Samurai NOT

Capítulo 28


26… 27… 38… 39… Ei perdeu a conta de quantas vezes batera no tronco com o machado.

Após tentar se lembrar por um instante, desistiu de contar. Então, em algum número desconhecido, a garota acertara o bastante e a árvore caiu com o som alto e seco.

Os braços dela latejavam e as ataduras na mãos estavam vermelhas de sangue da ferida. Ei ignorou a dor, limpou o cabo e virou-se para a próxima árvore, batendo em outro tronco, agora sem se dar ao trabalho de contar.

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A garota não fazia ideia de quanta lenha eles precisariam, mas sabia que tinha cortado mais que o suficiente. Ainda assim, aquilo não impediu Ei de acertar a próxima árvore com o machado várias e várias vezes. A distração, e até a dor, eram bem-vindas. Ela não queria ficar parada por nem um instante. Sempre que ficava, a dor em seu coração a dominava.

Após terem chorado juntos, o sacerdote a mandou descansar, mas Ei não conseguia. Ela não podia ficar dentro da templo. Precisava fazer algo, então saiu. A garota vagou sem rumo, acompanhada pela dor que atravessava seu corpo como uma espada.

Quando Ei voltou a si, percebeu que estava na clareira onde a luta acontecera. Sua respiração ficou lenta e profunda enquanto olhava para a trilha feita pela besta. No final da trilha, ela viu o grande cadáver, sem ser maculado pela natureza ou pelo povo da vila.

Antes que percebesse, seus pés a trouxeram para perto da besta. De longe, ele aparentava ser grande, mas, de perto, era monstruoso. Ninguém em sã consciência lutaria contra algo assim… É loucura, sabia ela. Mestre é um idiota… mestre… por que você tinha que lutar contra essa coisa…?

Ei olhou para o céu acinzentado e chorou.

Ela não fazia ideia de quanto tempo ficou lá chorando, mas, quando as lágrimas secaram, ela se forçou a olhar para a fera de novo. Ei não sabia o motivo, mas ela queria ver o Oni.

O corpo estava coberto com centenas de pequenas feridas. Cada uma delas era superficial e mal causou qualquer dano. Mas eram prova de que seu mestre era um espadachim incrível e sua lâmina podia cortar qualquer coisa.

A espada dele… Ela só se lembrou da espada de seu mestre naquela hora.

Os restos estavam no mesmo lugar, perfurando a nuca do demônio. Ei sentou perante a cabeça, colocou ambos os pés no rosto do Oni e puxou o cabo com toda sua força. A arma não se mexeu.

Ela fechou os olhos, se concentrou e puxou. Nada. Tentou de novo, e de novo, até que suas mãos ficassem só carne viva. Mas a lâmina não se moveu.

Ei não desistiu. A espada era apenas um resquício da grande arma que um dia fora. Um resquício que não servia para lutar ou tinha qualquer valor. Ainda assim, pertencera a dois grandes espadachins.

Com uma pedra, ela circulou a besta e atingiu a ponta da lâmina quebrada. Acertando algumas vezes, Ei sentiu a arma se mexendo um pouco. Foi bem pouco, mas aquilo a fez atingir com mais força e velocidade. Até que começou a atingir tanto a arma quanto a cabeça do demônio com a pedra cheia de sangue negro.

Graças a suas mãos machucadas, a pedra escapou por seus dedos e ela bateu com a mão na ponta da lâmina. Embora fosse uma ferida profunda, Ei não gritou. Não doeu tanto quanto deveria.

Ela desenrolou os curativos da perna e cobriu a ferida. Então pegou a pedra e bateu na arma de novo. Ela só parou quando a espada estava enterrada na nuca do Oni.

Jogando a pedra de lado, Ei deu a volta na besta e sentou na frente de seu rosto. Apesar das feridas, ela puxou a espada de novo.

A garota não fazia ideia de quanto tempo levou, mas finalmente conseguiu libertar a arma.

