A Herdeira de Zaatros

Capítulo 25


Terceiro dia do terceiro mês, ano 7302.

Cena I – A Batalha Final.

Meia noite. Reino Anão – Ruthure.

As Terras Vulcânicas mais pareciam um cenário de tundra. A nevasca cobrira todo o reino, as runas do gelo e do vento estavam, agora, inalcançáveis sob metros de neve. Os gigantes estavam nas melhores condições enquanto os anões eram punidos pelo frio.

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Aço Voador organizava seus aliados enquanto novos soldados ramavenos chegavam por teletransporte. Embora seu olhar mostrasse o brilho vitória, ela temia fracassar. Estavam alocados no litoral noroeste de Ruthure, divisa com Ramavel, a falta de ruthuranos por ali facilitou a tomada do território, embora o alvo fosse a capital.

Os Guardiões das Chamas estavam prontos. O plano era proteger a fortaleza, se os gigantes os queriam, que viessem atrás! Cícero anestesiara Urak por hora, fê-lo esquecer completamente da existência de Kira para que pudesse lutar bem. Ainda tinham dois Infernos Congelados e os usariam apenas contra a imperatriz.

—A tempestade está pronta? -Perguntou a Feiticeira Caída.

—Sim, imperatriz. -Disseram os mágicos que compunham seu exército.

—Carregar e disparar, agora! -Ordenou.

—Precisamos sair daqui! -Disse Hilda entrando apressada na cozinha da fortaleza. -Sinto uma perturbação pairando no ar.

—Magia. -Disseram as vozes duplicadas. -A guerra está começando…

—Todos para fora! -Bradou Urak.

Na correria, cada qual apanhou suas armas e debandou. Desta vez, não só o clã, mas também boa parte do exército anão estava na fortaleza e, ao saírem, viram no céu uma nuvem densa e escura espiralando exatamente acima do edifício. O ar pesado rodopiava em alta velocidade, desfolhando as árvores semimortas por causa da geada e agitando a neve que continuava a cair. Não demorou muito e logo um poderoso raio turquesa foi descarregado pela nuvem contra a fortaleza; obviamente não era um raio comum, ele atingiu o prédio com extrema força, explodindo-a de imediato e mantendo-se ativo até que só restassem pedras chamuscadas no lugar.

De um grande portal, surgido ao longe, os gigantes começaram a emergir. Aço Voador surgiu por último, acima de seu exército, toda prateada em sua couraça, voando, de braços abertos e olhos coloridos de azul-celeste pelo mana.

—ARQUEIROS, alinhar e disparar juntos agora! -Mandou Urak.

Os anões formaram quatro linhas com dez cada e zuniram suas pequenas setas nos gigantes. O ataque foi mal planejado, portanto ineficaz. O vento desviou as flechas e os Lumes Antigos passaram por inexperientes perante os Fiéis. Os gigantes zombaram enquanto se aproximavam marchando, eles mesmos preparando suas flechas desta vez; flechas que mais pareciam lanças se comparadas às dos anões.

—Deixe os arqueiros comigo, Urak! -Ralhou Darius.

—Eu sou o general e vocês, meus comandados. Mais disciplina! -Rebateu.

—A arma mais leve que portou na vida foi uma marreta! Eu sou quem entende de arcos. -Cortou o elfo, pondo a coroa de louros mágica. -Arqueiros, ao meu comando! Manter forma de dez por quatro, preparar tiro, marchar para leste e aguardar novas ordens!

Darius conduziu todo o contingente de arqueiros para o um dos flancos do exército gigante. A tensão só aumentava e o despreparo dos Lumes Antigos aborrecia Urak.

—Miguel, penetre nas linhas inimigas e mate o máximo que puder furtivamente. -Mandou o general e assim o homem invisível fez. -Manu e Garras, protejam Hilda, mas não deixem de atacar. Cícero e Miragem, tentem confundir esses malditos para que matem uns aos outros. Bruxas Siamesas, ataquem e protejam ao mesmo tempo, eu usaria o fogo contra esses imundos. Lanceiros, atenção às chuvas de flechas, montem a parede de escudos e protejam os Guardiões das Chamas com suas vidas. Os demais venham comigo.

