua filha. Você a deve conhecer melhor do que eu.”

Ele suspira, ainda olhando para a praia e gira o tridente nas mãos.

“Pode até ser, mas...Maya me odeia.” Diz com o olhar um pouco envergonhado. O encaro sem entender.

“Por que ela o odiaria? O senhor não fez nada!” Ele olha para baixo. Uma sombra passa por seu rosto e sua expressão se torna triste.

“Exatamente. Eu não fiz nada.” Diz de forma amarga, quase que cuspindo as palavras com desgosto. “E não vou conseguir me perdoar por isso, não se ela não me perdoar antes.”

“Eu não entendo.” Digo. Ele suspira e se apoia no tridente de bronze.

“Desde que passou a entender o mundo, ela culpava um tipo de “força superior” pelo que aconteceu. Então, cinco anos atrás, quando que ela descobriu ser uma meio sangue, ela passou a culpar seu parente divino e agora, três dias depois de ela descobrir que sou eu seu pai, ela direcionou esses quinze anos de ódio para mim.” Ele faz uma pausa de reflexão. “Sabe o que é pior nessa história? ”

“Não, senhor.” Nego.

“Ela não está errada em fazer isso.” Diz sério. “Eu poderia ter feito alguma coisa, poderia ter impedido, mas fui ignorante quando pensei que aquilo não se estenderia por tanto tempo. Agora, minha ignorância pode significar o fim de todos.”

“Desculpe senhor, mas...do que está falando?” Pergunto sombrio, sentindo o dia ensolarado ficando cada vez mais frio e o céu antes limpo dar a lugar a nuvens de chuva.

“Sobre Maya e Lorena.” Diz finalmente. Sinto um nó se formar em minha garganta. O deus para de fitar a praia e me olha, seus olhos verde-mar como os de Maya olhando no fundo dos meus. “Você não imagina o que é ouvir por cinco anos, os gritos de agonia da própria filha. Gritos pedindo que sua dor acabasse, gritos por misericórdia, gritos pedindo pela morte, cada um deles ignorado por mim, porquê havia me convencido de que nem Lorena seria capaz de continuar a fazer aquelas atrocidades. Eu sou um idiota. Não mereço ter Maya como filha depois daquilo.”

Fico algum tempo sem falar nada. Ali, na minha frente, estava um dos deuses mais poderosos do Olimpo assumindo que foi ignorante, idiota e que não merecia ter uma filha como Maya. Teria rido da situação, mas a forma como ele estava tratando aquilo era tão séria, que penso se as coisas que Lorena fizera à Maya foram tão monstruosas quanto aparentavam. Na minha mente, me veio a imagem de Maya, na vez em que ela viu a foto de Lorena, todas às vezes em que alguém disse o nome da Bruxa e todas às vezes que alguém sequer cogitava que ela fosse à sede dos lobos. Ela entrava em pânico! Empalidecia tanto que parecia que todo o sangue havia fugido de seu corpo. Ela parava de respirar, começava a suar e tremer e demorava para que voltasse ao normal. Agora entendia, mesmo sem saber o que havia acontecido, o porquê que ela reagia daquela maneira. Até mesmo dormindo, tiveram as vezes que seu corpo se retesava e sua respiração falhava. Naquele momento odiei Poseidon.

“E por que em vez de ficar aí se lamentando com qualquer semideus não vai atrás dela e pede perdão?” Aperto a garrafa e o plástico amassa sobre meu punho. O deus ergue uma sobrancelha.

“Eu queria pedir sua ajuda.” Diz. Fecho a cara para Poseidon. Deus ou não, aquele cara estava pedindo demais e eu estava me segurando muito para não atirar o plástico da garrava no nariz divino dele.

“Olha aqui, não sei o que aconteceu com Maya no passado, mas dá para ver como isso a afetou. Se eu tivesse até um oitavo do seu poder, no instante que alguém fizesse qualquer coisa que poderia afetar minha filha da forma que afeta Maya, eu perseguiria essa pessoa e não daria um minuto de descanso até que ela se arrependesse amargamente do que fez. Agora, se você não teve a cara de pau de fazer isso, mesmo tendo cinco anos para tal, não passa de mais um covarde e não vou assumir esse fardo por você!” Digo e passo pelo deus batendo forte o pé e indo em direção ao lugar onde deixara minha espada, mas quando olho para o lugar, ela havia desaparecido. Me viro e dou de frente com Poseidon, que segurava a lâmina e me olhava com cara de poucos amigos.

“Cuidado com o que fala, filho da morte. Lembre-se com quem está falando. Você não me quer como inimigo.” Diz sério e lança a espada em minha direção. Pego-a no ar, mas não abaixo a cabeça para ele.

“Deus ou não, nem mesmo você pode dizer que o que eu falei é mentira.” Digo firme. A raiva subindo à cabeça. “Maya merecia um pai melhor, que realmente se preocupasse com ela. Não um idiota como você!” E com um impulso de raiva, lanço a garrafa de água vazia na direção do nariz divino dele.

Poseidon fecha ainda mais a cara e antes que o objeto atingisse seu rosto, ele acena com o tridente e este desaparece no ar, deixando um cheiro de maresia em seu lugar. Ele aponta a arma para mim.

“Não me desafie novamente, garoto. Não quer saber o destino daqueles que contrariam o oceano.” E com um aceno, desaparece em uma nuvem de poeira. Encaro o lugar onde ele esteve segundos antes, suspiro e reviro os olhos.

Não quer saber o destino daqueles que contrariam o oceano.” Imito. “Que cara arrogante.” Sinto algo me atingir na testa e cair aos meus pés. Olho para baixo esfregando a testa e reconheço o formato de uma pequena concha. Pego o objeto e olho para a praia. “Ha ha, muito engraçado!” Digo e coloco o objeto no bolso da calça, me virando para sair da arena.

