Angels or demons

Visita ao inferno


Não foi difícil encontrar Eliel. Sem contar com Fontes, o mordomo, Eliel era a única empregada de Nickolas. Eu era a escrava, por isso, não me colocava na mesma categoria que eles. Aparentemente, Eliel fazia de tudo um pouco: limpava a casa, lavava a roupa, cuidava do patrão. Eu não queria saber o que queria ela dizer com “cuidar de Nickolas”, a minha imaginação demasiado fértil mas ingênua já começara a fazer filmes, do tipo de sabia terem sido banidos pelos anjos, na nova era. Provavelmente, Nickolas teria alguns.

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Apesar do complexo de superioridade típico de anjos e demônios, Eliel era minimamente prestável.

— Você deve ser a humana do Nickolas – dissera, arrancando a roupa do demônio de mim. Perguntei a mim própria o porquê de eu o ter de tratar por “senhor” ou “guardião” quando aquela morena pequena e roliça podia tratá-lo pelo nome. Resposta fácil: ela não era uma escrava humana.

Depois de Eliel me mostrar os cantos da casa e de eu fazer algo para comer, me levou à biblioteca e foi aí que o meu coração caiu. Com vários andares de altura e escadas por toda a parte, livros ocupavam todas as paredes visíveis e, apostava, as invisíveis também. Um odor familiar estava impregnado no ar.

Me aproximei de uma das estantes e passei as pontas dos dedos pelas lombadas grossas dos livros. Escolhi um, à sorte, com uma capa vermelha, e abri-o. Oh, sim, conhecia aquele cheiro, era igual ao dos livros antigos queAnthonny escondia. Os que mantinha à vista eram pálidos e aborrecidos. Aqueles possuíam páginas amarelas e letras grossas que eu tentava ler mas não conseguia.

— Esse livro está em português, uma das línguas da era antiga – explicou Eliel. – A maior parte está escrita em línguas mortas, como essa, inglês, italiano.

Torci o nariz. Só falava latim e aramaico.

— Você entende? – questionei.

Ela assentiu.

— Pode me ensinar?

— Você é uma escrava. Só precisa de saber o suficiente para comunicar com o seu senhor e, adivinha, eu entendo você perfeitamente – disse a voz rouca de Nickolas, entrando na biblioteca.

Mesmo ferida pelo comentário, não consegui não apreciar a sua passada insolente e o efeito imediato que teve em mim.

— Vá se vestir – ordenou, num tom cortante. – Vai fazer a sua primeira visita ao Inferno.

Procurei sinais de que brincava. Fiz uma análise rápida à sua expressão para procurar mentira. Nada. Não encontrei nada. Ele queria MESMO me levar para o Inferno.

— Nickolas, não acha muito cedo para isso? – interpelou Eliel.

— Já se tornaram amigas? – inquiriu ele, nos olhando com desconfiança. – Foi fácil. E não, não acho que seja muito cedo. Preciso de torturar aqueles filhos da puta e tenho uma nova arma. Vou usá-la. Não que deva explicações a você, Eliel – olhou para a demônio com irritação e força suficiente para a fazer cambalear. Era bom saber que não me atingia apenas a mim. – Se vista – repetiu, para mim.

— O quê? – perguntei, com voz fraca.

— Está tudo no seu quarto.

Subi as escadas, até aos meus aposentos, o mais devagar que pude, ao mesmo tempo que delineava na minha cabeça uma estratégia de fuga minimamente eficaz. O inferno era interditado a humanos, vivos. Só havia uma maneira de eu lá ir.

Ele me ia matar. Logo no primeiro dia, me ia matar, sem dar a Anthonny qualquer hipótese de me resgatar. E, assim, minha vida ia acabar. Talvez se alimentasse de mim, antes. Talvez me torturasse, talvez me usasse. Provavelmente, me aguentaria viva por dias e dias, aumentando o meu sofrimento e o seu prazer, a cada toque. Me aceitar apenas para ter uma diversão. Recentemente, pensara que anjos e demônios estavam ao mesmo nível. Errado. Profundamente errado. Os demônios, aquele demônio em particular, era mil vezes pior.