—E você, o que vai fazer? -Perguntou Cícero.

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—Purê de gigante! -Bradou e partiu em disparada, com a marreta em posição de ataque, rumo ao centro das tropas inimigas. -Avante, Lumes Antigos!

Os homens de Aço Voador eram mais numerosos e estavam mais bem preparados. Contavam com contingente mágico, coisa que os inimigos não possuíam. Contudo a grande arma, a própria feiticeira, era agora uma fração do que fora no passado. Por outro lado, os Guardiões das Chamas tinham a ajuda de alguns dos Seis Demônios e estavam mais fortes do que nunca, embora tivessem perdido alguns componentes importantes.

A Imperatriz de Ramavel não precisava dar ordens, cada qual sabia exatamente o que fazer: lanceiros à frente, com lanças e escudos tão grandes quanto eles próprios, bárbaros e espadachins detrás deles, mágicos atrás e arqueiros ao fundo.

Ao verem Urak correndo como um touro, os lanceiros montaram a parede, na verdade a muralha, de escudos. O kvarbrakoj saltou sobre todos e aterrissou bem no centro, golpeando vários arqueiros ao cair no meio da horda. Aço Voador não deixou barato, mergulhou de onde estava sobre o kvarbrakoj, com os punhos congelados, e o surrou como nunca antes alguém o havia surrado.

Em outro ponto do campo de batalha, Darius comandava brilhantemente os arqueiros. Estavam na lateral dos gigantes, em uma elevação do terreno, longe da parede de escudos e com tiro livre para qualquer direção. A estratégia consistia em disparar as setas de duas fileiras por vez e, enquanto preparavam o próximo tiro, as duas que sobravam atiravam suas flechas, valendo-se sempre da direção do vento para impulsionar o ataque. Deste modo, a chuva de flechas era contínua e muitos gigantes foram abatidos até que os mágicos que restavam pudessem improvisar um campo de força.

—Agora estamos de mãos atadas, galera. -Disse ele aos comandados. -Preparar tiros especiais! -Os tiros aos quais se referia eram flechas mágicas, dotadas de efeitos aleatórios, encomendadas por Rei Rujavo antes de desaparecer. -Esperem que a barreira caia e então continuem com a estratégia de antes.

Miguel corria invisível e sem problemas por baixo das pernas dos gigantes, perfurando-lhes em pontos vitais e os matando por hemorragia. Decidiu derrubar os lanceiros primeiro, visto que, com lanças de mais de três metros e escudos também enormes, seria difícil para os soldados anões comuns avançarem. E assim o ninja seguia, levando à ruína a muralha de escudos dos gigantes, enquanto eles arruinavam os anões, que insistiam em enfrentá-los, antes que estes pudessem chegar perto o suficiente para lhes causar danos consideráveis.

Cícero não podia dominar tantas mentes, então ficou acordado que cobriria Miragem para que ela as enlouquecesse. A anã decidiu iludir os arqueiros primeiro, fazendo-os ver anões por entres eles. Como resultado, flechas eram disparadas a queima-roupa contra os próprios aliados.

Após deixar Hilda em um lugar seguro, na sala secreta abaixo dos Arquivos Ruthuranos, Manu voltou à cena. Garras era uma hidra, estava mais madura e mais forte do que quando entrara para o clã, embora ainda possuísse só duas cabeças em sua forma de hidra. Ele chegou a pensar em pedir para um dos soldados decapitar Garras a fim de acelerar o crescimento das cabeças extras, mas, ainda que isso tornasse sua mascote mais forte, causaria dor a ela, então optou por se virar como podia.

Enquanto a cascavel-camaleão devorava inteiros os gigantes, Manu os desorientava com os mísseis de luz de seu anel.

