A Herdeira de Zaatros

Capítulo 20


Octogésimo sexto dia do segundo mês, ano 7302.

Cena I – Feliz Aniversário, Kira.

6 horas em ponto. Fonte termal.

Antes de começar a narrar os acontecimentos do velório de Kira, cabe fazer algumas recapitulações:

Miguel e Darius contaram ao clã sobre os cacos da escritura da Maldição Quendra. Queriam encontrar o restante do círculo e destruí-lo de uma vez por todas. Em seguida confrontariam Aço Voador e acertariam as contas.

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Miguel convenceu o irmão a se desculpar com Hilda. Ontem Darius foi até a cigana pedir perdão por tê-la atacado após retornar do ataque ao dragão sem a sobrinha. Hilda aceitou as desculpas, dissera que a agressão também fora prevista; mas ainda havia nela certo rancor para com o elfo. As escoriações do espancamento estavam mais suaves, embora ainda existissem.

Urak viveu apático os três dias seguintes à morte da filha. Acordava, comia e voltava a dormir, tudo artificialmente. Não existia vontade nenhuma, apenas instinto. Darius e ele passaram os dois últimos dias juntos, respaldando-se mutuamente.

Manu estava a cada dia mais distante de Darius, assim como nutria cada vez mais o ranço que sentia por Miguel.

Targus dominou de vez a Princesa Fantasma. Nunca mais Kayena iria incomodaria ninguém, segundo o necromante.

Os mágicos do clã, Cícero, Siamesas e Targus, estavam fora desde a descoberta da tempestade de Aço Voador. Tentavam contê-la junto de outros mágicos de Ruthure e também de Kaotheu.

De volta ao presente, estava para ter início as últimas condolências que seriam prestadas a Kira. Mesmo que todo o reino lastimasse a perda da mais jovem de suas heroínas, apenas os Guardiões das Chamas participariam do cortejo. A cerimônia era reservada aos íntimos. Convidaram, inclusive, Tamires, mas ela negou; disse apenas que não conseguiria se despedir e agradeceu o convite e a trégua temporária entre os dois lados da guerra.

Encontravam-se na mesma fonte termal onde dias atrás examinaram o caco de diamante, sob a árvore que ficava à margem do poço. Cadeiras de madeira pintadas de branco foram espalhadas para acomodá-los. Em frente ao tronco, havia um púlpito e, atrás dele, Darius respirava pesadamente procurando organizar as coisas que tinha a dizer para saudar a afilhada.

A Estrela Astral começou a nascer naquele momento colorindo de laranja o céu entre os picos dos vulcões por onde lançava seus raios de luz.

Os presentes eram Hilda, Manu, Miguel, Ezerk, Urak, Miragem e Darius. Todos, com exceção do elfo, vestiam preto ou tons muito escuros. Ele trajava uma túnica dourada, a qual deixava metade de seu peito à mostra, amarrada na cintura por uma tira de pano vermelho.

—Eu não sei bem como começar com isto. -Falou ele, entristecido. -Se eu fosse uma estrela, estaria passando, agora, por um eclipse… gostaria de explicar o porquê de não usar roupas adequadas para um luto. Kira, embora fosse muito séria com a maioria de vocês, era muito alegre e brincalhona comigo. Uma vez, antes da criação do clã e daquele ritual onde parou de falar, ela me disse que detestava cores apagadas, citou cinza, branco, marrom, preto. Por isso estou de amarelo hoje, sua cor favorita. -A voz embargou e Darius tomou alguns segundos para voltar ao normal. Urak derramava lágrimas silenciosas. É muito chocante ver alguém do tamanho dele, com toda aquela força, desmoronando assim; imaginamos que pessoas como Urak sejam inabaláveis… mas ninguém é.