A espada, que já fora tão bela e brilhante, agora estava destruída e feia.

Ainda assim, Ei podia sentir a alma de seu mestre ao abraçar a arma quebrada.

Já era de noite quando voltou. O sacerdote nada perguntou ou disse, muito menos quando viu a nova bainha em sua cintura. Ele apenas a abraçou. Porém, ao perceber o estado das mãos delas, ele a levou para dentro na mesma hora.

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Ei sentou no canto, cabisbaixa, enquanto o sacerdote cuidava de seus ferimentos. Ainda que não tivesse percebido, não foram apenas suas mãos; os pés sangravam também. A garota perambulara pela floretas de pés descalços.

Mas aquela dor não era nada comparada ao que ela sentia quando viu o casaco de peles cobrindo Tadayoshi. Ainda assim, ela só pensava em como agradecer ao sacerdote mentalmente…

— Eiko-chan… — Uma voz a trouxe de volta à realidade. Ela precisou de um tempo para parar de cortar a árvore e se virar para Ryuu-sensei. — Já temos o bastante.

Só agora que Ei percebera ter cortado árvores o bastante para fazer outra pequena clareira. Assentindo, sem realmente pensar muito, ela cortou os troncos em pedaços menores com a ajuda do sacerdote. Apesar de querer fazer tudo sozinha, Ryuu-sensei insistiu em ajudá-la. Só então que ela se lembrou de que não era a única lidando com o pesar.

Pelas histórias que Tadayoshi contara, eles se encontraram graças a seus respectivos mestres. Ryuu-sensei era o discípulo de algum sacerdote em um templo distante e, em uma das visitas de Yasuhiro-sama para ver um velho amigo, o espadachim e sacerdote se tornaram amigos.

Eles se conhecem… se conheciam por muito tempo… muito mais do que eu, pensou a discípula enquanto carregaram tudo para a pilha de lenha na frente da templo.

Ryuu-sensei organizou os pedaços menores de lenha por um tempo enquanto Ei colocava as folhas secas ao redor do corpo de Tadayoshi.

Foi sugestão do sacerdote queimar o corpo do espadachim.

No começo, Ei não quis. Mas a ideia de enterrar seu mestre naquela montanha fazia seu estômago queimar. Esta montanha não merece ser o túmulo do meu mestre…

Então, ela acatou a sugestão de Ryuu-sensei.

Ei queria queimar o templo também, mas o sacerdote foi veementemente contra. Segundo ele, o povo da vila precisaria de um local para realizar seus rituais, ainda que não fosse um templo de verdade.

Ela não ligava, mas ele disse que Tadayoshi não faria algo assim. A discípula não tinha tanta certeza disso, mas ficou quieta. Embora soubesse muito sobre seu mestre, havia muitas vezes em que ele a surpreendeu e até parecia outra pessoa aos olhos da garota.

Eu nunca soube disso também, pensou Ei, apertando os pequenos livros dentro de suas roupas. Um ela vira muitas vezes. Tadayoshi usou o diário de Yasuhiro-sama para ensiná-la a ler. Ela até o folheou algumas vezes, mas nunca se interessou.

Ela pensava no samurai como uma lenda, igual a todos. Ler sobre ele poderia acabar com o ideal que ele representava. Tadayoshi sabia disso e ria de tudo, dizendo que o velhote era que nem as lendas, mas o povo embelezara demais os feitos dele.

Mas o outro livro… Todo esse tempo ao lado do mestre e Ei jamais vira aquele livro. Após hesitar, o sacerdote a entregou antes de irem dormir. Sem interesse, a garota folheou e leu as primeiras páginas. Ao perceber o que era, ela fechou o livro, as lágrimas escorreram pelo seu rosto.

A discípula reconheceu a letra horrível de seu mestre. Ei não conseguiu dormir e ficou a noite toda segurando o livro, pensando se queria ler ou não. No fim, ela decidiu que não estava pronta e apenas observou o sol nascer enquanto abraçava o diário.

