A guardiã do gelo

As marcas da esperança


Por instinto eu usei os ventos para me ajudar. Entretanto, a queda até a água foi bem rápida. Isso mesmo, nós duas caímos na água — e agora Nerea me deve uma por eu não ter deixado ela morrer com o impacto. Demos mais sorte ainda do lago ser fundo por causa da nossa altitude. O único problema é que nadar com armadura era muito difícil. Eu tentava ir pra cima e a armadura me puxava para baixo. Tentei manter a calma em meio a uma situação tão complicada. Eu tinha que pensar em alguma coisa. E rápido.

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Minha primeira — e única — ideia foi congelar o lago. À essa altura Nerea já deveria estar morta, então precisava ao menos me salvar. No segundo seguinte eu estava congelando tudo ao meu redor, fazendo como uma capsula de gelo pra mim, onde logo pude respirar o ar gelado. Aos poucos fui abrindo passagem em meio ao gelo, cada vez mais pra cima — e nos meus pés, algo como uma escada de gelo. Até que não demorou muito até eu estar na superfície, um pouco ofegante por ter usado do meu poder.

Meu coração quase foi pra boca ao notar que em meio ao lago congelado, havia uma mão pálida acima da superfície. Era a mão de Nerea. Ela estava quase conseguindo sair por conta própria.

De imediato eu segurei sua mão e fui descongelando o pedaço do lago em que encontrava seu corpo. Demorou um tempinho até eu conseguir puxar ela por inteiro, mas lá estava Nerea, imóvel e pálida. Arrastei ela até a margem do lago e sentei perto do seu corpo. Toquei a lateral do seu pescoço e embora a pulsação estivesse fraca, indicava que pelo menos estava viva.

Retirei o frio do seu corpo, tentando deixa-la mais aquecida pra que acordasse logo. As horas foram passando, o dia foi amanhecendo e os olhos de Nerea foram se abrindo com o tempo.

— Por... quê? — ela conseguiu achar forças pra perguntar.

E eu sabia exatamente ao que ela estava se referindo.

— Somos da mesma equipe. — Abri um pequeno sorriso. — Não podia deixar você morrer.

Vi um esboço de um sorriso em seu rosto antes dela voltar a fechar os olhos, como se precisasse descansar. Suspirei e olhei ao redor, vendo se conhecia o local. Bem, não conseguia ver muita coisa. Me levantei devagar, sentindo o cansaço tomar conta de mim. Não tinha conseguido descansar direito nas últimas horas e tinha me forçado demais.

Sem problemas. Eu tinha ajuda da Conexão.

Quando olhei pra minha mão, levei um susto ao perceber que as linhas na minha mão tinham desaparecido quase que por completo. Tentei usar o poder de cura, mas só senti um pouquinho do cansaço indo embora. O pior é que quando o fiz, foi aí que as linhas desapareceram mesmo.

Olhei ao redor, inutilmente querendo obter alguma resposta. Não conseguia entender o motivo daquilo. Assim que as linhas sumiram, foi como se eu me sentisse mais fraca.

— Isso tem a ver com você, Quione? — questionei pra ela num sussurro.

— Você adora me invocar, não é?

E lá estava a deusa, sentada numa das árvores, bem no galho. No mesmo instante a árvore foi congelando-se sozinha.

— Eu quero respostas — falei séria.

— Depois eu que sou a fria. — Havia um pequeno sorriso de divertimento em seu rosto.

— Claro, aprendi com a melhor — dessa vez fui irônica.

— Às vezes eu te acho corajosa até demais — comentou ela, embora não me encarasse.

— Quione, eu quero respostas — a pressionei.

Seu sorriso sumiu.

— A Conexão sumiu porque vocês dois estão afastados demais — respondeu ela, fazendo um gesto como se não fosse algo importante.

— Então não temos mais a Conexão?

— Não.

— Isso significa que...

— Que você não é mais tão forte quanto era quando enfrentou o Minotauro.

Fiquei um tempo pensativa. Se eu não era mais tão forte, como é que poderia me virar sozinha?

— Não se preocupe com isso — ela disse como se lesse meus pensamentos. — Esqueceu que sua força está aqui? — Quione colocou indicador na testa, indicando o cérebro.

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Tem um tempo que eu já não considero mais minha inteligência algo inútil — desde que eu conseguira me livrar do Minotauro sozinha, pra ser mais exata.