—Tentando ser poético, eu diria que Kira, minha afilhada e minha sobrinha, deixou em mim, em nós, a ausência de sua presença e a presença de sua ausência. Eu quero pedir perdão outra vez pelas maldades que fiz a vocês todos, sobretudo à Hilda, durante os surtos que tive depois do acontecido. Perdoem-me! -Daí em diante o pranto e os soluços começaram. Não só Darius e Urak, mas Manu, Hilda e Miguel também choravam, estes, porém, com menos pesar. -Alguns sofrem demais a perda de Kira, outros nem tanto, mas estar aqui é um grande consolo para mim e para Urak, meu irmão de alma, que não divide comigo nenhum laço de sangue, mas divide a mesma alma por ser meu amigo. Então, só gostaria de dizer o seguinte: sofrimento é sofrimento. Não importa quem sofre nem a intensidade da dor. O que importa é a empatia entre todos. Quer você sofra também ou não, oferecer um abraço amigo pode ajudar a diminuir a dor. -Darius ficou ali debruçado sobre o púlpito por um minuto inteiro. O rosto escondido entre os braços, os soluços chicoteando os ouvidos presentes.

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Urak, pela primeira vez em dias, agiu conscientemente. Levantou-se, foi até o elfo e deu-lhe o abraço mais apertado que podia sem quebrar-lhe as costelas. Usou os quatro braços; ato incomum na cultura kvarbrakoj, onde cruza-se os braços inferiores nas costas e usa-se apenas os superiores.

Todos repetiram o gesto do General. Todos se abraçaram, até mesmo Manu e Miguel, Hilda e Darius.

O púlpito foi removido, ninguém queria dizer mais nada depois de um discurso como aquele. Ninguém precisava dizer nada após aquilo. Darius traduzira bem o que o clã inteiro sentia.

Ezerk escavou a terra junto às raízes da nogueira. Kira foi enterrada ao pé da árvore, sua urna branca foi recheada com flores. O perfume doce trazia a todos uma sensação um pouco melhor, não necessariamente alegria, mas gratidão.

E, enquanto a Astral aparecia completamente no céu e a fonte rumorejava suas borbulhas, eles deixaram o local. Darius, Miguel e Urak mais atrás do grupo, um com os braços por sobre os ombros dos outros.

—Feliz aniversário, Kira!!! -Gritou o elfo.

—Feliz aniversário! -Repetiram os outros dois.

***

Cena II – Encurralada.

8 horas e 15 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Terraço da Mansão Efinm, Anilya e Mosfey.

Distraída, Dóris tomava banho de luz debruçada sobre a mureta do terraço. Fazia pouco que havia despertado e a sonolência era grande naquela típica manhã gelada de Ramavel. Tão grande que não pressentiu a aproximação do perigo.

Aço Voador desceu sobre ela com um rasante esmagador. A pancada do escudo da feiticeira a atirou no chão. Instantaneamente um galo começou a inchar em sua testa.

—Traidora. -Disse Aço, calmamente. Ocultava a raiva sentida por ter os planos frustrados por Dóris.

—Do-o que es-está falando? -Atrapalhou-se. Ainda tonta do golpe, Dóris tentou se levantar.

—Disto. -E atirou com toda a força um espelho psíquico no peito da humana, desequilibrando-a outra vez. -Um mestre em arcanismo fez a última mensagem ser exibida novamente… aquela na qual você passa informações sobre a minha tempestade para a Salvaguarda Legítima. Aquela na qual você diz seu nome real, Vívian. Uma Dragonesa, não?

Vívian empalideceu. Lembrou-se de ter também dito o nome da mãe durante a transmissão.

—Os mágicos de Ruthure junto aos de Kaotheu desfizeram completamente a nuvem, e agora você vai morrer. -Continuou Aço Voador.

—Não! É um engano! -Desesperou-se a humana. -Eu tenho direito a uma audiência com o rei.

—Sim, você tem. -E riu. -E eu tenho todas as provas. -Com um gesto, Aço Voador atraiu o espelho de volta para suas mãos. -Eu poderia acabar com você agora, contudo será melhor esperar. Preciso de motivos fortes para pôr em prática a minha jogada final sem voltar os ramavenos contra mim.