— Kaguya-sama! — gritou Ryuu-sensei do nada. O sacerdote colocou o resto da lenha em volta de Tadayoshi e se virou.

Ei virou lentamente. Não sentira nenhuma das quatro pessoas caminharem até eles. Eles são bons em esconder a presença ou eu que estou distraída demais… Encarando os recém-chegados, a espadachim considerou que era a segunda hipótese.

Os três homens não tinham nada que os destacasse. À primeira vista, a única coisa que Ei notou de diferente neles foi a idade de cada um. Um era o mais velho do grupo, e os outros dois tinham quase a idade do Ryuu-sensei. Também são sacerdotes, entendeu ela ao ver que usavam as mesmas roupas que seu professor.

Após ver os homens, Ei se focou na mulher do grupo. A espadachim sabia que ela era totalmente diferente do resto. Ela é forte… Kaguya, certo? O nome era familiar, mas Ei não conseguia lembrar de ter encontrado alguém como ela.

A mulher era alta e, apesar das roupas pesadas, Ei sabia que ela era magra. Seu rosto tinha traços delicados e femininos, mas, ao mesmo tempo, tinha algo de feroz nele. É o rosto de quem não se deve provocar.

Por mais que vestisse roupas de simples, o belo cabelo negro amarrado ao lado com um pente elegante dizia à garota que a sacerdotisa era uma nobre. Mas eu nunca conheci uma nobre, pensou Ei, ainda tentando entender de onde se lembrava do nome.

— O que você está fazendo aqui, minha senhora? — perguntou Ryuu-sensei, ficando de joelhos e abaixando a cabeça.

— Um de meus amigos de infância morreu. É claro que eu viria — disse ela em voz baixa.

A mulher caminhou até o sacerdote, colocou uma mão em seu ombro e o forçou a se levantar. Quando eles olharam um para o outro, ela o abraçou e ambos choraram. Demorou um pouco para Kaguya soltar o homem.

— Tai gostaria de ter vindo também, mas ele recebeu uma mensagem urgente da capital. — Ela estalou a língua e pressionou os lábios.

Ah… Ela é a superior do Ryuu-sensei ou algo assim… Ei finalmente se lembrou de onde tinha escutado aquele nome. O único lugar que sabia que as pessoas odiavam tanto assim a capital era o templo em que a espadachim conheceu Ryuu-sensei. Foi quando Tadayoshi decidiu parar de perseguir boatos por um tempo.

Kaguya… Ei jamais a conhecera em pessoa, mas o Ryuu-sensei mencionou o nome dela muitas vezes durante as aulas. O sacerdote a admirava e sempre falava da sacerdotisa, , a Miko, do templo dele com grande respeito. Ela e o marido, Tai. Desde que a jovem Ei se lembrava, eles eram ambos conhecidos como Sousei, as estrelas gêmeas, do leste.

— Onde está o Oni? — perguntou a mulher em voz baixa.

A menção do demônio trouxe a atenção de Ei de volta à realidade. A garota apertou o terceiro cabo em sua cintura com tanta força que a ferida latejou.

Ryuu-sensei olhou de Kaguya para os outros sacerdotes, então seus olhos pousaram na espadachim.

— Eiko-chan, poderia levar a Kaguya-sama até os restos, por favor?

A garota assentiu sem olhar para a mulher. Assim que terminou de colocar as folhas secas, o sacerdote tirou uma pequena caixa de madeira de suas roupas com quatro pedaços de papel em cada lado. Os papéis tinham símbolos escritos em tinta preta.

Um dos sacerdotes mais jovens pegou a caixa e a colocou na bolsa com muito cuidado. Depois começou a fazer perguntas para o Ryuu-sensei.

Ei mal prestou atenção. Sua mente não saía da caixa, que agora estava fora de vista. Ela a viu antes, mas, naquela hora, não teve interesse.