Urak e Aço Voador se esmurravam como se a guerra fosse só entre os dois. Somavam ambos uma coleção de hematomas, cortes e dentes quebrados. O kvarbrakoj e a gigante combatiam de igual para igual, entretanto, graças a ajuda de Ódio, o general se tornava cada vez mais poderoso enquanto a imperatriz se cansava e gastava seu pouco mana inutilmente tentando derrotá-lo.

A balança pendeu para o lado do guardião quando, com um giro do martelo, esmagou três crânios gigantes. A cada agressão, Ódio creditava mais poder a ele. Sua pele começava a esquentar como se inflamada de febre, as veias saltavam nos braços musculosos e o metal da arma parecia mais pesado. Aço vacilou depois de um soco recebido, forte como um tiro de canhão, abrindo brecha para uma marretada que a arremessou para cima, inconsciente. Cícero a viu voando, toda em metal, e passou à Hilda o aviso que, de alguma forma, ela havia recuperado os poderes.

São armas mágicas, Harkuos zerou a magia dela. Confirme com Luzabell e Razatte, peça a elas que chequem resquícios de mana no corpo de Veneza.” Respondeu a cigana.

Ao mesmo tempo que a imperatriz era vencida, era vencida também a parede de escudos e a proteção dos mágicos. As Bruxas Siamesas inverteram a carga do campo de força, fazendo-o se precipitar em forma de chuva de energia sobre as linhas inimigas. Os fragmentos desceram tão rapidamente que faziam barulho ao cortar o ar rumo ao chão e às cabeças dos soldados ramavenos.

Urak seguiu pondo a baixo tudo e todos. A pele era fogo, os olhos também, e o ferro na marreta fulgurava incandescente. Darius e os arqueiros dispararam com cuidado as flechas mágicas para não atingirem nenhum aliado, deixaram de lado a tática da chuva de flechas para atirarem em alvos específicos. As setas matavam quase sempre, havia entre os efeitos gelo, eletricidade, fogo, veneno, impacto e muitos outros. Garras pisoteava os gigantes caídos e cuspia ácido sobre os que se recusavam a cair. Miguel deixara os campos inimigos e agora, junto ao irmão, disparava contra os ramavenos. As Bruxas Siamesas acabaram com os restantes, enrolando-os em vinhas espinhosas e constritoras.

Antes de tudo isso, o exército anão também havia caído. Restavam agora a nata dos dois lados: os Guardiões das Chamas lutando pelos Lumes Antigos e Aço Voador, sozinha, pelos Fiéis.

O clã se reagrupou próximo de onde Aço Voador havia caído: -Vamos matá-la? -Perguntou Manu.

—Esperemos que acorde. -Disse Urak. Sua aparência estava completamente transformada pelo favor de Ódio. -Não quero entrar para a história como covarde.

Alguns portais se abriram e deles vieram os funcionários da Salvaguarda Legítima para socorrer os feridos e catalogar os mortos. Nyra e Tizana ficaram horrorizadas ao ver o sangue iluminado pelo fogo que se alastrava no lugar. Tamires procurava pelo marido e pelo irmão, mas não os encontrou.

Aço Voador levantou lentamente, olhou tudo a sua volta e parou o olhar sobre o general.

—Renda-se ou morra. -Disse ele.

A imperatriz relaxou o semblante, desfez a armadura de aço e olhou triste para as mãos enquanto se afastava dos inimigos, andando lentamente para trás. Os Guardiões baixaram a guarda e esperaram… então Cícero, através do poder de Traição, viu que Aço Voador mentia:

—NÃO! -Gritou ele, tentando erguer um campo de força.

A Feiticeira Caída sorriu diabolicamente e, com uma velocidade sobrecomum, evocou a lança de seu Anel Bélico e arremessou-a no coração de Darius. A proteção do Feiticeiro Âmbar não foi levantada a tempo, ainda estava fina quando a arma a transpassou, fincando-se no peito do elfo.