A feiticeira agitou levemente o escudo com o qual golpeara Vívian e ele transformou-se no Anel Bélico. -Estarei vigiando. Não pense em fugir. E, até lá… -Um novo movimento e o anel tomou forma de chicote. -Uma lembrancinha… -Com uma força absurda, ela açoitou o chicote no rosto da espiã.

Vívian caiu com as mãos sobre o pescoço. Sangue lhe escorria entre dedos. O golpe deixou um ferimento em listra da base do pescoço até o canto dos lábios.

Aço Voador já havia partido quando ela conseguiu se levantar.

***

Cena III – Ninguém.

13 horas e 49 minutos. Reino Anão – Ruthure. Fortaleza dos guardiões das Chamas.

—O que você tem de errado, Manu? -Perguntou Cícero ao vê-lo olhando para o nada. Sentava-se ao batente dos portões e acariciava a cascavel-camaleão em seu pescoço.

—Eu? Nada, está tudo bem.

—Eu leio mentes, lembra? Vai me contar para eu poder ajudá-lo ou vou ter que descobrir na marra?

—Saudades de Kira, só isso.

—Que versos bonitos! -Exclamou o feiticeiro. -Quem foi o bardo que os compôs?

—Do que você está falando? -Manu estava confuso, até que percebeu o que estava acontecendo. -Saia da minha cabeça!

Cícero ria descontrolado. Manu tinha o rosto vermelho como um tomate.

—Foi você?! Manuel Cairi, você é um gênio! -O feiticeiro de olhos âmbar começou a recitar a poesia:

O Ninguém que amo não ama a mim

Não amo o Ninguém que ama a mim

A mim ninguém ama

Pois não amo ninguém

Ninguém me ama, já que nunca me disseram

Não amo ninguém, já que nunca admiti meu amor

O Ninguém ama ninguém,

ninguém ama o Ninguém

Não conheço o amor de ninguém

Assim como ninguém conhece o meu.

Sou amado por ninguém e ninguém me ama também

Sinto-me incompleto por não amar ninguém

Sinto-me incompleto por amar Ninguém escondido

Sinto-me ninguém por ser incompleto e não confessar o amor.

O duende-humano era um misto de raiva e vergonha. Ficou de pé encarando Cícero por alguns segundos antes de dar as costas e entrar.

—Manu, espere! -começou, o feiticeiro o seguindo. -Isso é pura arte! Você tem um grande talento, pergunte ao Darius. Ninguém conhece mais dessas coisas dos bardos do que um grande fã como ele. -E finalmente o alcançou, segurando-o pelos ombros.

—Darius troca amigos por assassinos.

—Ah deixe disso. Tudo foi esclarecido e perdoado… -Então Cícero mudou o semblante e encarou Manu de forma desconfiada. -Agora eu entendi, desculpe-me.

—Invadiu minha mente de novo? Estou mesmo cercado de canalhas! -Bradou o híbrido furioso.

—Não, amigo, não. Eu entendi, juro pelos Deuses Antigos. -O feiticeiro parecia se compadecer da raiva e da dor do companheiro de clã. -Não é meramente um de eu-lírico falando, não é só medo de uma traição de Miguel e não é um ninguém qualquer a quem se refere nos versos. Certo? -Disse. E, vendo a expressão carrancuda de Manu: -Desculpe-me…

—Argh! Não importa!

—Importa sim. E mesmo que seja uma “causa impossível”, você não deve nunca guardar só para si e se amargurar. Pense nisso!… -Gritou ele enquanto Manu se afastava a passos apressados.

***

Cena IV – O Plano Dentro de um Plano.

17 horas e 17 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Pátio Sagrado.

Vívian estava em apuros. O disfarce e a identidade secreta foram pelos ares.

Ajoelhava-se diante da escultura de Harkuos e pedia proteção para a mãe e para si. Foi então que o príncipe se ajoelhou ao seu lado.

—Com problemas também? -Disse ele. -Bonito cachecol.