Já do lado de fora, vejo um vulto branco no horizonte e paro imediatamente, olhando na direção de onde vira o movimento. Do ponto onde a floresta acabava dando lugar à praia, vejo um imenso lobo branco sair de lá. Ele mancava e havia algo manchando deu pelo, mas à essa distância não conseguia identificar o que era. O lobo balança a cabeça, olha em volta e vendo que estava sozinho, segue mancando para o mar. Parecia estar com algo na boca, mas não me importei, pois sabia que aquele lobo, era Maya.

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“Morena…?” Chamo. Ela não me ouve e quando pisa na duna, seu corpo cede sobre as patas e ela cai na areia. Dou um passo em sua direção, mas ela estava à quase trezentos metros de distância, ainda muito longe. Ela se levanta e sacode o corpo, livrando-se da areia e com passos vacilantes, desce as dunas e some de meu campo de visão. Sinto um formigamento e uma sensação, como se algo me puxasse em direção a praia e paro, depois de perceber que havia dado poucos passos.

“Não.” Repreendo a mim mesmo, sacudindo a cabeça. “Dê a ela um tempo. Ela acaba de perder o melhor amigo e você não toda essa intimidade.”

Me viro e começo a ir na direção oposta, mas sinto algo no peito, como um aperto no coração e paro, voltando-me para a praia. Fecho a mão em volta da concha em meu bolso e bato o pé algumas vezes no chão enquanto pensava.

Respiro fundo tomando coragem e esfrego a concha na mão. “Bom...seja o que os deuses quiserem.” Penso E avanço com passos apressados para a praia.

(···)

Chegar à praia foi a parte fácil, a situação piorou quando cheguei lá e demorei para encontrar as pegadas de Maya, pois o vento e a chuva fraca que havia começado já desfaziam seu rastro. O que me ajudou a encontrar, foram as gotas vermelhas que seguiam por toda a praia. Me agacho ao lado de uma e molho meus dedos, sentindo o líquido quente melando meus dedos. Sangue…

O rastro seguia em linha reta, alternando a quantidade onde o sangue havia pingado. Engulo em seco e o sigo, andando por vários minutos antes do primeiro sinal preocupante. Era algo como vários montes disformes na areia, rodeado de generosas gotas de sangue. Suspeitei que Maya tivesse caído outra vez ali, mas a partir daquele ponto, o rastro subia a duna, e acabava embaixo de uma construção de madeira, o cais. O mar parecia mais violento à medida que a chuva engrossava e parecia subir rápido. Esfrego os braços para me esquentar enquanto espreitava os olhos, tentando enxergar através das gotas de chuva e reconheço a pelagem branca dançando com o vento. Ela havia se abrigado abaixo do cais. Tremo um pouco com o frio e subo até a construção, fugindo da chuva.

Maya estava deitada com a cabeça entre as patas quando alcancei o lugar. Estava de costas para o mar então não sei se me viu chegando. Em vários pontos, seu pelo estava manchado de vermelho, que supus serem os ferimentos que ela arranjou depois de perder o controle. Quando me aproximo mais, suas orelhas giram em minha direção e ela olha para trás. Sua íris estava castanha e em volta, seus olhos estavam vermelhos e inchados pelo choro. Quando me reconhece, não demonstra qualquer reação, simplesmente volta a deitar a cabeça entre as patas e fitar uma pequenina fogueira em sua frente que possuía apenas uma brasa brilhante crepitando. Me adianto e sento em sua frente, chegando mais para perto da fogueira. Mesmo deitada, a forma loba de Maya era quase da minha altura sentado e isso era de certa forma intimidador.

“Maya...você está bem?” Ela não responde. Também, nem sei se poderia na forma de lobo. Ela simplesmente continuou encarando a fogueira. Vez ou outra, lambia um dos lugares manchados pelo sangue. Este voltava a cor branca, mas rapidamente, tornava a manchar de vermelho. Ela bufava e voltava a deitar. Franzo o cenho. “Não está curando?”

Ela rosna em resposta. Entre as patas e abaixo de sua cabeça, havia um pedaço de madeira que não deveria ser maior do que um controle remoto de televisão. Não dava pra ver muito bem, mas acho que era algo realmente importante já que ela preferia guardar sob sua cabeça do que usar de lenha para a fogueira. Esfrego as mãos e sopro para esquentar os dedos já doloridos pelo frio e minha respiração se condensa no ar. Olho em volta. Havia alguns pedaços de madeira espalhados pela areia, então pego os que estavam mais secos e amontoo-os sobre a brasa, esperando que a fogueira ganhasse vida. Maya observava meus movimentos com um olhar pesaroso e cansado. Quando a fogueira não se acendeu, ela franziu o cenho e olhou para mim como quem dizia: Cara, não acredito que você apagou minha fogueira.

Caio sentado ao lado de sua cabeça.

“Foi mal, mas aquilo não estava ajudando muito!” Ótimo. Agora estou falando sozinho. Maya olha para a fogueira e fecha os olhos, franzindo o cenho, se concentrando na fogueira. Depois de alguns segundos com a chuva estourando acima de nós, uma pequena fumaça sai do amontoado de tocos de madeira e uma chama tímida dança, acendendo-a finalmente. Olho para a morena, que havia virado a cabeça para lamber outra ferida. “Obrigado.”

Entre suas patas, podia ver agora o que era aquele toco. Era uma pequena estatueta de grifo, pouco maior que minha mão. Sinto um nó se formar em minha garganta e olho para cima, me deparando com dois grandes olhos castanhos tristes me fitando. Mesmo estando recoberta de pelos, conseguia distinguir as olheiras profundas e algumas falhas em seu pelo, onde supus que suas cicatrizes estavam. Aponto para a pequena estatueta e ela segue minha mão.