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Cícero e as Bruxas Siamesas avançaram sobre ela rosnando como animais. Miguel e Urak, que deixou o poder de Ódio se apagar, jogaram-se sobre Darius, tentando acalmá-lo. Manu desmontou Garras e correu enlouquecido na direção do amigo, passando no meio da luta sem se importar com os projéteis que, porventura, pudessem acertá-lo acidentalmente. Chegou aos pés de Darius sufocando no próprio choro enquanto o outro sufocava no próprio sangue.

Aço chamou de volta a lança que, ao ser removida, rasgou-lhe mais a carne e exponenciou o sangramento e a dor que o elfo sentia. Darius gritou e ameaçou que perderia a consciência, mas Miguel o chamava o tempo todo para que não adormecesse ou pior…

—Urak! -Gritou Miguel, nervoso. -A gente cuida dele, você precisa voltar à luta!

O kvarbrakoj voltou a acender, tal qual seu martelo e, furioso, trincou os dentes e bufou enquanto corria em busca da cabeça da Imperatriz de Ramavel.

—Manu, acalme-se. -Pediu Miguel. -Você está deixando ele nervoso! Imagino que você tenha algo a dizer, então diga logo porque, que a Fênix e o Dragão nos livrem, pode não haver outra oportunidade…

Darius, aturdido, ouvia a tudo sem prestar atenção a nada. Tremia e gemia de dor enquanto fazia força pra puxar ar para dentro dos pulmões. Miguel mantinha a cabeça dele alta sobre suas pernas para que não engasgasse com o sangue. Manu, tão transtornado quanto Darius, segurava as mãos do elfo enquanto chorava copiosamente; pensou outra vez no que Miguel havia dito, mas tudo era emaranhado em sua cabeça.

—Irmão, seja forte! -Encorajou Miguel, acariciando os cabelos do elfo. -Você só precisa aguentar mais um pouco. Eu sei que consegue porque é um Quendra (!) e nós viemos a esse mundo para suportar as piores dores e fazer piada com elas! É ou não é!?

O elfo ferido tentou rir, mas a dor o impediu.

—Tanto é assim que aquela desgraçada ali está lutando mesmo sabendo que vai morrer. -Disse, referindo-se a Aço Voador.

—Obrigado, Pequinês. -Disse Darius, baixinho.

—Shhh, não fale. Veneza Quendra está fazendo piada com a dor dela e você, o Quendra dos Quendra, tem muito mais piadas para fazer nessa vida, não é Manu?

O híbrido pareceu acordar de um transe e confirmou com a cabeça. Manu finalmente aceitou que não havia mais esperança para Darius. Miguel chorava ao tentar consolar o irmão e os três sabiam que o tempo se esgotava.

—Darius… -Chamou Manu com carinho, fazendo-o abrir novamente os olhos de jade. -Eu quero que saiba de uma coisa… -Disse ele, voltando a chorar e desviando o olhar para Miguel buscando apoio. -Eu gosto de você, bem mais do que um amigo ou um irmão gosta do outro. Eu não sei se alguma vez deixei transparecer, mas eu amo você.

O elfo arregalou os olhos, espantado, e teria tentado falar se Manu não o contivesse.

—Eu sei que gosta da arte dos bardos e fiz uma coisa para você faz um tempo… -O humano-duende baixou a cabeça, entristecido e Darius apertou suas mãos um pouco mais forte para encorajá-lo.

—Escrevi um poema, gostaria que ouvisse… -Manu pigarreou e começou a declamar aos soluços:

O Ninguém que amo não ama a mim

Não amo o Ninguém que ama a mim

A mim ninguém ama

Pois não amo ninguém

Ninguém me ama, já que nunca me disseram

Não amo ninguém, já que nunca admiti meu amor

O Ninguém ama ninguém,

ninguém ama o Ninguém

Não conheço o amor de ninguém

Assim como ninguém conhece o meu.

Sou amado por ninguém e ninguém me ama também

Sinto-me incompleto por não amar ninguém

Sinto-me incompleto por amar Ninguém escondido

Sinto-me ninguém por ser incompleto e não confessar o amor.

Darius estava emocionado. As lágrimas que agora corriam por suas bochechas não eram mais de dor. A poesia foi anestesia a todas as dores, fossem elas físicas, mentais ou espirituais.