— Que feitiço foi aquele que você me ensinou?

— O quê? O feitiço de Pandora? — O pequeno sorriso de divertimento voltou aos seus lábios.

Arqueei uma sobrancelha numa pergunta silenciosa.

— Era só algo pra trancar o Minotauro em algum lugar. — Ela fez um gesto em desdém.

— Que lugar?

— O mundo inferior, é claro. — Quione deu de ombros.

— E por que eu que tive que usar o feitiço?

— Deuses não podem lançar feitiços. — Ela balançou a cabeça. — Só Hécate, Zeus e alguns deuses menores têm essa capacidade. Não podemos mexer com magia que não nos pertence. Mas os mortais podem, principalmente os Guardiões Secundários.

— Hein?

— Guardiões Secundários. Aqueles que foram criados pela cruza dos Guardiões criados pelos deuses. Ninguém nunca te contou essa história?

— Na verdade... sim — falei, me lembrando apenas de fragmentos de tudo o que a deusa (ou Guardiã) Alexia havia me contado antes de eu ter dado todo aquele chilique.

— Pois bem. Existiram os Guardiões Secundários que hoje formam a raça que hoje chamamos de “humanos”.

— E os Guardiões Primários?

— É uma raça nova apesar do nome. De um milênio atrás.

Isso significa “raça nova”?, pensei intrigada. Imagina a idade das raças dos deuses antigos.

— São chamados primários por serem deuses. São como semideuses só que deuses. É complicado de explicar. — Ela suspirou, como se desistisse de tentar me fazer entender.

— Eu quero entender.

— A deusa Alexia é uma Guardiã Primária. Coroada Princesa dos Deuses. É uma fusão curiosa entre Zeus e Hera.

— E quanto aos deuses como vocês?

— Não se sabe se vamos deixar de existir. É provável, porque... uma nova geração está chegando. — De repente seu olhar ficou distante.

Parei pra refletir mais uma vez, tentando ligar os pontos.

— Então vai haver uma guerra?

— É possível. — Seu olhar ainda estava distante.

Cronos matou Urano. Zeus matou Cronos. Alexia vai matar Zeus, tentei raciocinar. Sim, realmente poderia estourar uma guerra entre deuses e Guardiões Primários.

Eu estava tão distraída com meus pensamentos que levei um susto quando Quione se teletransportou pra ficar exatamente na minha frente. Logo suas mãos gélidas estavam nos meus ombros e seus olhos encarando os meus.

— Com ou sem Conexão, Karysha, você consegue. — Sua voz me passou uma estranha confiança. — Não sei se nos veremos mais alguma vez daqui pra frente, mas... Tudo o que disseram pra você... Sabe que é mentira, não é?

Desviei o olhar do dela, sem saber de quais mentiras ela estava falando. Só que a mesma logo segurou minha bochecha, me forçando a encará-la.

— Olhe pra mim — disse. — Prometa pra mim que vai vencer.

— Não sei se... consigo. — Meus olhos marejaram. Não sabia o motivo exato de me sentir emotiva. Talvez fosse por estar passando pelo primeiro momento carinhoso com a minha mãe divina.

— Consegue — sua voz estava determinada. — Só me prometa.

— E-Eu... vou v-vencer.

— Mais firme.

— Eu... vou vencer.

— Você vai o quê?

— Eu vou vencer — minha voz saiu num sussurro, mas com muita convicção.

— Essa é a minha garota.

Pela primeira vez vi um sorriso de verdade no rosto da deusa antes da mesma desaparecer bem diante dos meus olhos.

Adagirbo — a palavra na outra língua saiu quase que automática. Eu estava agradecendo a ela.

Tudo bem, eu realmente queria e iria vencer aquele jogo. Não importa os sacrifícios que teria que fazer — mesmo que no fim, eu tivesse que arranjar coragem pra conseguir matar meu próprio irmão para vencer. Eu ia realizar o desejo da minha mãe.

Caminhei até Nerea que ainda estava deitada. Pelo menos agora ela estava menos pálida. Me sentei ao seu lado e suspirei, olhando ao redor mais uma vez. Só que incrivelmente eu percebi algumas marcas nas árvores que indicava que alguém estivera ali algumas horas ou dias atrás. Poderia ser até semanas. Mas eu conhecia aquelas marcas.

Com certeza tinham sido feitas por Utae.