“Posso?” Maya fita o objeto por alguns segundos, pesarosa, depois o focinha levemente, instigando-me a pegar. Quando o faço, tenho um vislumbre de sua pata direita. Parecia dobrada em um ângulo estranho, estava muito machucada e em volta dela, havia uma pequena poça de sangue. Ela percebe que eu encarava e tenta recolher a pata, mas seu rosto se contrai de dor e ela rosna, deitando a cabeça de lado, frustrada. “Por que não vai à enfermaria? Eles poderiam resolver isso rápido!”

Ela rosna e continua deitada. Estendo a mão para tocar sua pata ferida e ela rosna para mim. Fecho a cara e endireito o corpo, rasgando uma tira da minha camisa e estendendo em direção à pata. Ela rosna ainda mais e coloca a cabeça na frente, impedindo que eu continuasse. Cruzo os braços para ela.

“Se não está se curando e não quer ir à enfermaria, me deixe apenas enfaixar para não piorar! ” Ela não move um músculo e continua rosnando. Levo a mão devagar até seu focinho que cabia em minha mão e tento empurrar sua cabeça para o lado. Ela teimava em não me deixar encostar na ferida e, já irritada, me empurra para trás com a cabeça. Caio sentado ao lado da estatueta de grifo.

“Caramba! Por que essa teimosia toda?!” Maya não responde, em vez disso, direciona o olhar para o objeto de madeira. Franzo o cenho e o pego no colo, pouco a pouco as coisas clareando na minha cabeça. Suspiro e coloco o boneco de lado e me aproximando até estar de frente para ela. “Olha, entendo que sente muito a falta dele, mas isso…” aponto para sua pata. “...não vai traze-lo de volta, e tenho certeza que Kye não gostaria de te ver machucada assim.”

Ela pareceu surpresa com o que falei. Me encarou por alguns segundos, e acabou cedendo com um bufo de cansaço e deitando a cabeça virada para a fogueira, deixando as patas à mostra. Agora que conseguia ver melhor, parecia que Maya havia socado concreto por várias horas com aquela mão. Vários dedos estavam visivelmente quebrados, a pele estava ralada em diversos pontos e em carne viva em outros, que infelizmente estavam repletos de areia. Limpo seus machucados e os enfaixo. Maya não esboçou muita reação enquanto o fazia, mas vez ou outra rosnando de dor. Quando terminei, a chuva já estava diminuindo consideravelmente, mas ainda não era uma boa hora para sair de nosso abrigo temporário, então desabei sentado, recostando-me em uma das vigas de sustentação de madeira e pegando a estatueta para analisar melhor os detalhes. Era bem recente, ainda dava para sentir a umidade da madeira, mas os detalhes...era quase como se estivesse segurando um grifo de verdade nas mãos. Maya havia tido o cuidado de entalhar cada pena das asas, cabeça, bico...se aquela pequena estátua ganhasse vida bem ali no meu colo, não me surpreenderia, pois parecia tão real…

Não muito tempo depois, quase infarto quando uma cabeça gigante de lobo deita em minhas pernas. Suas orelhas, que faziam cócegas em meu pescoço, fez ou outra se moviam captando os sons, mas sua atenção estava toda no grifo. Fico com receio de apoiar meus braços em seu corpo machucado, mas depois de um tempo, vou me aproximando lentamente e vendo que ela não recuaria, desço os braços. O pelo dela era tão macio e quente que não resisto ao impulso e suspiro enquanto o acariciava. Quando, sem querer, passo a mão em uma das feridas, seu corpo se contrai em um reflexo, mas ela não recua.

“Desculpe, morena.” Peço. Ela rosna baixinho em resposta e aconchega a cabeça um pouco mais para perto. Olho para minha mão, as pontas dos dedos molhados de com o sangue ainda quente. “Maya, você sabe por que não está se curando?” Ela suspira e acena num movimento rápido. “É por causa de Kye, não é?” Ela acena de novo e dessa vez, sinto uma lágrima quente cair em minha perna.

Acaricio sua cabeça, reconfortando-a. Ela ronrona e lambe minha mão. Sorrio.

“Gostaria de dizer que entendo como se sente, sabe? Mas não sei. Só posso dizer que, para o que você precisar, qualquer coisa mesmo, vou estar aqui com você.” Abraço-a, chegando meu rosto um pouco mais para perto de suas orelhas e completo em um sussurro. “Eu prometo, tá? Qualquer coisa que precisar, prometo estar aqui para você.”

Ela lambe minha mão novamente e, estendendo o corpo um pouco para frente, alcança a estatueta com a boca e o coloca em minha mão, virando a cabeça de modo que pudesse me olhar. Seus olhos já haviam voltado à cor verde-mar. Entendo seu gesto e acaricio sua face.

“Não se preocupe. Vamos honrar sua memória.”

Sua expressão relaxa um pouco e ela fecha os olhos, soltando o ar forte e fazendo um som semelhante àqueles que cães fazem quando bocejam, deita novamente a cabeça e sua respiração parece se regularizar, como se tentasse dormir. Me recosto na barra, ainda chovia um pouco e pela aparência das nuvens que encobriam o sol, não pararia tão cedo e já que pelo visto eu estava preso embaixo de vários quilos de cabeça de lobo, o melhor seria tentar tirar um cochilo também. Um trovão ribomba e Maya resmunga em meu colo. Suspiro.

“É, tem razão. Seria mais fácil se essa coisa toda não estivesse acontecendo.” Digo, recostando a cabeça e tentando dormir. Não foi muito difícil já que não tinha uma boa noite de sono já há algum tempo. Depois de alguns minutos, pude sentir a sonolência tomando conta de mim e adormeço ali, ao som do crepitar da fogueira, da chuva e do mar à nossa frente.

Maya

As arvores passavam como um borrão à minha volta, e as lágrimas embaçavam minha visão. Esbarrei dezenas de vezes em árvores e pedras, sem conseguir fazer nada além de correr, fugir daquela voz que sussurrava constante e incansavelmente no fundo de minha cabeça:

Assassina. Assassina. Assassina…

“NÃO!” Grito, ainda sentindo as lágrimas quentes molhando minha face. Sua imagem se formou em minha cabeça. Ela sorriu para mim, um sorriso amarelo enquanto seus olhos vermelhos como dois faróis fuzilavam minha alma.