O elfo fez um gesto para que Manu se aproximasse. O híbrido se abaixou, lentamente, para receber um abraço fraco de seu amor e um beijo leve.

Então o aperto fraco do abraço se tornou ainda mais fraco; o peito não se movia ao sabor da respiração, os olhos claros não tinham o mesmo brilho. A vida deixava Darius e levava Manu consigo.

Miguel pousou a cabeça do irmão sobre a terra e se sentou ao lado de Manu para consolá-lo. Os dois nunca se deram bem, porém a situação transcendia qualquer inimizade e é bem verdade que dor é dor, não importa quem a sente e menos ainda sua intensidade… se dói, é sempre muito.

Ali ficaram, lado a lado, sofrendo juntos e ignorando a batalha fervendo ao fundo. Miguel tinha os olhos inundados, Manu os tinha seco de tanto se derramar através deles. O ninja decidiu deixar para trás as desavenças, jogou o braço por cima do ombro do companheiro de clã e o apertou. Manu fez o mesmo e ali ficaram por um tempo até serem abordados por uma figura apressada:

—Darius! -Gritou Tamires. A clériga se ajoelhou ao lado do irmão e checou seus sinais vitais, em seguida evocou seu clericato.

—Ele ainda está vivo?! -Perguntou Miguel.

—Por um fio. Afastem-se!

Tamires pôs a mão sobre o rombo no peito do ladino e leu em voz alta as inscrições do clericato, escrito em uma língua antiga e morta. As páginas do livro, os olhos e a mãos da clériga luziam lilases. O peito de Darius absorvia a luz, a hemorragia estancava e a carne crescia preenchendo o espaço mutilado. Bem lentamente.

A cura espiritual surtia plenos efeitos, diferente da primeira vez em que algo similar acontecera a Darius. Antes, após o acidente com a faca aos doze anos, Tamires conseguira curá-lo com muito esforço e agora a cura se fazia praticamente sozinha. Era evidente que hoje em dia era uma clériga com plena formação, mas, ainda assim, a fé conta muito nesses tipos de procedimento. A fé do curandeiro e do curando. Darius continuava negando Harkuos?

Enquanto isso, a Imperatriz de Ramavel era derrotada. As Bruxas Siamesas confirmaram a teoria de Hilda: os poderes de Aço Voador eram sim sintéticos, advindos dos apetrechos que usava e do presente de uma fada.

Urak arrebentara o colar que gerava o aço para cobrir o busco com um arremesso certeiro de sua marreta, depois de errar os dois infernos Congelados. Os dois lutavam corpo a corpo, o kvarbrakoj queimava a gigante a cada toque fervente, despedaçava os braceletes e anéis mágicos e atirava Aço Voador de um lado para o outro como se fosse uma trouxa de farrapos.

—Tragam a guilhotina! -Mandou o general. Tinha Aço sob controle, caída inconsciente de bruços diante de si.

Com um gesto, as Bruxas Siamesas materializaram o instrumento de assassinato. Cícero o preparou enquanto Urak prendia a vítima.

—Suas últimas palavras? -Indagou ele, estapeando-a para que acordasse.

A Feiticeira Caída apenas se sacudiu gritando histérica. Rendida, decidiu sossegar e esperar a morte chegar.

—Gigantes são todos iguais: quando de pé, acima de nossas cabeças, falam grosso e firme… -Disse Urak, abaixado-se ao lado da imperatriz. -Mas miam baixinho depois que lhes passam a rasteira!

Veneza, ofendida, escarrou na cara de seu algoz. Urak se defendeu com uma bofetada forte que entortou o rosto da gigante e lhe custou um dente.

O general se levantou e tomou a corda que segurava a lâmina nas mãos. Fez uma contagem de três mentalmente e soltou o cabo liberando a guilhotina.

O ferro deslizou pela armação de madeira veloz e cortante. Houve, então, uma explosão de fogo que incendiou o ponto ao lado do instrumento, cegando a todos. Quando os olhos se habituaram à claridade e a luz retrocedeu um pouco, os Guardiões das Chamas puderam contemplar a cena.