Entrei no quarto para encontrar um vestido negro espalhado em cima da cama e uns sapatos vermelhos no chão. Não olhei muito para nada e comecei a me vestir, ainda tentando pensar numa maneira de fugir, mas minhas opções eram poucas. Ele era mais forte, mais rápido, mais esperto. Fiz deslizar o meu vestido azul pela cabeça e coloquei o outro. O reflexo que apareceu no espelho me assustou. Aquele pedaço de tecido preto não possuía quaisquer alças, era extremamente curto, extremamente provocante, extremamente exuberante. Não era um vestido para mim. Entrei nos sapatos só para ver o efeito. Custou um pouco me adaptar à nova altura mas acabei por conseguir. Nunca usaria aquilo. As minhas pernas pareciam demasiado longas e estavam demasiado descobertas. Havia muita pele à mostra. Não. Não. Se era para morrer, ao menos morreria com algo decente vestido.

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— Nem pense em tirar isso.

Mesmo sem olhar para a porta, soube quem era. As minhas pernas começaram fraquejando, meu coração batendo depressa, meu corpo suando, o calor a se apoderar de mim.

Ele estava a me observar. Fixamente.

Olhei para porta. O demônio ocupava toda a moldura, com o ombro encostado à ombreira, numa posição confortável e, claro, os seus olhos se perdiam e em toda a minha pele exposta.

— Não me sinto confortável com isto – repliquei, nervosa.

— Nem é para ficar. É para ficares apetecível. Os anjos têm gostos horríveis quando vestem mulheres. Seriam desculpados se, ao menos, as soubessem despir, mas não é o caso – se desencostou e virou de costas. – Vamos.

— Onde? – perguntei, sem me mover.

— Você é surda? Para o inferno.

— Você vai me matar?

Ele estancou e se voltou, lentamente, para observar a minha expressão. Tinha uma sobrancelha levantada numa interrogação.

— Você ouve alguma coisa do que falo? Disse que você era a minha nova arma de tortura. Não se destroem as nossas armas.

Arma? A sua explicação resolveu o puzzle da minha mente.

— Vai me usar para torturar as almas dos humanos, não vai?

Abanou a cabeça com descrença.

— Definitivamente, não ouve nada do que digo. Vou lhe dar a mesma lengalenga de há pouco. Vou e não há nada que possa fazer para mudá-lo.

— Mas eu não quero.

— Aqui não tem querer nada, humanazinha. Quando é que vai perceber isso?

Sem qualquer cerimônia, pegou no meu braço e me puxou para fora do quarto. Se seguiram escadas e mais escadas, até que chegamos ao que deveria ser a cave. No entanto, ao abrir a porta, não encontramos um quarto escuro de arrumação mas sim noite, ar livre.

Antes de passarmos pela porta, Nickolas se virou para mim e arrancou o colar com o símbolo de Anthonny do meu pescoço.

— Já não vai precisar mais disto – tirou algo do bolso e, no momento seguinte, um anel de aspeto antigo ocupava lugar no meu dedo.

— O que é isto?

— Não esperava que não marcasse você como minha, pois não? – para minha surpresa, colocou o braço à volta dos meus ombros e me puxou para fora de casa. – Tem sorte de não estar com vontade de usar ferro e fogo para isso – sussurrou no meu ouvido, de um modo tão cru e letal que tornava as suas palavras sensuais. – Bem-vinda ao inferno.

Eu não conseguia ver praticamente nada do que se passava à nossa volta, estava tudo demasiado escuro, contudo, conseguia sentir presenças, passando por nós, e ouvi vários cumprimentos a Nickolas, nenhum deles respondido, antes de entrarmos num edifício cujo exterior era impossível de descrever devido à escuridão. Lá dentro, existia alguma luminosidade, muito fusca e vermelha. Tudo era vermelho: as paredes, as escadas que subimos, o corredor que percorremos, o quarto para onde entramos. Era em tudo igual ao meu quarto, em casa deNickolas, contudo, parecia que via tudo através de um filtro encarnado. A cama estava lá, a sua presença mais evidente do que nos meus aposentos, criando um ambiente luxurioso. Aquele devia ser o segundo círculo. O Vale dos Ventos. A própria luxúria. O local de trabalho de Nickolas.

