Vez ou outra retorno àquele ano de 1989, especialmente quando as estradas fantasmas da minha vida tomam forma e vêm me assombrar. Então faço uma volta estúpida dentro da minha própria cabeça e paro na figura de Alícia que me lança todas as faltas em farpas no peito... Às vezes assumo todas elas, talvez como agora, só para mergulhar em mim e viver aqueles momentos tão absurdos e ternos (e por isso absurdos) que não faziam o menor sentido para quem eu era, um adolescente de 18 anos, prestes a terminar o Ensino Médio, que talvez vivesse em Avilan como os personagens da novela Que Rei sou Eu, ou pior, que não vivesse nem ali... Não me importava a Alemanha cortada de ponta a ponta pelo muro de Berlim, tampouco a situação política do Brasil. Minhas prioridades eram a de um adolescente qualquer: namorar, escolher um curso que não tivesse a ver com que meus pais queriam, sair daquela cidadezinha onde passei toda minha vida para viver na cidade grande, ser bem-sucedido e essas coisas...

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Estudava numa escola grande, a única escola pública do local, com praticamente as mesmas pessoas por toda minha vida. Era o mais perto do que se podia considerar um garoto popular, ainda que não nos preocupássemos com isso. Mas sempre apareciam na minha carteira bilhetes de admiradoras secretas, encontros furtivos em pontos cegos da escola, invejas e rivalidades com outros garotos das minhas séries. Minha mãe tinha acertado ao escolher meu nome: Adônis.

No entanto, por alguma razão que desconheço (suspeito, porém nunca saberei, de fato), e é aí que começa a história toda, fui remanejado de sala. Para o meu ímpeto adolescente, foi a mesma sensação de ser transferido de uma cidade a outra e estar cercado de caras desconhecidas e assustadoras. E o que mais me desestabilizava era a sensação de não pertencer àquele lugar de modo algum. Isso parecia me tirar todas as forças e a vontade de estudar — a partir disso é possível imaginar a minha atitude dentro de sala...

Não conheci Alícia propriamente dizendo. Ela me conheceu antes. No primeiro dia, na hora da chamada, quando a professora disse meu nome, ela, que estava sentada na minha frente, virou as costas e me disse:

— Nunca tinha estudado com uma figura mitológica.

Obviamente, eu não tinha entendido. Antes dessa declaração, para mim, eu só tinha um nome muito estranho. Franzi a sobrancelha em desdém e notei que ela entendeu perfeitamente meu gesto. Não nos falamos mais. Hoje percebo que ela leu tudo a meu respeito ali mesmo...

Só fui prestar atenção de fato em Alícia quando, pouco tempo depois, passei a perceber que ela estava sempre junto das meninas mais bonitas do colégio. E ela não era para nada bonita, ainda que não fosse feia também... Era apenas um meio-termo, uma garota comum, nem alta, nem baixa, nem magra nem gorda... o que sobressaltava era o fato de que se vestia muito mal, de forma muito masculina. Bem verdade, ela parecia mesmo um menino... Talvez isso agradasse as garotas com quem ela andava na escola quando aparecia nos intervalos. Em uma delas eu estava especialmente interessado: na Érica. Era tudo o que eu podia querer nessa época. Não sei mais descrevê-la... Só tenho essa sensação de que era uma menina muito linda e que me fazia pensar nela dos jeitos mais inapropriados.

Foi um dia em que, seguindo-a clandestinamente, não me lembro por que, escondi-me para observá-la melhor e escutei uma voz atrás de mim perguntando o que estava fazendo. Aquilo me surpreendeu de tal maneira que virei-me de mal jeito e esbarrei na dona voz, Alícia. Ela segurava uns papeis que voaram todos na colisão. Saí desajeitado correndo atrás deles, enquanto ela, parada e de braços cruzados, olhava-me saracoteando no pátio na tentativa de me redimir do meu “erro”, até que disse:

— Quando terminar de pegar os papéis, entrega para a professora Líbia, na sala dos professores, ok?

E saiu.

Fiquei bastante irritado por ela não ter me ajudado a juntar os papéis caídos, como qualquer pessoa faria. Talvez ela tivesse perdido uma grande cena, não era assim nos romances? Ou talvez eu teria perdido uma grande cena?

Quando terminei e olhei os papeis que tinha em mãos, vi que se tratavam das redações que havíamos escrito naquele mesmo dia, algumas horas antes. O tema era sobre o que esperar do futuro.

Dedilhei as redações até encontrar a dela.