“Você o matou. Sua única âncora. Seu único refúgio. E você o matou.” Ela sussurra. Fecho os olhos e consequentemente, trombo em uma árvore. Ouço alguns cracks e minha visão embaça um pouco, mas balanço a cabeça e me ponho de pé. Os ferimentos que adquiri enquanto estava fora de mim ardiam como brasa, sem se regenerar, manchando o pelo branco que recobria meu corpo.

Olho pra frente e ela surge novamente, como uma outra versão de mim. Seu corpo parecia ser feito de pura névoa negra, que se dissolvia e reformava continuamente, como se não houvesse forma física. Seus olhos, tão vermelhos como sangue, enxergavam no fundo de minha alma enquanto o gélido sorriso zombava de mim. Rosno e avanço contra ela, mas esta se dissolve no exato momento em que minhas garras a atravessariam e toma forma novamente à minha frente. Fecho a cara para ela.

“Você o matou, não eu!” Ela gargalha.

“É claro, mas quem acreditaria? Diriam que está delirando. Além do mais…” ela se teleporta e em um piscar de olhos, reaparece ao meu lado, agarrando minha cabeça em um movimento brusco e puxando pra baixo. “Eu sou você.”

Meu corpo trava e ela sorri.

“Você não pode fugir de mim. Você não pode me matar. Você não pode me esquecer.” Sussurra, saboreando cada palavra. “E também, você não pode mudar o que aconteceu. Muito menos, esquecer que foi tudo, sua, culpa. ”

Ao dizer a última palavra, ela se dissolve em um nevoeiro denso e escuro e com sua risada gélida ecoando em minha mente, invade meu corpo pelo nariz e boca, causando uma intensa queimação no interior por onde passava e me impedindo de respirar. Engasgo, meus pulmões queimam, mas quando finalmente acaba e o ar volta a meus pulmões, só conseguia pensar nele, e na forma como aconteceu.

Lembro-me da caixa, de como eu deixei o desespero tomar conta de mim. Sentia-me fraca, imponente. As paredes pareciam diminuir cada vez mais, me espremendo, sugando cada molécula de oxigênio de meu corpo e depois, o chão desaparece abaixo de mim. Estou caindo em algo denso, escuro. Grito. Sinto-me sufocada e em pânico, pois não via o chão abaixo de mim e a ideia do impacto me assustava, até que...parou. Sem impacto. Apenas sentia que agora, havia um chão abaixo de meu corpo.

Demora até que consiga juntar coragem suficientes para abrir os olhos, e quando os faço, o fascínio foi impossível de esconder.

Me encontrava em uma vasta sala, sem nenhum móvel e dividida ao meio pelo contraste chocante de preto no branco. Me levanto devagar, temendo que o chão sob meus pés se dissolvesse novamente. Acima de mim, o teto em formato de cúpula era feito completamente em espelhos, o que me permitia ter uma visão melhor da sala. O lado em que eu estava, o lado negro, parecia diminuir, bem lentamente, sendo invadido pelo lado negro e “liderando” esta invasão, estava o que parecia ser uma versão sombria de mim. Tudo em seu corpo era negro, desde os fios de cabelo à pele e roupas que trajava. Os olhos vermelhos brilhavam enquanto avançava devagar até mim, com seu corpo se dissolvendo e reformando como fumaça que buscava uma forma física. Ela sorri para mim. Um sorriso desafiador, de deboche.

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Uma criança.” Ela sussurra. “Uma criança tão fraca e vulnerável, mas ao mesmo tempo tão forte e impenetrável. Uma raridade.”

Fecho a cara para ela.

“Que lugar é esse?” Digo firme. Ela para a meio metro de mim, mas suas sombras ainda avançavam pelos cantos, cercando a parte branca em que eu estava bem lentamente, como um predador que analisava cuidadosamente sua presa antes de atacar. Ela sorri.

“Este, Maya, é o canto mais profundo de sua mente, onde até o que você pensava não existir sobre você é revelado.” Diz sem rodeios. Franzo o cenho e me remexo, inquieta.

A parte de este ser o canto mais profundo de minha mente era até compreensível, mas aquela mulher.... Aquela mulher me passava uma aura estranha, pesada, como se estivesse carregada de ódio, sede de sangue, desejo de vingança.

“Como sabe meu nome?” Ela dá mais um passo e fica à um palmo de distância de mim.

“Por que não pergunta logo o que você realmente quer saber? Não é a sua cara enrolar assim.” Sussurra com a voz doce, firme e notavelmente carregada de veneno. Seu bafo cadavérico fez meu nariz arder. Engulo em seco e olho no fundo de seus olhos vermelho-sangue.

“Quem é você?” Ela abre um sorriso, revelando dentes incrivelmente brancos. Um arrepio percorre meu corpo e soube, que não gostaria nem um pouco da resposta.

“Eu sou Alhia. Eu sou você, Maya.” Afirma. Meu estômago despenca.

“Não, você não sou eu.” Ela ergue uma sobrancelha, ainda sorrindo, mas sem mostrar os dentes. “Você emana escuridão, eu não sou assim. Quem é você, de verdade?” Paro e penso um pouco. “Não. O QUÊ é você?