— Vou explicar muito direitinho o que se vai passar aqui – disse ele, se virando para mim. Os seus olhos pareciam completamente negros. – Vão entrar por aquela porta, pessoas, almas de humanos que, durante a vida, cometeram o pecado da carne. Penso que sabe o que isso significa. Sabe?

— Sim, Guardião – engoli em seco.

— Ótimo – fez um sorriso de lado. – A minha função como guardião da luxúria é fazê-los relembrar o porquê de não terem ido para o paraíso. Você me vai ajudar. Vai deitar daquela cama e tentar não parecer uma criança. Eles vão tentar tocar em você mas eu não vou deixar – suavemente, passou as pontas dos dedos pela minha face, descendo pelo meu pescoço, numa carícia diabólica e demasiado quente. – Só eu é que vou tocar em você. Eles vão ver. Vão querer mas não vão ter. Vão ter de assistir a tudo o que já não poderão fazer. Vão desejar você mas nada mais do que isso porque pecaram e merecem sofrer por isso. Entende,Gabriella?

Queria falar. Queria protestar mas o seu toque, agora na minha clavícula, tornava impossível a qualquer som coerente sair da minha boca. Apenas assenti.

— Linda menina. Agora faça o que mandei.

Comandada por uma qualquer força exterior a mim, me vi subir na cama e deitar completamente, com sapatos e tudo. Algo me movia, algo desconhecido. Fiz os meus cabelos abrirem em leque e fechei os olhos por um momento.

— Isso mesmo. Perfeito – ouvi ele dizer, antes de se afastar para abrir a porta. – O que temos aqui? Façam o favor de entrar, meus amigos.

Ergui a cabeça para conseguir ver. Era um grupo de pessoas. Umas quatro: três homens e uma mulher. Todos com aspeto gasto e ordinário. Senti nojo de estar ali mas bastou Nickolas olhar para mim para mudar isso.

— E temos uma senhora – ele pegou na mão da mulher e a beijou, olhando-a nos olhos. – É raro – se endireitou e caminhou até à cama. – Sabem porque estão aqui?

Eles me olharam com desejo, todos eles, até a mulher.

— Estão aqui porque não conseguiram resistir a uma coisinha linda como esta – Nickolas continuou e se inclinou para mim, para me fazer uma carícia no cabelo. – Consigo vos compreender, meus caros, claro que consigo. Se fosse humano, também acabaria no lugar em que vocês estão, mas não sou e sabem qual é a vantagem disso? – se sentou, mesmo a meu lado, recostado no espaldar da cama e ligeiramente virado para mim. Não esperou por uma resposta, simplesmente, levantou a mão e a passou em minha perna, enviando um arrepio por todo o meu corpo. – Eu posso fazer tudo que vos condenou, vezes sem conta, para toda a eternidade – senti-o passar o nariz pela curva do meu pescoço e tive de morder o lábio para não gemer. – E vocês? O que vos acontece? – deu uma gargalhada baixa, mesmo junto ao meu ouvido. – Vocês estão destinados a passar o resto dos tempos frustrados. Que vos parece?

A mulher deu um passo em frente, tentando se aproximar mas, com uma rapidez anormal, Nickolas abriu as asas e lhe apontou uma, proibindo a sua entrada na cama.

— Na, na. Aqui, você não toca – advertiu. – Nenhum de vocês toca.

Para meu espanto, a mulher retrocedeu e se virou para o homem mais próximo, começando a beijá-lo com paixão, num frenesim caótico, mas curto. Parecendo confusos e deprimidos, ambos se afastaram um do outro, como se não pudessem acreditar no que tinha acabado de se passar.

Uma nova gargalhada saiu da garganta de Nickolas.

— Desculpem. Ainda ninguém vos disse que, como almas no inferno, perderam qualquer sensibilidade? – o demônio passou a mão no meu braço, lentamente. – Podem tocar uns nos outros mas não podem sentir. Podem ter desejos mas não os podem satisfazer. Nunca – com uma ternura impressionante, Nickolas tocou minha face e virou-a para si.