O sacerdote só deixou o templo e o lado de seus amigos uma vez. E voltou o mais rápido que podia, sem ar e suando, agarrando a caixa com as duas mãos. Embora Ei não tivesse perguntado, ele disse a ela que era um amuleto que seu antigo líder usava.

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Ei sabia que era mais do que aquilo. O sacerdote odiava violência e morte, mas, ainda assim, lutou contra essa fraqueza e foi até aquele lugar para pegar um simples amuleto.

— Eu conheci Tadayoshi quando ele veio ao templo com o Yasuhiro-sama — a sacerdotisa começou a falar quando estavam a metade do caminho até o demônio, sua voz distante. Ei precisava forçar os ouvidos para escutar, embora a mulher estivesse ao lado dela. — O samurai sempre reclamou para meu mestre sobre seu discípulo sem disciplina e quão trabalhoso era treiná-lo.

Ela também conhecia o Tadayoshi, pensou Ei. Agora que prestara mais atenção, a garota percebeu que a voz da mulher não estava distante. E sim nostálgica. Quando ela olhou para cima, os olhos da sacerdotisa estavam úmidos.

— Como… como ele era…? — Ei ficou surpresa com a própria pergunta. Porém agora entendia o quão pouco sabia do próprio mestre. Não é só o Ryuu-sensei que lamenta

Kaguya mostrou um sorriso gentil.

— Apesar de todas as reclamações de Yasuhiro-sama, Tadayoshi parecia ser uma criança tímida.

— Tímida…? — Ei jamais associara a palavra com seu mestre. A ideia era tão estranha que ela acabou rindo um pouco.

— É verdade. Ele não estava acostumado a ficar com crianças da mesma idade. Convidamos para brincar conosco, mas ele ficou ao lado de Yasuhiro-sama o tempo todo. Pensamos que ele era só um discípulo sério demais…

— Não se parece em nada com o Tadayoshi… — Apesar de saber o quando o espadachim admirava o samurai, era difícil que Ei imaginasse seu mestre sendo um discípulo bom o suficiente para ficar ao lado do mestre o tempo todo.

— Mas, então, enquanto o samurai falava com nosso mestre… — Kaguya riu um pouco. — Quando a conversa acabou, Tadayoshi atacou Yasuhiro-sama com a espada de madeira.

Ei não pôde conter as risadas. Apesar da forma como o mestre falava de seu próprio mestre, ela podia imaginar aquilo acontecendo sem qualquer dificuldade.

— O que aconteceu depois?

— Yasuhiro-sama desviou o ataque ainda sentado. Então ele agarrou o braço de Tadayoshi e o jogou pela porta. Foi divertido ver o Tadayoshi rolar pelo quintal e se levantar gritando.

Ei riu. Ela riu pela primeira vez em dias enquanto imaginava a cena.

— Eu queria ter visto…

— Infelizmente, nem tudo foi diversão e risos. Após isso, Tai acabou gostando de Tadayoshi e eles se tornaram amigos. Naquela noite, os dois roubaram o saquê cerimonial e beberam para celebrar sua recém-formada amizade. — Kaguya suspirou e balançou a cabeça. — Jamais vi nosso mestre tão bravo. Yasuhiro-sama só riu e os fez ficarem correndo em volta do templo como punição. Todavia, ele também os encorajou o mais alto que podia com os tambores.

O mestre dela não era exatamente fraco com bebida, mas nas poucas vezes em que bebera, ele exagerou e não pôde fazer nada no dia seguinte. Minha cabeça tá explodindo, costumava dizer na maioria das vezes. Ei conseguiu imaginar facilmente uma versão mais nova de seu mestre tentando correr em volta do templo após uma noite bebendo álcool com o som de tambores explodindo dentro de sua cabeça.