“Eu, sou tudo o que um dia você já imaginou, sentiu e cogitou.” Enquanto falava, suas sombras se aproximavam mais rapidamente de mim. Tento me mexer, mas tiras das sombras saltam das laterais e envolvem meus membros, forçando-me a ficar imóvel. Como eu fui subjugada tão facilmente em minha própria cabeça? Acho que não era mais a minha, e sim a cabeça dela. Ela continua. “Eu sou todo o ódio que você juntou de sua mãe pelo que ela fez, todo o desejo que você tem de vê-la morta para que não te perturbe mais, e toda a ambição que um dia você reuniu para fazer esse desejo se tornar realidade. Eu sou toda a raiva que você tem de seu pai, por tê-la ignorado por tantos anos sem fazer nada, por permitir que sua verdadeira família fosse assassinada a sangue frio, e toda a vontade que você tem de despejar cada sentimento seu nele e de culpa-lo já que seria diferente se ele tivesse agido.” Ela se aproxima. “Eu sou o monstro que você vem alimentando com esses pensamentos a sua vida inteira, Maya. Me transformando na única coisa que você realmente quer, mas não tem coragem de admitir porquê parece desumano demais. Eu sou seu ódio. Seu desejo de matar. Sua sede de vingança. Sua verdadeira face. Eu sou você.”

Suas sombras já enlaçavam meus pés, subindo lentamente por minha perna.

“Pare! Vá embora!” Peço. Ela ignora e gargalha, as sombras agora envolvendo meus braços, causando uma queimação. Ela segura meu queixo de forma brusca, suas sombras alcançando meu pescoço e envolvendo meu rosto como uma máscara.

Eu nunca irei embora. Eu estou faminta, Maya. Faminta pela sua vingança. Faminta pelo sangue que você anseia derramar. Faminta pela realização das suas promessas de ódio, e já que você não parece disposta a cumpri-las, eu mesma as farei.” Ela acena e, em minha frente, uma pequena névoa se forma, como uma nuvem.

Nela, uma imagem como a de um filme se reproduzia e a cena me fez arquear. Mostrava um lugar ao lado de um rio, com marcas de batalhas recentes. Havia cinco semideuses desmaiados em uma margem onde um ser estava de pé, encarando uma figura pálida abaixo de si que brandia uma espada aparentemente inútil comparada ao tamanho deste ser. Ele, não devia ter menos que 1,90 de altura, com uma pelagem castanha espessa, patas e rosto como os de um lobo, com a aparência que os lobisomens eram retratados em obras de ficção. Seus olhos, um azul e um vermelho, brilhavam em um instinto assassino e sua mão direito fumegava.

“Aquilo...sou eu?” Gaguejo. Alhia estufa o peito em sinal de orgulho.

Aquilo, somos nós.” Sorri triunfante. Engulo em seco quando reconheço que o semideus de que me aproximava era Pietro.

“Não, ele não fez nada contra mim. Não o machuque! ” Peço, me debatendo, tentando me livrar de suas sombras.

Um lobo não diferencia pessoas boas de más quando está com fome, Maya. São todos carne, esperando para serem dilacerados.” Diz calmamente, saboreando cada palavra, como se provasse algo doce depois de um mar de amargura.

“NÃO! Deixe-o!” Me debato mais. “Me solte daqui sua desgraçada! Devolva meu corpo.”

Ele não é mais seu. E cale a boca, não gosto que me interrompam enquanto me alimento.” Diz impaciente e com um aceno, faz suas sombras subirem e envolverem minha boca, como uma mordaça.

Tento gritar, implorar que o deixasse viver, mas ela nem se mexia. Mantinha os olhos cor de sangue fixos num eu monstruosos que agora punha de quatro enquanto Pietro, preparava sua lâmina. Ela flexionou as pernas e vi que Alhia salivava.

Sim, vamos logo com isso.” E avança de uma vez. Não aguentei olhar, o rosto já sendo tomado por lágrimas. Olho para cima, os espelhos mostrando a sala redonda na mais completa escuridão, exceto por um pontinho branco em um lado, que era eu. Ainda era possível ver a tela então fecho os olhos, o mais forte que consegui, e ainda tento sair, mesmo o esforço não adiantando de nada. Ouço o som de pele sendo perfurada e um nó se forma em minha garganta. Uma mão firme segura meu queixo e o vira bruscamente para frente.

Abra os olhos, Maya.” Ordena, apertando meu rosto. Aperto ainda mais os olhos, me negando a abrir e Alhia se enfurece. Ouço um com como o de um chicote e suas sombras apertam minha garganta, como uma coleira. O ar escapa de meus pulmões e ela chega mais perto. “Abra os olhos.” Ordena mais uma vez. “Não queremos perder nada disso.”

Sentia minha visão escurecendo e já abria lentamente os olhos, quando uma segunda voz me chamou.

“Então você não conseguiu se controlar, não é, princesa?” Uma voz masculina fala. Alhia solta meu rosto e minha expressão se afrouxa, mas ainda não abro os olhos. Kye? Sinto as sombras de Alhia regredirem, quando uma carícia quente formiga em minha bochecha.

“Isso...é impossível!” Exclama Alhia. “EU ESTOU NO COMANDO!” Grita indignada.

Suas sombras vão sumindo lentamente, me libertando. Inspiro profundamente e caio de joelhos, o ar entrando em grandes lufadas em meus pulmões. Minha garganta doía enquanto respirava e temia o que podia encontrar caso abrisse os olhos, mas não resisto.

Havia um círculo à minha volta, branco, e que parecia empurrar toda a negridão para longe de mim. Alhia me encarava com puro ódio, seu corpo mal permanecendo formado.

“Isso não vai durar, Maya. Você não pode viver sem mim, ainda que não queira acreditar, é a mais pura verdade.” Declama de forma quase profética. Engulo o medo inicial tomando coragem.

“Nunca precisei de você, não vai ser agora que irei precisar.” Alhia sorri.

Errado. Eu estive sempre lá, Maya. Mas você era cega demais para perceber.” Já ia contrariar, mas a voz dele fala novamente.

"Volte para mim. Eu estou aqui. Sempre estive aqui." Sinto um bolo se formar em minha garganta. Uma força começa a me puxar para cima, mas tento me segurar um pouco mais no chão.

“O que você fez?” Alhia recua na escuridão, fundindo seu corpo às sombras.

