O trabalho no pequeno rancho não era difícil. Acordar de madrugada para alimentar animais, liberar alguns para pastar ao ar livre, ordenhar o leite, colher ovos. A esposa também já levantara, e providenciava o café da manhã. Ela estava pesadona nos seus nove meses de gestação, e o sofrimento das últimas semanas a tornava irritadiça e mal-humorada. Ele procurava agradá-la e poupá-la de dissabores, além de obviamente ficar fora do caminho dela.

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A menina era um amor de pessoa, não dava trabalho. Diferente de sua mãe, não era opiniosa. Sempre agradecia tudo o que lhe davam, e sempre tinha um sorriso para ele. Às vezes ele se perguntava por que desposara uma mulher azeda e rancorosa. É claro, ela tinha suas qualidades, que decididamente pesaram no seu coração, e o fizeram se enamorar.

Ruby era confiante e serena. Suas fortes convicções e vontade férrea a tornavam uma força da natureza. Ela controlava o próprio destino, como se suas mãos fossem mágicas e ela tivesse acesso ao livro da vida.

Sam balançou e pendeu a cabeça, fazendo com que seus longos cabelos castanhos lhe cobrissem os olhos. Riu de si mesmo por sua fértil imaginação. Na verdade, lá no início ela não o quisera, deixando claro que o desprezava, mesmo depois que se envolveram intimamente. Mas Sam a queria tanto que se transformara da água pro vinho para merecê-la. Foram sete longos anos depois daquela singela cerimônia de casamento no cartório da cidade, com a presença apenas da família.

Após recolher o leite da vaca malhada, Sam rumou para casa. Ruby estava retirando o pão da máquina. O cheiro de massa fresca, quentinha, inebriou seus sentidos. Uma mecha de cabelo negro escapuliu do coque frouxo, emoldurando o rosto jovem e bonito de sua esposa. Uma onda de ternura ameaçou sufocá-lo. Sem conseguir se controlar ele se aproximou dela e colocou as mãos em seu quadril, sentindo o calor sob a camisola branca de algodão. Ela o afastou de si com um gesto de enfado.

"Tenho mais o que fazer do que ficar me esfregando em você, Sam. Ponha as xícaras na mesa, sim?" Ela falou firme.

Sam afastou-se triste e buscou as xícaras de vidro azul. Evitou até mesmo olhar a esposa gravidíssima, enquanto ao mesmo tempo procurava desculpá-la por estar prenha e sofrendo. Lembrou-se da filha que ainda não se levantara. Subiu as escadas que davam ao andar dos quartos. Abriu a porta devagarinho e flagrou sua filha de seis anos na cama brincando com bonecas. Quando a menina o viu deu um pequeno grito.

"Me assustou, papai. Não faça mais isso." A pequena se ergueu na cama e abriu os braços para o pai, que a suspendeu no colo.

"O que minha bonequinha quer comer no café da manhã?"

"Lucky charms, paizinho!"

"Por que, Lilith?"

"Porque eram os seus preferidos, papai." Ambos riram um para o outro.

Após vestir Lilith em sua farda escolar e arrumar sua merendeira, Sam pegou as chaves da caminhonete e dirigiu-se à saída. Quando já ia fechando a porta atrás de si, virou-se para a esposa e disse "tchau" tristemente. Ela não se incomodou em responder.

Sam dirigiu até à escolinha de sua filha imerso em pensamentos. Parecia que ontem mesmo estava na esquina ali adiante, esperando para ver passar a bela Ruby Espinosa, a garota mais sexy da escola.

Quando parou no semáforo vislumbrou a fachada do banco municipal. O mesmo onde foi pedir um empréstimo para poder comprar o rancho em que viviam agora. E assim poder provar a Ruby e seus pais que ele poderia sustentá-la.

Após deixar a filha na escola, não voltou imediatamente para casa. Dirigiu até uma estrada velha que terminava em uma lagoa muito popular na sua infância. Parou a caminhonete e ficou admirando a paisagem. Parecia voltar no tempo e sentir as mesmas antigas emoções. Sam fechou os olhos para apreciar melhor a ilusão.

Sam era um jovem muito comprido e ossudo, sem personalidade marcante e nenhum atrativo, exceto o espanador que era sua cabeleira. Suas roupas eram velhas e surradas, nem tanto porque fosse pobretão, e sim porque ele não dava importância à moda ou aparência física. As garotas o esnobavam, e ele era a vítima favorita dos valentões. Não era o preferido dos professores, e nem mesmo o dos seus pais. Afinal de contas, não é preciso muito para ser um fazendeiro, a não ser trabalhar duro, não é mesmo? E isso Sam sabia fazer.