—Você não faz ideia. -Respondeu Vívian com doçura. Tentava seduzi-lo, via em Ledrone a chance de salvar sua pele.

—Nossa! O que foi isso? -Perguntou, espantado por notar o corte na boca da moça.

—Ah, foi Aço Voador. -Contou, com o rosto entre as mãos e fingindo soluços. -Ela é louca! Atacou-me com uma desculpa esfarrapada de que eu teria contado à Salvaguarda Legítima sobre a tempestade… -Então fixou os olhos encharcados nos do príncipe e removeu lentamente o cachecol. -Ela também me feriu no pescoço, veja. Acho que tem ciúmes de você e ficou com raiva de mim por ter atraído a atenção de vossa alteza.

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Príncipe Ledrone nada disse. Pôs a mão sobre a echarpe, terminou de afastá-la e, mais uma vez, deteve o olhar no busto branco e pontilhado de sardas que tanto lhe enfeitiçara durante o banquete.

Vívian tomou as mãos gigantes de Ledrone nas suas e levou-as até os seios delicadamente.

—Ah, acho que devemos conversar melhor. -Disse o príncipe, surpreso com a falta de timidez da moça.

—Em um lugar mais íntimo… -Sugeriu ela.

Depois de uma curta caminhada, chegaram ao palácio. Lá passaram por uma infinidade de corredores, todos estranhamente desertos, até o quarto do príncipe.

—É um aposento muito bonito, alteza. -Comentou ela, sentando-se sobre os lençóis prateados que forravam a enorme cama do príncipe.

—Obrigado, Dóris. Pode me tratar pelo nome. -Disse ele, pousando-se a seu lado. -É também lugar muito íntimo.

Cautelosamente Ledrone desceu a alça do grosso vestido de pele de Vívian. Ela não esboçou reação alguma, apenas mantinha as mãos bem apertadas amassando o pano da saia.

—Eu não fazia ideia de que as humanas tinham seios tão robustos e bonitos. -Ledrone sussurrou, inclinando-se para beijá-la.

Vívian aceitou o beijo, sem quase retribuir. Nervos a flor da pele.

—Eu estou um pouco acima da média. -Falou ela, também em sussurros. Tirou-lhe da cabeça a coroa e a atirou longe, enroscando bem os dedos finos nos cabelos encaracolados do príncipe.

Estavam nus e o plano de Vívian ia bem até que o passado retrocedeu para castigá-la... a humana tentou ignorar, precisava ignorar para ter alguma chance de ser inocentada e escapar de Aço Voador. Não foi possível. Flashes do abuso voltavam a sua mente enquanto Ledrone a tocava. Chegou ao ponto de ela não ver mais o quarto luxuoso e o belo príncipe negro; tudo fora substituído por imagens de um porão embolorado, de correntes e da violência do homem dos bumerangues, de Naddor.

—Pare! Chega! -Bradou ela.

—Não tenha medo. A primeira vez parece assustadora, mas não é. Basta me acompanhar. -Sibilava Ledrone.

—Eu disse basta! -Ali o plano se acabou de vez:

Vívian portava um anel que, à primeira vista, parecia uma joia comum; era, porém, uma pequena arma, presente de Catarina, sua amiga Dragonesa.

Ao girar a pedra, revelava-se um pequeno espinho envenenado com uma toxina de efeito rápido e letal. Media pouco mais de um centímetro. A espiã cravou o esporão nas costelas do príncipe. Em menos de dez segundos ele estava paralisado; em trinta, espumando pela boca com os olhos esbugalhados; em quarenta e cinco, morto.

De repente, uma sequência de palmas lentas começou. Aço Voador atravessou a porta sem abri-la, valendo-se de uma magia de intangibilidade.

—Muito bem, Dóris! Quero dizer, Vívian.

Vívian, ainda nua, encolheu-se atrás do corpo sem vida de Ledrone. Apavorada.