“A pergunta certa é.…o que você fez? ” gargalha e tudo o que resta, é o ecoar de suas gargalhadas no fundo da minha mente.
À partir desse ponto, não sei se estava preparada emocionalmente para relatar. Sei que chorei como uma criança nos braços de um garoto que há pouco conhecia. Sei que corri pois não queria que me atormentassem de perguntas, e sei que aonde quer que eu fosse, a voz de Alhia nunca mais me deixaria em paz. Sempre sussurrando aquela palavra. Assassina.

Volto a forma humana e me sento próxima a uma árvore, arfando. Não era bom ficar muito na forma de animal, senão você acaba perdendo parte de sua humanidade, mas todos os meus instintos pediam por aquilo. Pediam pela sensação de correr mais rápido que qualquer um, ser mais forte que qualquer um, e deixar a humanidade de lado...só mais um pouco. O animal não sentia tanta dor e eu queria aquilo. Queria que essa sensação de que um órgão importante havia sido arrancado de mim bruscamente e o resto de meu corpo tentasse a todo custo sobreviver sem ele, acabasse. Era agonizante.

Olho para cima, o tempo se fechando, preparando-se para um temporal. Olho em volta, buscando qualquer coisa que pudesse me distrair, mas o mundo parecia tão sem cor…

Havia um pedaço de madeira caído, um pouco queimado. O alcanço com a mão, passando o dedo lentamente pela textura da madeira, sentindo a umidade desta. Não era muito grande, pouco maior que um controle. Era pesado, mas parecia ceder à uma lâmina bem afiada.

Ven…” Inicio o chamado para invocar meu colar, mas antes mesmo de terminar, um pequeno canivete aparece em minha mão. De primeira, estranho, pois sempre precisei falar a palavra inteira para que as armas aparecessem e assim, de uma hora para outra, era como se precisasse apenas de um pensamento para chama-los. Viro a lâmina um lado para o outro. Não parecia diferente, nem mais especial, mudara apenas a forma como ela apareceu para mim.

“Você evoluiu.” Sorri Alhia de forma ambiciosa. “Nós evoluímos.”

Aperto o cabo da lâmina tão forte que foi quase como se minha pele se fundisse à arma. Se soubesse que o preço seria tão alto…

“Não pense assim. Você não escolheu, você foi forçada.”

“Pare de ler minha mente! Além disso, foi culpa sua ele ter morrido.” Contrario. Ela suspira.

“Você está cega.”

“Cale a boca!” Digo impaciente. Ela se cala.

Não precisei pensar muito no que fazer a partir dali. Minhas mãos dançavam o canivete pela madeira, dando-lhe forma nos mais mínimos detalhes, cada pedaço de meu corpo ardendo em saudade. Quando terminei, segurava uma miniatura de grifo, talvez o trabalho mais real que eu fiz em toda a minha vida.

Penso na palavra. “Reditum” e o canivete se dissolve, tomando a forma do colar em meu pescoço. Bom, muito bom. Era uma vantagem para mim, mas prometi a mim mesma que manteria aquilo em segredo por enquanto. Com aquela profecia, quanto menos pessoas soubessem sobre minha “evolução”, mais vantagem eu teria. Meu olhar recai sobre a mão que segurava a pequena estatueta. Conseguia vê-la atravessando seu coração. O sorriso dele, antes de partir...lágrimas rolam.

“Assassina.” Alhia repete outra vez em minha mente.

“NÃO! ” Grito esmurrando uma árvore. Minha mão dói, mas eu não ligava. Começo a socar repetidamente qualquer cousa que encontrasse pela frente. As árvores. As pedras. O chão. Qualquer coisa que fosse sólida e estivesse em minha frente, era golpeado, sem deixar que a dor me parasse.

Depois de vários minutos, em um momento, minha mão começou a literalmente entrar em combustão e eu me desesperei, sacudindo-a para cima e para baixo, até que apagasse. Caio sentada. A mão estava sangrando muito, com carne exposta, dedos virados em ângulos estranhos obviamente quebrados e uma culpa que não passava por nada. Praguejo, pois nenhuma de minhas feridas estava se regenerando. Permaneciam abertas, sangrando, espalhando a dor e a que mais doía, era a do coração. Fecho os olhos, tentando controlar a respiração e me assusto novamente quando o chão ao meu redor pareceu congelar. Me levanto de um pulo, praguejando por não conseguir controlar aquilo e recosto na árvore, respirando pesadamente e encarando a densa floresta à minha frente.

Senti vontade de sair do acampamento. Ir embora. Seria melhor para todos. Três morreram por minha causa. Não queria que esse número aumentasse. Um momento passa por minha cabeça, uma ideia. Sim...isso acabaria com tudo de uma vez por todas. Sem mais mortes, sem mais problemas.

“Eu não vou permitir.” Alhia sussurra em minha mente. Me transformo em loba, mancando devido à pata quebrada. Pego a estátua com a boca.

Eu não preciso que permita.” Respondo em pensamento e manco em direção à praia, para desfrutar um pouco do som das ondas e do cheiro de maresia.

(···)

Começou a chover quando terminei de juntar a madeira para a fogueira. Agradeci pela areia estar quente, pois junto ao pelo, sentia como se estivesse sob as cobertas de uma cama quente. Olho para o amontoado de tocos e me concentro. Minha mão havia pegado fogo mais cedo, se eu me concentrasse… os tocos se transformam em brasa antes mesmo de completar o pensamento. Bom, mas só brasas não seriam suficientes em uma luta.

“Posso tornar isso fácil para você.” Diz Alhia. Rosno.

“Não preciso de sua ajuda.”

Você quer, eu sei que quer. Eu sei tudo sobre você.”

Me deixe em paz. Não quero sua ajuda.”

“Cedo ou tarde você vai precisar de mim.”

Veremos.” A esse ponto, eu já me sentia uma louca, conversando com uma voz na minha cabeça, mas não fiquei sozinha por muito tempo, já que cerva de quinze minutos depois, Pietro me encontrou sob o cais.