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Tudo corria bem, como devia ser, até que Ruby chegou na comunidade. Ela não levava desaforo para casa, embora raramente chegasse às vias de fato. Andava sempre tão bem vestida e cheia de si, que as pessoas naturalmente abriam alas para ela passar. Em pouco tempo ela estaria muito bem acompanhada e frequentando os lugares da moda. Ela chegou a ser considerada uma celebridade em sua cidade. Sam nem ousava chegar perto dela pois era muita areia para seu caminhãozinho, mas o destino quis que fosse diferente.

Certo dia alguns encrenqueiros pegaram Sam após a escola e começaram a espancá-lo, mais uma vez. Isso até um disparo ser ouvido. Todos se afastaram para ver a valente Ruby Espinosa empunhando uma pistola e almejando neles.

"Está destravada rapazes. E eu sei usá-la." Foi tudo o que ela disse. Os valentões ainda hesitaram, mas como o tiro atraiu a atenção de populares, muita gente veio correndo na direção deles. Saíram em debandada, olhando de esguelha para a garota corajosa.

Ruby guardou a arma e aproximou-se de Sam caído ao chão. "Precisa de ajuda, bonitão?"

Sam ficou boquiaberto, mas graças aos céus conseguiu responder: "Não, senhora!" Ele se levantou, mas não conseguia se afastar. Queria sair correndo também, para se esconder de vergonha, mas um senso de gratidão o deixou de língua solta. "Estou em débito com a senhora."

"Senhora só no céu, rapaz. E eu estou aqui." Ruby respondeu desafiadora.

Sam ficou sem palavras, apenas aprisionado pelo fascínio que aquela bela criatura provocava em si. Felizmente uma pequena multidão se formou e começaram a inquiri-los sobre o acontecido. Ruby afastou-se sem ser assediada.

Um barulho de buzina tirou Sam de seu devaneio. Ele olhou no retrovisor e viu o caminhão da fazenda Singer atrás de seu carro. Eles pelo visto não conseguiam passar pelo carro de Sam. Este não teve alternativa a não ser pôr o carro em movimento e voltar para casa.

De volta ao lar, aparentemente Ruby havia sofrido um pequeno acidente, pois a terrina de sopa estava espatifada no chão, e havia comida salpicada em toda a cozinha. Ruby estava agachada, tentando limpar a sujeira, mas a barriga ficava no caminho. Ele correu para ela e levantou-a daquela posição.

"Deixe que eu limpo tudo, Ruby! Venha para a sala, descansar um pouco." Ele a guiou para o outro cômodo, a apoiando em seus ombros. Ela se deixou ser manobrada até o sofá, onde Sam afofou almofadas em suas costas e colocou uma mesinha para elevar seus pés. Ela o olhava com raiva, como se ele houvesse quebrado a terrina e isso o machucou um pouco mais. Ao deixá-la sozinha e dirigir-se à cozinha, ele a ouviu murmurar "eu atirei a maldita tigela ao chão". Sam não disse nada.

Ele começou a limpar metodicamente a bagunça de cacos de porcelana e comida do chão e móveis. Ruby tinha mais auto-controle do que Sam, mas enquanto ela apelava para a ignorância em raras ocasiões, ele se limitava a discutir sem parar. Na primeira gravidez ela ficara intratável, quebrando toda a louça tentando acertá-lo, aos gritos de que ele era o culpado por seu estado. Por isso demoraram tanto tempo para tentar engravidar do segundo filho.

Ele terminou de preparar o almoço, e a seguir foi até a horta para colher verduras. Não sem antes dar uma olhada na esposa que estava cochilando no sofá da sala. Ela era muito bonita assim vulnerável e em paz, mas às vezes Sam tinha medo dela. Após o nascimento de Lilith, várias pessoas vieram dizer-lhe que Ruby o estava traindo com outros homens. Sam apenas balançava a cabeça negativamente. Ele conhecia sua mulher. Se ela realmente quisesse deixá-lo ela o faria sem pestanejar. Se ela quisesse substituí-lo em sua cama, também o faria sem recorrer a subterfúgios. Talvez porque soubesse que Sam não reagiria, mas tentaria aceitar sua decisão.

Só estavam juntos, porque ela ainda não desistira do casamento deles. Sam não tinha dúvidas quanto a isso. Ruby continuava querendo-o em sua vida.