Postada ao lado da guilhotina, segurando a lâmina com uma das mãos para que Veneza não fosse decapitada, havia uma mulher humana com cabelos de fogo. Harkuos olhava com uma mescla de tristeza, desapontamento e raiva para todo aquele espetáculo de horror. Pilhas de corpos, lagos de sangue, pessoas mutiladas por todos os lados.

—Por que? -Disse a Herdeira de Zaatros. Ao silêncio que se seguiu, continuou: -Por minha causa? Por uns me seguirem e outros não? Deusa ou Feiticeira? Escolha seu lado!

Ninguém ousou dizer nada. Observavam-na sem respirar, sentiam emanar de seu corpo puro poder e magia antigos.

—Ouçam o que eu vou-lhes dizer: Toda essa matança não prova nada. Vença quem vencer, Fiéis ou Lumes Antigos, o que garante se sou real ou fictícia não depende disso. -Harkuos respirou fundo e recomeçou a falar elevando a voz. -Aprendam de uma vez por todas: deuses são feitos de fé! Se decidirem agora acreditar que um rio qualquer é uma divindade, com o passar do tempo ele se tornará uma divindade. Todo nume é real desde que exista uma só criatura viva que nele creia de todo o coração e de toda a alma. Respondam-me, sou deusa ou feiticeira?

Silêncio. Harkuos livrou Veneza da guilhotina e começou a caminhar enquanto discursava.

—Ambos. Fui a primeira humana e a primeira feiticeira, recusei-me a ensinar magia somente aos de minha espécie. Magia é um dom humano, as outras raças o têm pela minha intervenção. Os outros humanoides também tinham seus dons únicos, mas a magia era o dom do Dragão e da Fênix… eu o possuía e o disseminava, logo eu era tida como deusa pelo povo.

Séculos e séculos se passaram até que eu me consolidasse como deusa. Foram vocês que me tornaram o que sou. Isolei-me do mundo para não me corromper com o poder e a com a maldade, dizem; mas não é bem verdade… isolei-me por ter-me tornado uma divindade e, com isso, ter permitido o renascimento de outra mais antiga, a qual usou meu corpo como morada. Isolei-me para cuidar dela. Vocês conhecem, a história da minha mãe, a Fênix? A eterna, de existência infinita em vidas finitas?

Silêncio.

—Pois bem. Fênix desaparecera tal qual meu pai, Dragão, após a criação de Zaatros. Ora, mas Fênix não é a representação da existência infinita em vidas finitas? Sim, Ela é. Quando me tornei nume, foram criadas condições para que Fênix renascesse! Tomando meu corpo como hospedeiro, a Fênix voltou a existir. Sou ao mesmo tempo Harkuos e Fênix! Sou ao mesmo tempo filha e mãe do mundo!

Como prova do que dissera, Harkuos trocou sua forma, humana e divina, para Fênix, puramente divina. O pássaro de fogo, ainda jovem, era pouco maior que um avestruz. As chamas vermelho-alaranjadas incendiaram a madrugada e derreteram a neve.

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—Vocês todos atentaram contra duas deusas. -Disse ela, voltando à forma humana. -Eu, Harkuos, em minha inocência, permiti que trilhassem sozinhos o caminho. Deveria tê-los conduzido. Eu, Fênix, em minha confiança, achei que havia criado seres bondosos. Deveria tê-los criado melhor. Não estou aqui para castigar. Se estivesse, teria permitido a morte de alguém que amam. Alguém este ferido por um consanguíneo, e curado por mim que tanto repudiou a vida toda. A cura divina pode fazer de tudo, porém requer fé. Eu o fiz ter fé para que fosse curado. Vejam-no. -Disse Harkuos apontando para um Darius sorrindo fracamente a muitos metros de distância, alheio a tudo, ao lado dos irmãos e do amigo.