“Maya...você está bem?” Ele pergunta. Quase me assusto. Nunca me acostumaria com a forma que ele se aproximava sem que eu percebesse. Queria responder, mas temia que desabasse outra vez se começasse a falar. Ele falou comigo, perguntou porque eu não me curava, porque não ia à enfermaria , enfaixou minha pata e tudo o que eu pensava, era como ele conseguia me fazer sentir tão à vontade. Ele tinha um jeito de conversar, que fazia sentir como se ele fosse a melhor pessoa para desabafar, e que ouviria cada coisa que eu tinha para dizer e me daria os melhores conselhos. Era bom estar perto dele, mas agora, não sei se estou preparada para me aproximar de mais ninguém.

Ele se senta e pega a pequena estatua de grifo nas mãos, analisando-a cuidadosamente e eu, quase como se fosse atraída, me aproximo e deito a cabeça em seu colo. Ele se assusta, mas depois de alguns segundos, toma coragem e começa a acariciar meu pelo. Ele tinha um toque delicado, cuidadoso e senti meu corpo relaxar à medida que ele o acariciava. Ele acaba ticando uma ferida, mas ignoro a dor. Ele volta a acariciar minha cabeça e fala comigo mais um pouco, enquanto esperávamos a chuva passar. Vejo a estátua caída e a pego com a boca, pondo-a em sua mão e fitando seus olhos azuis. Ele sorri e acaricia minha face.

“Não se preocupe. Vamos honrar sua memória.” Diz com sinceridade. Me permito dar um mínimo sorriso. Obrigada Pit. Agradeço em pensamento, mesmo sabendo que ele não me ouviria. Deito a cabeça em seu colo novamente e um trovão ribomba. Resmungo em seu colo.

“É, tem razão. Seria mais fácil se essa coisa toda não estivesse acontecendo.” Concorda, ajeitando o corpo em uma posição confortável. Estava certo, mas não queria falar nada. Só queria ficar ali, vendo as ondas se quebrando enquanto não conseguia impedir que as boas lembranças do ruivo me fizessem chorar.

Depois de algum, a chuva pareceu diminuir. Já era de tarde, a fogueira se transformara em uma pilha de cinzas e o sol se encaminhava para o horizonte. Havia tentado dormir, sem sucesso já que as únicas coisas que via quando fechava os olhos, era o seu corpo se desfazendo em poeira. Fungo e olho para cima. Pietro havia dormido sentado e com uma mão sob meu pescoço. Tiro a cabeça de seu colo e me levanto, sacudindo a areia do corpo. Minha pata não havia melhorado, ainda doía quando andava, mas feridas pelo corpo, podia sentir que boa parte delas havia cicatrizado.

Focinho Pietro no braço, para que acordasse, mas ele só resmunga alguma coisa que não entendi e vira a cabeça para o outro lado. Focinho ele de novo, dessa vez no rosto, e ele abre os olhos, sonolento.

“Ahn? O que foi, morena?” Morena...é, até que não e ruim. Aponto para fora e ele acompanha meu olhar. “Sim, é uma linda praia.” Resmunga e volta a dormir.

Reviro os olhos.

“Homens.” Digo. Olho para fora e dou o primeiro passo, a pata machucada quase cedendo sob o peso, mas respiro fundo e continuo. Passo direto pela praia. Subo as dunas e dou uma olhada na direção do acampamento. Centenas de semideuses levando suas vidas, sem se dar conta do que acontecia bem ali, há poucos metros de distância. Olho à frente. Nunca pensei que aquela floresta poderia ser tão assustadora como é agora, mas não ligo mais. Então, lentamente, caminho entre as árvores, com toda a calma que infelizmente não tinha.

Caminho, até sentir que a barreira estava próxima e só paro, quando esta estava praticamente visível por meus olhos. Quase invisível, mas a magia que emanava era tão forte que era quase sólida. Dou mais um passo e paro, pois, sentia que quem estava me seguindo desde que entrei na floresta, tinha algo a me dizer.

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“Quando você vai voltar?” Ela pergunta. Me viro, para olha-la nos olhos. Rachel parecia preocupada e triste. Mantinha seu olhar fixo em mim o máximo que pôde, mas não aguentou e o desviou para os pés. “Quer dizer, você vai voltar, não vai?”

Praticamente suplica.

“Conte a ela.” Sussurra Alhia, mas a ignoro. Ando até Rachel e me sento em sua frente, abaixando a cabeça e a empurrando levemente com o focinho. Ela levanta a cabeça e nossos olhares se cruzam. Sorrio.

“Não vai conseguir se livrar de mim tão fácil, ruivinha.” Digo com a voz rouca. Ela sorri e me abraça.

“Da última vez que você saiu de casa, descobri da pior maneira que você escondia algo de mim.” Ela me olha nos olhos. “Promete que não vai acontecer de novo?”

Nos encaramos por alguns segundos e como não respondo, ela suspira e acaricia meu focinho.

“Vou estar te esperando.” Ao final de sua frase, me levanto, dou meia volta e atravesso a barreira.

Era estranho, depois de quase uma semana dentro do acampamento, pisar ali fora novamente. Meu primeiro sentimento, foi o de vulnerabilidade, mas este logo se esvaiu, quando dei o segundo passo. E depois outro, e outro, e outro...até que não caminhava mais pela colina meio sangue, mas pela estrada que tantas vezes antes havia percorrido. Por vários anos, escondida da fúria de deuses que nem se importaram quando estive logo abaixo de seus narizes. Talvez todo aquele tempo tivesse sido em vão. Eu poderia ter voltado, poderia ter pedido perdão, mas fugi...era quase automático. Era só a situação apertar que era a primeira coisa que eu fazia. Ouço um barulho de sucção e nico aparece em minha frente com a expressão séria. Paro de andar.

“Rachel mandou você?” Ele nega.

“Aonde vai?” Pergunta, quase como uma acusação.