—Eu só preciso do seu anel. -Disse a feiticeira gigante se aproximando e erguendo a humana pelo braço com uma só mão. Com a outra, removeu o anel e arremessou-a longe. Vívian desmaiou após o impacto contra a parede, caiu de mau jeito e quebrou o nariz ao chocá-lo contra o piso no ato da queda.

—E, só para garantir… -E atirou uma grande quantidade de gelo em Vívian. -Só pra garantir que não fuja.

***

Cena V – A Traidora Mor.

17 horas e 22 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Palácio Real.

—Meu Rei, minha rainha! Depressa! -Gritava Aço Voador derrubando as portas da sala onde por séculos funcionou a finada União Real. Ali estavam reunidos Danan, Imelda, um escriba e um conselheiro velho.

—Pelos Seis Demônios, o que está havendo? -Ralhou Rei Danan. -Acaba de interromper assuntos sérios, feiticeira!

—Uma coisa horrível! O príncipe está morto e a assassina é a espiã humana. O corpo está no quarto, junto com a assassina que eu congelei.

Foi um pandemônio. O rei correu louco para fora seguido pela rainha histérica e pelos funcionários curiosos. Aço flutuava atrás, fechando a fila.

Ao verem Ledrone nu, urinado e morto, os monarcas ficaram paralisados. Rainha Imelda, com a boca aberta, deixava correr lágrimas silenciosas.

O rei, voltando à razão, agarrou Aço Voador pelo pescoço e gritou:

—QUE TRAIÇÃO É ESTA!? -Indagou ele. Referia-se ao conselho da própria Aço, o qual dizia que o príncipe deveria encontrar-se com a humana.

O aperto na garganta não causou nenhum dano à feiticeira. A pele antecipara o golpe e agora era puro aço.

—“Isto vai dar brecha para eu fazer algo que quero há muitos anos; algo que interessará ao senhor também, diga-se de passagem e, desse modo, reforçaremos a confiança do povo em mim e na minha proteção a este reino.” é eu menti. É um interesse somente meu. -Ela então retirou a mão do rei de seu pescoço e sorriu. -Entretanto não chame de traição. Eu diria revolução… talvez golpe de estado tenha um tom ainda mais épico nos livros de história. -Dito isto, cravou o espinho envenenado no pescoço do rei.

Danan se afastou dela cambaleando para cair aos pés de Imelda, estrebuchando.

—Minha rainha… -Começou a feiticeira. -É uma pena, gosto de vossa majestade, mas tenho de fazer o que precisa ser feito.

Imelda não teve tempo de raciocinar. Ferroada no braço, caiu envenenada por cima do corpo sem vida do marido.

—Os senhores não vão a lugar algum! -Aço Voador decretou, erguendo uma parede de energia na saída. -Quem quer ir primeiro? -Ah! O escriba. -Puxou-o por telecinesia e socou-o como anel no meio da testa. -Ah, eu o odiava tanto!

—Monstro. -Xingou o conselheiro.

—Monstro não. Semideusa!

—Demônio, isso sim! Podia tê-los matado sem contar da morte do príncipe. -Ralhou o velho. -Fez o que fez por prazer em torturá-los!

—Eles mereceram, e o senhor também. -Ela caminhou lentamente até o conselheiro e o perfurou na testa.

—Agora a língua de trapos. -E atirou uma bola de fogo sobre o corpo congelado de Vívian. -Você nem se dê ao trabalho de acordar. Seria um despertar breve. -Aço tirou o anel venenoso do dedo e o pôs no dedo de sua verdadeira dona. -Adeus, cadela. Não deveria ter latido perto da leoa, afinal, o rugir é muito mais poderoso que o ladrar… -Segurou a mão da espiã, a mesma que agora voltara a portar o anel, e a ferroou no seio nu.

***

Cena VI – A Imperatriz.

19 horas em ponto. Reino Gigante – Ramavel. Pátio Sagrado.