—Repito: não estou aqui para castigar, mas para lhes dar uma lição. Dar-lhes-ei esta lição para que pensem e para que façam pensar todos os que vierem a este mundo depois de vocês. Eu estou desistindo da minha divindade, deixarei que cuidem de si mesmos sem nenhuma interferência de alguém que antes também fora carne e osso. Fênix será a única deusa viva e os Dragões Azuis os únicos deuses vivos.

Sucedeu-se, então, algo inusitado. Harkuos e Fênix brigavam pelo poder do corpo que dividiam. O corpo se transformava incessantemente, ora humano, ora divino, ora Harkuos, ora Fênix.

A filha queria desistir dos poderes e isso a levaria a morte, visto que sete mil trezentos e dois anos excede a vida de qualquer humanoide; a mãe não dava permissão. As duas mentes se digladiavam entre si pelo controle do corpo, os Guardiões das Chamas e Aço Voador assistiam a tudo de boca aberta.

Harkuos dominava melhor o corpo, era seu corpo, Fênix morava nele apenas, era visita. Houve então um momento decisivo, a filha tomou de vez as rédeas da situação. Harkuos parou de lutar, encarou um por um e caiu. Morta.

Os cabelos de magma vivo se apagaram e ficaram cinza. Uma luz vermelha se acendeu no peito sem vida de Harkuos e explodiu para o alto como um gêiser! O raio queimava ao olhar e dele surgiu Fênix, agora em sua melhor forma, livre do corpo que parasitava. O pássaro de fogo, agora imenso, olhou com reprovação para todos.

—No fim das contas, conquistaram o que tanto almejaram. -Disse, em um misto de amargor e tristeza, e decolou, pousando ao fundo do campo de batalha.

Nenhum deles sabia como proceder dali em diante. Conseguiram cumprir a missão do clã, mas e agora? No outro extremo, Aço Voador estava tão desnorteada que não saberia dizer uma palavra.

O dia começou a amanhecer e o corpo de Harkuos, a se mover. Não estava morta, afinal. Levantou-se lentamente; passou a mão pelos cabelos, cinza, forçou o mana, cinza, olhou ao redor, cinzas.

Estava viva, mas não era divina. Morte certamente decidiu que ainda não era sua hora. Fênix continuava a observar de longe. Harkuos andou até Aço Voador e disse a ela:

—Você, agora me lembro, foi contra meu conselho. Voltou a ferir, atropelou meu desejo e roubou magia para agredir. Veneza, por que fizera maldade depois de tudo o que tentei ensinar?

—Por honra minha e vossa. -Respondeu com um sussurro. -Estou arrependida, minha Deusa!

—É muito fácil se arrepender de algo quando dá errado, Veneza Quendra… difícil é se arrepender quando ainda dá certo, mas não é certo… está claro para mim que entendeu errado. Levante-se. Eu a condeno a uma existência de punição. -Começou Harkuos, tocando com dois dedos a testa de sua seguidora. -Você se tornará uma estátua de aço, flutuará a dois palmos do chão, manterá o mana aceso em seus olhos, permanecerá viva e encarcerada na prisão de si mesma desde hoje até o fim dos tempos.

Houve um brilho e Veneza Quendra se tornou, de fato, aço voador. Fora preservada em sua clássica pose de batalha: braço direito com punho cerrado e apontado para o céu, braço esquerdo, também com punho cerrado, à altura da cintura; joelho esquerdo dobrado em posição de voo e perna direita esticada e firme, olhar de vitoriosa.

—Voltarei ao Monte Nublado. -Disse cabisbaixa, a Deusa Caída. -Reconstruam suas vidas, aprendam e sejam felizes… lembrem-se de que a escolha de cada um em seguir este ou aquele divino é particular, bem como todas as outras escolhas. A vontade de um não pode prevalecer sobre a liberdade do outro.

Todos ouviram os conselhos em silêncio. Não podiam discordar, era claro para todos, agora, que tudo havia sido um erro.

—Espero que saibam, Guardiões das Chamas, que o débito que têm para com os demônios deve ser pago. -Alertou Harkuos. -Isso está além da minha esfera de poder, sobretudo agora que não sou mais uma imortal.