— Após aquele dia, sempre que o Yasuhiro-sama trazia seu discípulo, o grão-sacerdote guardava todo o saquê cerimonial em um quarto e o trancava — disse Kaguya, com saudades na voz. — Com o tempo, o Tadayoshi ficou amigo de todas as crianças no templo também. Mas ele era um péssimo perdedor. Não gostava de se gabar da sua força, mesmo sendo discípulo do Yasuhiro-sama. Porém, sempre que o Tai derrotava ele, arrumava uma desculpa. A pior foi que ele ficou cansado da jornada, apesar de dormir em um dos quartos das visitas.

É coisa que meu mestre faria. Bem idiota e imprevisível, pensou Ei, sorrindo. Ele era muito mais forte do que ela, mas sempre que ela conseguia se aproximar e chegar perto de atingi-lo, ele dizia que foi sorte e ela não deveria ficar muito feliz por aquilo.

Enquanto chegavam ao templo verdadeiro, as duas ficaram quietas.

— Preciso agradecê-la, Eiko — disse Kaguya após um tempo.

Ei olhou para cima. O sorriso no rosto da sacerdotisa enquanto elas falavam sobre Tadayoshi se foi. A expressão dela voltou a ser aquela máscara delicada e feroz de antes.

— Da última vez em que falei com ele, era outro homem. Não havia sinal daquele garoto idiota e alegre. Ele se tornou alguém cheio de raiva, ódio, lamúria e dor. Tadayoshi amava e odiava o Yasuhiro-sama, e só conseguia pensar em sua vingança. Ele até ignorou o último pedido do mestre. E jamais descobriu a verdade sobre Inori.

A sacerdotisa não podia mais conter as lágrimas. Enquanto chorava, ela sorria e abraçava a garota. Embora fosse uma estranha, Ei retribuiu o gesto.

— Tai conseguiu colocar um pouco de bom senso nele, mas o Tadayoshi ainda dedicou a vida para se vingar. Até que a conheceu, Eiko — disse ela, com a voz carregada. — Ele foi de alguém quase consumido pelo ódio para alguém que arriscaria a vida pelos outros. Obrigada, Eiko. Obrigada por salvar meu amigo de si mesmo.

Ei colocou mais força em seus braços, enterrando o rosto nas pesadas roupas da mulher. Após um longo tempo, a sacerdotisa a soltou e limpou as lágrimas. A garota fez o mesmo e elas continuaram caminhando até o templo.

Elas chegaram até a clareira onde a luta ocorreu, e Ei apontou para onde estavam os corpos da besta e dos aldeões sem olhar naquela direção. Quando Kaguya e os sacerdotes a deixaram sozinha, a garota mordeu os lábios e ergueu a cabeça.

Não sou só eu que sentirei falta do mestre… Não sou a única que se lembrará de Tadayoshi… Enquanto olhava para o céu cinza, a garota deixou as lágrimas caírem. Dessa vez, chorar a fez se sentir um pouco melhor. Após limpar o rosto, ela caminhou até o fim da trilha feita pela besta.

O sacerdote mais jovem, com uma barba rala e cabelo curto, deu voltas na clareira murmurando algo o tempo todo. Ele estava tão focado no serviço que esbarrou na garota ao passar por ela.

Ei não sabia como, mas Kaguya e o sacerdote mais velho viraram o corpo do demônio. Havia uma pequena camada de gelo no corpo do Oni. A sacerdotisa circulou o corpo, tão focada que parecia esquecer do resto do mundo.

O homem estava com dificuldade para tirar o olhar dos aldeões mortos. Mas se forçou a desviar o olhar e tentou chamar a atenção da sacerdotisa.

— Kaguya-sama! Kaguya-sama! — A mulher finalmente olhou para ele. Ei sentou com as costas contra uma árvore e olhou para a besta, escutando a conversa dos dois com pouco interesse. — Acha que fora um erro, Kaguya-sama? Ou podem ter perdido alguns dos registros. Houve muitos incêndios na capital… não sabemos quando este demônio foi selado aqui…

Kaguya ainda encarava a besta como se fosse a coisa mais interessante do mundo.