“Não quero conversar Nico, me deixe passar.” Peço tentando passar por ele, mas ele entra em minha frente.

“Maya, aonde você vai?” Parecia mais sério, mas com uma ponta de preocupação.

“Andar, Nico! Andar! Correr! Qualquer coisa! Não posso?”

“Pode fazer isso no acampamento.”

“Não quando todos me olham atravessado! Prefiro ficar sozinha.” Digo passando por cima dele e continuando a caminhar.

“Kye gostaria que ficasse sozinha?” Diz atrás de mim. Paro quase instantaneamente e ele continua. “Ele gostaria de ver você se isolando assim?”

Viro e encaro o filho de Hades nos olhos. Sua expressão suaviza um pouco quando suspira. “Posso não ter conhecido ele tão bem quanto você, mas sei que ele não gostava que você ficasse sozinha.”

“Você não sabe de nada.” Digo de maneira amarga. Ele dá de ombros.

“Você também não.” Ele tira do bolso da jaqueta de aviador um pequeno vidro com uma água tão límpida que me pareceu vazia de primeira. “Ele me pediu isso ontem a noite, antes de te deixar no chalé com Pietro. Não tive a chance de mostrar a ele, mas ele queria para você.”

Olho para o vidro.

“O que é?”

“Vai saber, quando voltar para o acampamento de onde quer que esteja indo.” Ele coloca o vidro novamente no bolso. “Por enquanto, só precisa saber que é uma coisa muito importante para os próximos seis dias e, já que não quer me dizer aonde vai, manterei isso comigo, como garantia de que não faça a última coisa que queremos que faça só porquê parece mais fácil.”

“Não vou me entregar aos lobisomens se é o que está sugerindo.” Rosno para ele. Nico sorri de forma sombria.

“Nós dois sabemos que não foi a isso que me referi.” Ele dá meia volta, alonga algumas partes do corpo e antes de voltar para o acampamento, olha para trás.

“Só lembre que, por mais que se sinta sozinha, tem pessoas aqui que realmente se importam com você. Não deixe que o desespero te consuma.” E caminha até uma sombra, desaparecendo com um som de sucção.

Encaro o nada por alguns segundos antes de voltar a caminhar pela estrada. Como ele podia saber o que eu pensava? Não tinha cabeça agora para pensar nisso então, continuo andando, deixando que a água da chuva lavasse minha tristeza.

Chego em uma bifurcação na estrada. Parte de mim, queria correr até nova York, para a casa de Jonathan. Me aconchegar em seu colo e chorar, aliviar tudo. O coração doía pela saudade, mas no fundo, sabia que não era uma boa ideia, então sigo pelo outro, em direção à uma pequena construção de madeira na beira da estrada, de onde vinha um cheiro forte de bebida e cigarro.

Vou até o fundo e sacudo o corpo para me livrar de parte da agua da chuva e me transformo em humana novamente. Uma humana encharcada, magra, ferida e disposta a recair só uma vez. Minha mão ainda doía, mas parte da pele já havia se regenerado, apesar de ainda sentir os ossos quebrados, então pego a jaqueta de couro e faço uma tipoia improvisada. Olho para trás, conseguia ver uma fumaça subindo na noite e soube que os corpos dos semideuses estavam sendo cremados. Sinto-me mal, por não poder dar um funeral a Kye e o coração aperta. Dou a volta e entro no bar mal iluminado, apenas para encontra-lo quase vazio com três ou quatro bêbados no balcão. Entro de cabeça baixa e vou até o fundo, até a mesa mais afastada da porta. Me sento e pouco tempo depois, um velho baixinho e barrigudo vem até mim.

“O que vai querer?” Pergunta de forma rabugenta estendendo uma pasta que supus ser o cardápio.

“A cerveja mais forte que você tiver. ” Digo com a voz rouca e um nó na garganta. Ele ergue uma sobrancelha.

“Me mostre sua identidade que eu…” pego um guardanapo da mesa e manipulo a névoa, fazendo parecer uma identidade falsa. O velho olha por alguns segundos e vai para trás do balcão, voltando logo em seguida com um copo cheio de um liquido amarelado com um cheiro amargo forte, uma garrafa com mais daquilo e indo novamente para detrás do balcão. Pego o copo. Nunca havia bebido nada alcoólico antes. Jonathan bebia e costumava dizer que era a melhor coisa a se fazer quando se quer esquecer de algo. Não sei qual seria a reação dele ao saber que eu estava fazendo aquilo, mas eu não tinha muita coisa a perder mesmo. Viro o copo de uma vez e o liquido desce amargo pela minha garganta, borbulhando por todo o caminho.

“Eca. Isso tem gosto de mijo.” Tinha que concordar com Alhia. Era horrível.

Sinto uma leve tontura provocada pelo álcool e um enjoo, mas seguro o vomito. Encho o copo e o viro de novo. Ia demorar para me acostumar com aquilo, mas não pareceu tão ruim da segunda vez. Era até suportável, mas ainda não entendia como tinha gente que gostava tanto daquilo. Depois do terceiro copo, senti os primeiros sintomas da embriaguez, como o mundo girando e algumas coisas como a garrafa parecer dar cambalhotas na minha frente. Não tive coragem de beber mais. Pelo que presenciara de Jonathan nos nossos primeiros dias de convívio, suponha que logo começaria a chorar, então pego a garrava e começo a raspar o rótulo com a unha, pensando. Lobisomens, bruxas, profecias...minha vida mais parecia um filme de Harry Potter. Não estranharia se um cara sem nariz e sobrancelhas aparecesse bem ali no bar e começasse a lançar Avada Kedavras em todo mundo. Algum tempo depois, a porta do bar se abre. Chovia ainda, então não consegui sentir seu cheiro muito bem, mas senti quando ele se aproximou, passando por todo o bar e vindo até minha mesa. Ele se senta à minha frente, põe os braços sob a mesa e diz:

“Então, finalmente nos conhecemos.”