Do terraço principal, Aço Voador encarava todo o reino, plebe e nobres, para o pronunciamento. Ninguém sabia ainda a urgência do chamado, nem suspeitava qual seria a causa e menos ainda o porquê da Chefe de Segurança falar no lugar de Rei Danan.

—Ramavenos, é com imenso pesar que venho trazer estas notícias. -Sem esperar o falatório cessar, continuou por cima das vozes do povo. -A humana Dóris Tartaza, filha adotiva da família Efinm, era, na verdade, Vívian Cann; parte do clã de criminosas conhecido por Dragonesas. Vívian era mercenária, assassina, chantagista e espiã. Ela vazou informações confidenciais ouvidas durante um jantar para o qual foi convidada. Cometeu muitos crimes em seguida, após se dar conta de que eu descobrira toda a verdade… -A feiticeira parou para enxugar os olhos com um lenço, transparecendo uma tristeza que não existia. -Irmãos, a maldita infiltrada envenenou não só dois funcionários da Coroa Ramavena, mas também rei, rainha e príncipe… -Fez-se a balbúrdia. Gigantes se puseram a urrar e praguejar contra a espiã, choveram insultos e maldições. -Houve, ainda, uma sexta vítima. -Continuou Aço. -Vívian, ao ver-se cara a cara comigo, suicidou-se temendo ter fim pior pelas minhas mãos. Como é tradição da cultura gigante a família real ter um único filho, não há irmãos de nosso amado rei para governar em seu lugar nem herdeiros quaisquer; de nossa rainha, tampouco… sendo assim, eu assumirei para mim o trono de Ramavel; sob meu comando, levaremos dor, morte e vingança aos nossos inimigos; empilharemos seus corpos sem vida em um só lugar para que ali se forme uma montanha de cadáveres, de porcos imundos que ousaram entrar em nosso reino para nos fazer mal! Pobres almas condenadas, mal sabiam eles que, quando se é para medir crueldade, ninguém se iguala a Aço Voador!

Embalados pelo ódio e empalados por palavras penetrantes, os ramavenos ofereceram total apoio à feiticeira sem saber que foram enganados.

—A partir de hoje, eu serei a Imperatriz de Ramavel! -Agitou a mão acima de sua cabeça e ali surgiu uma coroa prateada em forma de halo, circundando a testa. -Para meu primeiro decreto, estão banidos a partir de agora todos os não-nativos. Têm até a meia-noite de amanhã para deixarem este reino, daí em diante serão caçados e mortos no ato, sem exceções. Híbridos nascidos em Ramavel serão interrogados e permanecerão sob vigilância até segunda ordem. Todo homem saudável e maior de dezoito anos fará parte do exército nas categorias de espadachim, lanceiro, arqueiro, bárbaro e o que mais me vier à cabeça depois; toda mulher saudável e maior de dezoito anos pode se alistar se assim o quiser. Todo mágico de nível médio, homem ou mulher, acima de quinze anos fará parte do contingente mágico do reino sem exceções. Aquele que se negar será autuado por crime contra a ordem direta da imperatriz e traição ao reino. Por hora, é tudo.

Kênia, misturada à multidão, sofria. Se o que Aço Voador disse estiver correto, sua amiga Vívian está morta agora, tal qual os monarcas que a fizeram desmanchar o clã e embarcar para Ramavel. Não tinha mais propósito ali e, como se isso não bastasse, perdera a amiga.

Queria mais do que nunca ir à guerra e vingar Vívian, mas vingar de quem? Fora ela própria quem se privou da vida; bem como entraria em combate contra o povo da amiga… Lembrou-se, então, das palavras da nova imperatriz, as quais diziam que Vívian foi culpada de cinco assassinatos antes de cometer suicídio. Estava claro para Kênia, agora, que a Dragonesa a traiu quando se uniu à Salvaguarda Legítima e aceitou a missão de assassinar gigantes.

Iria à guerra e mandaria para a morte todo anão, kvarbrakoj e qualquer outra raça que cruzasse seu caminho, ainda que estes tenham aberto mão de lutar.