Peter Pan

Prólogo


Kim Ye Eun sabia que iria acontecer aquilo. Novamente. Ela não tinha dúvidas. Aquilo se iniciara alguns meses atrás, quando a menina entrou na puberdade, e com a morte da mãe, não havia quem pudesse impedi-lo. Yeeun não queria chorar, porém sentiu um nó ser formado na garganta ao escutar os passos do homem enquanto andava pela casa.

Ele falava consigo mesmo, socava paredes e a mesa da pequena casa, xingava todos os substantivos que lhe vinha da cabeça — a televisão, sua mãe, mãe de Yeeun, o patrão e Deus — mas, principalmente, a mãe da menina, pois culpava a mesma por ter sido covarde em tirar a própria vida ao se jogar do prédio de seu emprego. Pelo menos, Yeeun pensou ao encarar o feixe de luz que passava pela porta de seu quarto, sentada na cama e apertando o cobertor contra o queixo, ela não precisará enfrentá-lo. Quero ter sua mesma sorte.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O barulho do copo, que anteriormente estava cheio de alguma bebida alcóolica, ao ser jogado contra a parede fez um frêmito de medo suscitar do âmago mais profundo de Yeeun. Suas mãos começaram a tremer e ela as levou até o peito. Ela só queria dormir para não precisar encarar aquele homem, ser poupada do medo que a invadia.

Às vezes ele a encarava por um tempo incalculável, murmurando com ele mesmo dissabores sobre sua vida. Ia e vinha pelo cômodo, passando as mãos pela cabeça quase sem cabelo enquanto se debatia em sua consciência.

Ele entrou no quarto com o copo de cerveja na mão e depois o colocou no criado mudo, em que empurrou o pequeno relógio da menina com as mãos gordurosas. No instante seguinte, ele cantava uma música para crianças dormirem em uma voz serena enquanto repousava a mão em Yeeun. Ela conseguia sentir o color da mesma através dos lençóis que entrelaçavam seu corpo magro.

Yeeun agarrou o travesseiro para não gritar de desespero e desviou seu olhar para a janela aberta. Sua mãe dizia que o Peter Pan iria protege-la quando ela olhasse para a segunda estrela à direita. E era isso o que Yeeun fazia em momentos como aquele. As estrelas estavam brilhantes naquela noite. Yeeun se concentrou no brilho mágico delas e desejou voar na direção da segunda estrela.

No entanto uma figura comprida cortou o brilho enigmático daqueles pontos brancos no véu escuro. Dois olhos cintilaram na escuridão, tão afiados como o olhar de um gato, e Yeeun mirou aquela figura que parecia encará-la de volta. Parece um garoto, ela pensou ao sentir uma dor atingir seu corpo. Ele se esticou nas sombras, como se pegasse impulso no ar, e adentrou pela janela. Um movimento rápido e fluído.

— Que merda é essa?! — o homem pulou da cama. O garoto cruzou o quarto e chutou o tórax do homem, fazendo-o cambalear na direção do corredor.

O menino se movia com rapidez e, para captar os movimentos dele, Yeeun tinha de estreitar os olhos e se concentrar no andar leve dele. Ele atacava novamente o homem antes de ele se recuperar para revidar o jovem. O menino pulou sobre o homem e ambos caíram no corredor, longe do olhar de Yeeun.

Alguém bateu no chão com força suficiente para fazer a cama de Yeeun tremer. Um urro de dor atingiu os ouvidos dela em um som que lhe doeu a cabeça, ela levantou as mãos à orelha e tampou-a.

Yeeun mexeu cabeça na direção da janela, pensando se deveria correr até lá e gritar por ajuda, entretanto o menino apareceu, a porta desenhando sua silhueta sob a luz que tremeluzia. Antes que pudesse fazer qualquer movimento, o menino atravessou o quarto e parou diante da janela, de frente para Yeeun.

A luz da noite infiltrada pela janela causava um efeito de halo ao redor dos cabelos vermelhos do menino. Ele olhou para as estrelas e pareceu absorver a magia delas.

— Você vê a segunda estrela à direita? — ele perguntou em uma voz mansa e um sorriso brincou em seus lábios. Yeeun assentiu sem sair de sua cama, puxando o cobertor até o pescoço.

Os olhos de Yeeun brilhavam na penumbra. As lágrimas brotavam instantaneamente no canto deles. Ela tentou sorrir, porém sentiu-se trôpega quando se lembrou do acontecimento anterior.

— Você é o Peter Pan? — sua voz saiu trêmula e ela engoliu sua saliva, tentando evitar que seu tom saísse choroso. — Você é o Peter Pan que minha mãe dizia?

O garoto se aproximou dela aos passos cuidadosos e não parecia hesitar quando Yeeun levou as mãos ao rosto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Conhece a Terra do Nunca? — ele tocou nas mãos dela, abaixando-as. Yeeun negou. — Como não? Você sempre esteve olhando para ela!

— E onde é a Terra do Nunca?

— Segunda estrela à direita e continue a voar até o amanhecer!

Ele se afastou. Estava animado e um sorriso largo estava estampado em seu rosto enquanto rodopiava pelo quarto até chegar à janela. Levantou um de seus pés para se apoiar no peitoril da mesma. Estendeu a mão para Yeeun.

— Você quer ir à Terra do Nunca? Conhecer fadas e lutar contra os piratas? Tem o Capitão Gancho, ele é engraçado porque tem um gancho em vez da mão! — sua fala ganhava uma entonação mais alta à medida que contava sobre a ilha e seus encantos. — Poderemos ser crianças para sempre lá. O tempo nunca irá nos envelhecer!

Yeeun hesitou quando virou seu rosto na direção da porta. O que aconteceu com ele? Ela se perguntou quando deslizou para fora da cama. Ela esfregou os olhos e esboçou um sorriso ao andar na direção dele. Ela já começava a ficar animada.

— E como chegaremos à Terra do Nunca?

— Voando, é claro!

Segurou a mão dele com força quando ele pediu para Yeeun fechar os olhos e ela o obedeceu.

Seu corpo ficou leve. Escutou o tilintar de asas circulando sobre sua cabeça enquanto escutava a risada de Peter Pan soar perto de sua orelha. Seu corpo pareceu leve e sentiu uma lufada de ar açoitar seu rosto pálido.

Ela estava indo à Terra do Nunca.

Onde os sonhos nascem.

O tempo nunca é planejado.

E somente bastava pensar em coisas alegres.