Teus olhos rubros

Ato III (final)


Kurapika encontrou a morte aos vinte e cinco anos. Ela o cumprimentara na floresta, a mesma em que ele conhecera Izunabi. Em seus últimos segundos de luta, ele finalmente viu. Estava mesmo se acorrentando ao inferno. E agora suas correntes puxavam-no, arrastavam-no até as chamas impiedosas.

Ele morreu antes de cair no chão.

O inimigo sorriu. Maldito aquele que ousara roubar seus preciosos olhos escarlates. Por um breve instante, pensou em tomar para si os orbes que flamejavam no rosto do Kuruta, mas uma ordem antiga, de uma moral incompatível com seu caráter, disse-lhe que não se deveria violar um cadáver. Ele apenas deu as costas e seguiu caminho.

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Ignorou Tsubasa quando passou por ela. A garota chorava em silêncio. Vira a batalha de longe, mas não se atrevera a interferir. O oponente era forte demais. Não era uma Aranha, mas assustava como se fosse. Um ser tão brutal e perverso só poderia ter saído do submundo, de onde ela lutara com todas as forças para escapar.

Tsubasa deu alguns passos tímidos em direção ao corpo, mas foi interrompida pelo som. Temerosa, atirou-se nas sombras das árvores e observou enquanto o homem arrastava-se até Kurapika, arfando de surpresa. Ela não aguentou olhar. Virou-lhe as costas e desatou em fuga, correu até perder as forças à beira do rio.

Ela não sabia como contar a Leorio. Quão intensa poderia ser a dor que ele sentiria? E se ele recorresse ao suicídio como Tsubasa tentara fazer dois anos atrás? Mas, se ela não contasse, ele passaria uma vida esperando pelo Kuruta? Esperando pelo retorno que nunca aconteceria? Tsubasa esfregou o rosto, tentando se livrar das lágrimas. Uma única palavra veio à sua mente. Uma palavra perversa. A fonte de muitos dos maiores sofrimentos humanos.

Esperança.

Leorio nunca soube o que aconteceu a Kurapika. Seguiu sua vida mansamente, fazendo novas amizades e conhecendo novos mundos. Encantou-se por uma garota de olhos quase tão profundos quanto os do Kuruta. Os dois gostavam de passear na praia. Ela andava descalça pela areia, os cabelos negros balançando livres ao sabor da brisa. Dizia que amava Leorio, e ele dizia que a amava.

Não se casaram. Ela desapareceu antes disso, perdendo-se no vento com a mesma magia com que nele se materializara naquela tarde em que Leorio caminhava sozinho pelo cemitério da cidade. Não houve mágoas. Ela apenas sumiu. Sua ausência deu lugar às lembranças. Deu lugar a um sentimento que destruía por dentro. Um sentimento belo e ao mesmo tempo perverso.

Leorio nunca soube.

Mesmo assim, ele nunca deixou de esperar.

Em um passado distante, ele dissera aquelas palavras ao garoto. Eram palavras simples, que mal formavam uma frase que tivesse sentido. A criança, que já não era tão criança assim com seus quatorze anos, estava concentrada na tarefa de materializar pequenos cristais na taça de água. Kurapika provavelmente estava pensando no que gostaria de fazer com sua habilidade. Ele estava frustrado por não ser um Intensificador, mas não desistiria tão cedo.

Izunabi deu alguns passos para frente, imaginando que tipo de discurso faria desta vez. Não era de seu feitio falar demais. Contudo, o garoto tinha o dom de lhe arrancar sermões nos momentos mais improváveis. O mestre estava a ponto de chamar a atenção de seu discípulo quando os olhos o encontraram. Estavam escarlates.

— Quando meus olhos ficam assim, eu me torno um Especialista — anunciou Kurapika sem rodeios. — O que posso fazer com isso?

O homem sentou-se a seu lado, fitando seu rosto em silêncio. A surpresa conteve a reação de Kurapika quando a mão tocou seu rosto.

— Teus olhos rubros...

E só. Foram essas as palavras de Izunabi. Ele se levantou de repente. Pela primeira vez, parecia genuinamente constrangido. Afastou-se sem nada mais dizer, deixando o garoto sozinho com suas dúvidas. Kurapika tocou sua face com a ponta dos dedos. Talvez fosse só impressão sua, mas, quando sentiu aquele toque cálido, viu em seu mestre a figura de um pai.

Izunabi agora segurava o discípulo em seus braços. Ele o encontrara alguns dias antes e até iniciara uma conversa. Ficara feliz ao ouvir sobre Leorio. Uma alegria estranha preenchera-o quando soube que Kurapika havia encontrado alguém que pudesse amar. Daquela vez, porém, resistiu à tentação de tocar seus cabelos. O Kuruta não era seu filho, e ele não era seu pai.

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Nada disso importava mais. A dor que Izunabi sentia não era a de um mestre. Ele acolhera o menino por uma razão que não compreendia, mas o que viera depois lhe era inteligível. Ele amava Kurapika. Desejava nunca tê-lo deixado partir. Mas agora não tinha mais escolha. O Kuruta não pertencia mais a este mundo.

Enquanto as lágrimas desciam por seu rosto, Izunabi lançou um olhar derradeiro àqueles olhos que conhecia tão bem. Os olhos que tantas vezes o encararam. Os olhos que tantas vezes exibiram ódio, raiva e tristeza. Eles pareciam vazios agora. Apesar de toda a beleza, pareciam vazios, pois não podiam mais refletir a alma vívida que o garoto tivera. Izunabi suspirou antes de abaixar o rosto e fechar aquelas pálpebras. A imagem não o abandonou. As faces pálidas. Os olhos incandescentes.

Teus olhos rubros.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.