— Duvido. Pelos nossos registros, este templo tem menos de trinta anos. Não tem como terem perdido tanta informação em tão pouco tempo. Isso só significa que estão escondendo algo de nós. De novo! Se reclamarmos, usarão os incêndios como desculpa outra vez! — Ela bateu em uma árvore com o punho. O ar ficou mais gelado enquanto fechava os olhos. Ela soltou um suspiro bravo, ar se formando na frente de sua boca.

O jovem sacerdote veio correndo até eles.

— Peguei tudo — disse com uma voz nervosa.

— Ótimo. Vamos voltar até o Ryuu — disse Kaguya, se virando.

O sol estava quase se pondo no horizonte quando voltaram. Ryuu-sensei terminara as preparações e agora estava perto do corpo de Tadayoshi. Estava tão distraído que nem percebeu o grupo. O outro sacerdote, quem estava alguns passos atrás, se aquecendo perto de uma fogueira, disse algo para o Ryuu-sensei, quem finalmente pareceu despertar do transe.

A meia-lua brilhava fraca no céu cinza e escuro, e as estrelas vinham e iam por detrás das nuvens. Apesar de mal a conhecer, Ei estava feliz por Kaguya estar lá. Era reconfortante saber que, apesar de todo ódio que o cercava, Tadayoshi ainda tinha amigos.

Mas aquele sentimento não era partilhado com os outros sacerdotes. Nenhum deles parecia lamentar a morte de Tadayoshi. Tudo que faziam era encarar o corpo com expressões vazias. A garota sabia que era infantil da parte dela, mas queria que eles fossem embora. Porém, ela se conteve.

Ryuu-sensei falou algo enquanto movia as mãos em gestos estranhos, mas ele não conseguia continuar; chorava demais para isso. Kaguya acariciou suas costas e deu passos para frente, continuando em seu lugar.

É algum tipo de ritual? Ei quis saber. Era diferente do que faziam no vilarejo dela. Apesar de não entender nada, aquilo parecia bonito e ela gostou. Não fazia ideia se era algo especial para os sacerdotes, mas, para ela, era diferente, igual a seu mestre.

O jovem sacerdote barbudo pegou um pedaço de madeira com um pano envolvendo uma das pontas e tocou o fogo, depois passou para o Ryuu-sensei quando estava acesso. Ele ainda chorava e mal conseguia segurar a tocha.

Kaguya ofereceu uma mão e o sacerdote entregou a ela. Ela deu outro passo para frente e parou perante Tadayoshi por um instante. Depois se virou para Ei, chamando-a em silêncio.

A garota pegou a tocha e encarou seu mestre.

Ei queria dizer algo, mas não sabia por onde começar. Havia tanta coisa. Ela queria agradecê-lo por tudo. Dizer que seu mestre significou, e continuaria sendo, tudo para ela. Talvez o próprio Tadayoshi não fizesse ideia do quão importante fora para a garota.

Ainda que o mundo o odiasse, ele ainda era a pessoa que ela mais amava.

Ei queria agradecer aos céus por darem a ela a coragem de falar com um estranho vestindo trapos que carregava uma espada. Queria agradecer aos deuses por mudarem o destino dela. Mas também queria amaldiçoá-los por tirarem ela dela tão cedo.

Ei queria dizer tudo aquilo, mas sabia que jamais poderia expressar seus sentimentos do jeito certo.

A única coisa que ela poderia fazer era lembrar-se de seu mestre. Tadayoshi a ensinou por pouco mais que um ano, mas ela jamais o esqueceria. Nesse curto período, ele a transformou no que Ei era hoje. Tudo que estava no coração, na alma, na espada dela.

Ei sabia o que deveria fazer. Ela viveria por meio dos ensinamentos dele. Enquanto ela vivesse, seu mestre também viveria.

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Quando nos encontrarmos de novo, daqui a muito, muito, tempo, vou olhar nos olhos dele com a cabeça erguida e agradecê-lo por tudo.