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Estava tão perto que praticamente não se moveu quando tocou nos meus lábios. Tocar? Ele não apenas tocou. Provou, testou, saboreou. Afundou a língua na minha boca de um modo que eu não sabia ser possível. Com Anthonny não havia sido assim. Deslizou a mão para a minha cintura e me apertou mais contra ele, ao mesmo tempo que mordiscava o meu lábio inferior e o puxava, ligeiramente. Dançava na minha boca de um modo sensual e diabólico e todo o meu corpo parecia responder a isso. Quando reparei, a minha mão estava nos seus cabelos, segurando-o mais a mim, para que não parasse. Ele explorava e exigia que eu lhe desse tudo. Não foi nada doce ou romântico. Foi explosivo. As explosões que haviam faltado quando Anthonny me beijara estavam ali todas e se faziam sentir, uma por uma, sensação por sensação. Era viciante.

E me pareceu curto demais. De repente, Nickolas saltou da cama, com as asas tão apertas como naquela primeira vez, e empurrava um dos homens contra o alicerce da cama. Olhei à minha volta. As paredes haviam desaparecido. O infinito vermelho se espalhava em todas as direções e milhares de pessoas tinham os seus olhares fixos em mim, como se não existisse mais nada. Eu era o seu castigo. Eu estava ali para as fazer sofrer. Eu.

— Me parece que você não entendeu bem a ideia – olhei para o demônio e para o homem. A alma estava de costas para mim, então não o conseguia ver mas Nickolas estava de frente e sua expressão era ameaçadora. Seu olhar estava a ferver, cruel e vingativo. Seus lábios estavam mais avermelhados do que o normal, o que apenas o tornava ainda mais sinistro. Uma das suas mãos estava em volta do pescoço do homem, o levantando do chão, como se não pesasse mais do que uma pena, o que, talvez, fosse verdade. – Não tocar. Não pode tocar, não consegue sentir. Sabe o que acontece a quem desobedece às minhas ordens, humano imundo? Sabe? – baixou o homem, apenas para ficar ao mesmo nível que ele, e fixou os olhos nos dele. Em pouco tempo, este convulsionava. Nickolas o deixou cair, apenas para o ele se enrolar no chão e começar a gritar como eu nunca tinha visto alguém gritar. – Que isto sirva de lição para todos vocês – o demônio gritou e eu tive a certeza que todos os presentes daquele círculo o ouviram.

Tal como tinham desaparecido, as paredes voltaram, desta vez, apenas Nickolas e eu dentro delas. Ele se sentou, na cama, afastado de mim, e expirou.

— O que é que você lhe fizeste? – perguntei, me encostando o máximo que podia contra o espaldar da cama, longe dele.

Ele expirou mais uma vez, antes de responder.

— Há sempre um engraçadinho que acha que estou a mentir e quer tentar. Castiguei-o. Para todo o sempre – disse ele, sem qualquer emoção. – Eu lhe dei visões, de toda a sua família a ser torturada, de um modo muito mais físico do que eu faço.

O meu coração passou uma batida em falso.

— Por quê? – inquiri, sem conseguir compreender.

— Para servir de exemplo – afirmou, olhando para mim.

— Estar aqui já não é castigo suficiente?

— Não é mau de todo. Eles pecaram. Merecem ser castigados com tudo o que temos para lhes dar. Se nem os anjos quiseram a sua companhia, porque haveríamos nós?

Ele era mau. Cruel. Mais do que diabólico. Frio e insensível ao sofrimento que causava. Escuro e deturpado. Onde é que me tinham metido?

— Não quero voltar mais aqui – declarei, baixinho.

— Não tem escolha. Vai voltar, sempre que eu o desejar – se levantou e esticou a mão para mim. Ponderei em não a aceitar, começava a sentir medo dele, mas acabei por ceder. – E eu sei que você gostou. Nunca tinha sido beijada, humanazinha?

Senti-me corar, enquanto os seus lábios curvavam num sorriso torto.

— É claro que já! – respondi, com falsa confiança.

— Por um anjo não conta, eles não sabem beijar.

— Você já foi um anjo.

Ele encolheu os ombros.

— E depois disso tive muito tempo para praticar. Vamos considerar este o seu primeiro beijo, humanazinha, porque, vamos ser francos, aquele Domínio que era o seu dono não percebe nada do assunto.

— Como é que…?

— Como é que sei? Instinto, humanazinha. E isto é que é um beijo a sério – murmurou, junto ao meu ouvido, antes de se afastar repentinamente e de me puxar porta fora, novamente para casa.