Harkuos se foi, tornando-se cada vez mais translúcida até desaparecer completamente junto com Aço Voador, deixando-os sós, com os corações rachados e as consciências pesadas. Fênix se incendiou e também desapareceu em seguida.

***

Cena II – Desfecho.

Com o passar das horas, a neve desapareceu de Ruthure. Rei Rujavo fora encontrado esquartejado no acampamento gigante, montado no litoral de seu reino e, como manda a tradição, a Rainha Conaro, ou Miragem, se enforcou, deixando o trono para o Príncipe Diego.

Kaotheu vivia agora um estado caótico sem os monarcas e com boa parte do exército dizimada e sem comandantes. Saques, assassinatos, estupros, violências de todos os tipos levantavam as areias do deserto.

A situação em Ramavel não era tão diferente. Com a “morte” da Imperatriz Aço Voador, os nobres se digladiavam pelo trono, porque não havia herdeiros nem do rei anterior, nem da imperatriz traidora.

Em Feltares, a situação ia bem na medida do possível. A família real prestava auxílio aos sobreviventes da guerra que não podiam voltar aos seus reinos de origem; alguns desertores e outros mutilados que, certamente, seriam largados a mercê da vida e terminariam como mendigos ou criminosos.

Eyrell tentava se adaptar ao governo de um fantasma. Kayena conduzia o reino com bastante lucidez, embora existissem, ainda assim, forças contrárias simplesmente por não reconhecerem uma fantasma como rainha. Kayena não se abalava, a maioria dos eyréllicos estava com ela e aprovava seu reinado até então.

Em Oroada a situação era estável, nenhum mal penetrava as muralhas. Mydorin Jaatar deixou de lado a identidade falsa de Nyra Anthe e voltou a seu reino para ajudar os refugiados. Os duendes permaneciam altamente xenofóbicos e sua presença ali se fazia extremamente necessária.

Não importava onde fosse, por todos os reinos famílias e mais famílias recebiam notícias de parentes encontrados mortos, principalmente em Ramavel e Ruthure. Algumas das vítimas nem foram combatentes, terminaram morrendo por azar, por estarem em lugares atacados por esta ou aquela frente guerrilheira.

As Dragonesas perderam muitos membros, salvaram-se apenas Rita, Laura e Meline, que não havia entrado nem para as frentes de combate nem para a Salvaguarda Legítima. Kênia fora encontrada perfurada por uma seta envenenada, Vívian fora morta por Aço Voador quando esta descobriu sobre a espionagem, Catarina fora forçada a tomar o próprio veneno por um grupo de soldados anões e Ruth, que estava desaparecida havia semanas, fora finalmente encontrada boiando na foz de um rio em Eyrell.

Os Guardiões das chamas decidiram diluir o clã e se afastarem. Os demônios foram pagos, com exceção de Maldição e parte da dívida com Morte... Manu voltou para sua casa de praia na Ilha Menor em Oroada, Cícero decidiu exilar-se em Aspro e aprimorar seus poderes apenas por passatempo, Luzabell e Razatte não falaram sobre sua rota, Darius se entregou para a Guarda de Eyrell pelos crimes cometidos na guerra e antes dela, Miguel se isolou em Oroada para voltar a estudar magia, Hilda voltou para sua caravana de ciganos.

O que ela havia dito sobre o acordo com os demônios se fez verdade; Urak voltou à vida, mas não pertencia mais a este plano de existência e, com a partida de Cícero, o feitiço de memória se quebrou e as lembranças de Kira voltaram a golpeá-lo duramente. Terminou por se enforcar, afinal, a Morte vem e não precisa de convite.

No fim das contas, nem Lumes Antigos nem Fiéis saíram vitoriosos. As energias de Zaatros estavam desequilibradas: muitas almas superlotando o limbo, outras tantas ainda apegadas ao plano físico permaneceriam aqui como fantasmas atormentados, a magia estava corrompida e as criaturas mágicas sentiam na pele os efeitos disso...