Enquanto a discípula encarava o mestre, ele parecia diferente para ela. Seu rosto estava mais pálido e o corpo mais duro, porém sua expressão não era a mesma.

Não… é a mesma… Com um choque interno, ela percebeu que era ela quem mudara. A pequena esperança que ela tinha dentro de si de que ele despertaria a qualquer momento desaparecera por completo.

Ei sabia que seu mestre jamais abriria os olhos de novo. Da mesma forma que sua mãe jamais voltaria, Tadayoshi estava em um lugar distante dela para sempre agora.

Com lágrimas escorrendo por seu rosto, ela ficou a alguns passos de distância de seu mestre e sussurrou para que só ele pudesse ouvir.

— Adeus, mestre. Obrigada por tudo.

Então abaixou a tocha.

As chamas devoraram a madeira e folhas secas lentamente, o som de fogo crepitando crescendo.

Ei ficou onde estava, abraçando o calor. Kaguya colocou uma mão no ombro dela e puxou a garota para trás.

Logo as chamas começaram a queimar com força, mas a expressão de Tadayoshi não mudou. Ainda era pacífica, ainda ignorava o fogo.

Enquanto observava as chamas, Ei chorou e apertou o diário do mestre dentro das roupas. Eles ficaram juntos por um ano, mas ela nunca pensou que o tempo que teriam seria tão curto. Ela acreditava que estariam juntos para sempre. Graças a isso, ela jamais se deu ao trabalho de aprender tudo sobre ele. Perdera sua única chance.

Sou uma falha como discípula, pensou a garota.

Mas ela sabia que poderia mudar isso.

— Eu… eu quero ir… com você… — A voz da garota falhou por causa das lágrimas, mas sua decisão foi firme. Ela não se virou para Kaguya; continuou olhando para as chamas. Mas sentiu o olhar da mulher nela. A espadachim sabia que seria difícil que a sacerdotisa a levasse consigo.

— Vai ser uma vida mais dura do que a com Tadayoshi foi — falou Kaguya após muito tempo. — O que matou seu mestre pode acabar matando-a também. Não quero ver pessoas morrendo por causa disso.

Ela está tentando me manter fora do mundo dela… Então a garota entendeu. Ela acha que quero vingança… Ela está tentando me proteger, me impedir de seguir o mesmo destino que o mestre…

Mas não é isso…

O objetivo dela era Tadayoshi. Como discípula dele, ela só o seguiu na jornada dele. Mas seu mestre partira sem deixar um caminho para ela.

Não… não é isso… sou eu quem devo encontrar meu próprio caminho… Quero um motivo para continuar vivendo. Ela precisava encontrar uma forma de falar aquilo para a sacerdotisa.

A discípula apertou a terceira arma em sua bainha, o cabo do que restara da espada de Tadayoshi. Mas então ela soltou e envolveu sua mão no cabo da própria espada.

— O mestre me disse uma vez e eu jamais esqueci. Ele disse que me ensinaria como usar uma espada, mas eu deveria decidir sozinha quando devo usá-la.

Ela finalmente olhou nos olhos de Kaguya. A sacerdotisa retribuiu o olhar. A lenha queimando e o fogo eram os únicos sons na clareira.

— Quero usar minha espada para fazer a diferença neste mundo.

Kaguya mostrou um pequeno sorriso e fechou os olhos.

— Tadayoshi criou uma boa discípula.

Quando a sacerdotisa abriu os olhos de novo, a garota podia jurar que havia algo de familiar neles. São os mesmos olhos que Tadayoshi tinha quando eu gritei que queria ficar forte, quando ele me aceitou… São os olhos de alguém que sabe dos perigos que estão adiante, mas respeita a determinação dos outros…

Eiko não retribuiu o sorriso. O caminho perante ela provavelmente era muito mais árduo e perigoso do que o caminho da espada. Ela não fazia ideia se sobreviveria, mas sabia que precisava seguir em frente. Em um mundo em que Tadayoshi não existia mais.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.