— Papai do céu, minha mãe diz, que o meu pai, que era casado com ela, é doido e que eles se separaram porque ele escutou o vovô Ari falar alguma besteira, mas ele não sabe que foi coisa da cabeça doida dele.

Era ainda manhã e Marcos da porta do quarto de sua filha, escutava a oração da menina sem que ela percebesse.

— Ele diz que não é pirado — continuou a garota —, mas outro dia peguei ele conversando com Cupipinho, o gato que ele cria. — O pai franziu o cenho, revoltado. — Eu sinto falta dos dois juntos. — Suspirou triste. — Desde que aconteceu eu oro quando durmo e quando acordo pra eles voltarem. Por favor, traz meu pai de volta. Amém.

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Emocionado, decidiu surpreendê-la.

— E no sétimo dia Deus disse: que se faça um pai.

— Pai! — Ao ouvir voz de Marcos, levantou-se do pé da cama, onde estava de joelhos, para virar-se e então abraçá-lo.

— E viu que tudo aquilo era bom — completou emocionado.

— Você não pode estar aqui, sabia? Mandato de segurança. — sussurrou, como se fosse algo ultrassecreto.

— Mandado. — corrigiu o homem, a segurando nos braços. — Tá ficando muito espertinha, melhor trocar para um assunto de criança.

— Sétimo dia é sábado? — perguntou, com um sorriso de orelha a orelha.

— É isso aí! — respondeu Marcos, colocando-a em seus braços. — Hoje é sábado e sabe o que acontece no sábado? Dia de pai e filha!

Vanessa, em êxtase, deu um grito estridente comemorando, quando Elisa entrou no quarto sorridente ao ver a reação dela.

Shh. — Levou o dedo à boca, pedindo silêncio. — A polícia não pode saber que eu estou aqui, meu amorzinho.

Elisa, com ternura, tomou Vanessa em seus braços.

— Posso conversar com você antes Marcos, a sós? — perguntou a esposa.

— Claro, meu amor — concordou, entregando a filha.

Amooooooooooooooooooooor? — Os olhos da menina brilharam, ao escutar essas palavras.

Com cuidado, a mãe levou-a ao chão.

— A sós, Vanessa — ela exigiu, com um olhar maternal, mas ao mesmo tempo repreensivo.

Eles foram até a cozinha, Elisa parecia preocupada e o marido sabia o motivo.

— Marcos, se você continuar com isso. Pode desconsiderar esta noite, pode desconsiderar uma vida juntos. — Com pesar nos olhos, ela indagou. — Você vai deixar sua filha órfã?

— Eu não vou precisar fazer isso sempre, mas tem a ver com o Ari e eu posso estar sendo incriminado por isso. — se justificou. — E há algo mais, que ainda não entendo, mas não sou a única vítima no processo.

Elisa olhou para baixo, cabisbaixa, deixava transparecer a profunda tristeza.

— Ei, eu trago Vanessa à noitinha. — disse ele, beijando sua testa. — Se cuida.

A pequena garotinha estava pronta, entrou no velho Opala preto com o pai, que deu partida no carro. Curiosa, ela atentou para a mochila no banco de trás.

— O que tem na mochila, pai? — perguntou, esticando a mão em direção ao banco de trás, tentando tocar a bolsa.

— Não mexe aí não, meu amor, tem uma caveira — respondeu, tentando assustá-la.

Ainda curiosa, percebeu que o carro agora tinha, além de um toca fitas, um CD player. Abriu o porta-luvas, onde sabia que haviam fitas e viu, além delas, alguns discos. Pôs um deles no aparelho reprodutor.

If you wanna go take a ride wit me... — acompanhou a músic.

Irritado, o pai desligou o som.

— Ei, onde está aprendendo isso? — perguntou com um olhar inquisidor. — Isso não é música de criança.

Ambos ficaram em silêncio, o que deu espaço para Vanessa pensar alto por um instante, milhares de coisas em poucos segundos. Olhou para seu pai e parecia inconformada com algo. Marcos, ao perceber, sorriu e perguntou-lhe.

— O que foi?

— Você odeia mesmo deficientes, pai? — perguntou a menina, de cenho franzido.

— As crianças da escola de novo? — devolveu a pergunta, sorridente.

— É sim — respondeu triste.

— Não, princesa. — afirmou, despreocupado. — Só casos particulares de deficientes babacas, como o tal Bruno Freitas, que quis aparecer na mídia me processando. Mas o papai até tem um amigo deficiente agora, o Érico.

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— Como eu posso acreditar? — perguntou a menina, arqueando as sobrancelhas.

—Nossa, trocaram minha filha por uma anã? Quanto tempo eu passei sem te ver? — indagou o homem, espantado com as perguntas da filha. — Você vai conhecê-lo.

Quando chegaram à academia, Marcos tinha que dar uma aula e levou Vanessa consigo para assistir ao treino, mas estava receosa em fazê-lo.

Os alunos colocavam suas ataduras, Matheus exercitava-se com alguns halteres, quando a garotinha decidiu falar com o pai.

— Minha mãe não gosta que eu venha aqui, ela diz que é um ambiente pesado pra mim e cheio de palavras feias.

— Pois a sua mamãe está completamente errada — repreendeu Marcos, absoluto —, aqui é um ambiente que transmite hábitos bastante sau... — foi interrompido com seu primo soltando bruscamente os pesados halteres que levantava.

BIRL! — berrou, com o esforço. — Aqui é Bodybuilder, porra! — esbravejou Matheus. — Agora eu vou pra casa comer que só a desgraça!

— ...dáveis. — terminou a fala. — Tudo bem, vai pra casa com esse idiota, que eu já chego.

Cidade do Corsário, 2001

— Você vai mesmo fazer isso? — perguntou Elisa, tristemente.

Estavam sentados no meio fio em frente aonde ela morava. Uma casa rosa, simples e com um telhado bastante antigo.

— Amor, é a minha mãe que está internada no hospital agora... e com câncer. Eu quero dar o melhor tratamento a ela e não vou medir as consequências para isso — respondeu Marcos, preocupado.

— Mas e o seu curso? — perguntou, desamparada. — Vai interromper?

— Vão ser quatro meses nos Estados Unidos, apenas. Eu vou terminá-lo quando voltar.

A garota olhou para baixo, e perguntou apelativa:

— Mas e... e eu? — uma lágrima solitária descia de seu olho esquerdo.

Ele não tinha força e nem palavras para responder.

— Eu vou amanhã logo cedo, minha mala já está pronta. — Os olhos dela encheram-se de lágrimas. — Então trate de arrumar a sua mala também, você vai comigo.

Hoje, instantes após o treino

A última aula da manhã havia terminado. Marcos ouvia os comentários dos alunos sobre as reportagens:

— Gosto desse Temerário, ele humilha os bandidos. Faz o que a polícia deveria fazer — disse Roni, o gordinho.

— Não acho que ele esteja fazendo isso, bandido bom é bandido morto. — Henrique estava indignado.

— Vai dizer que ele não teve pena de matar o Fagundes — ironizou dona Fátima.

— É diferente, minha senhora! — Roni ergueu a mão direita para o alto. — Os caras iam matar os policiais. Eram os bandidos ou eles. Mesmo assim sobreviveram nove dos dez.

— Exatamente! — Marcos exclamou do nada concordando, com o aluno.

Todos o olharam estranhando a repentina atitude, claramente ele percebeu e um silêncio constrangedor se alastrou pelo local.

— Esse é fanboy — constatou Henrique.

Felícia, namorada de Roni, aproximou-se do mestre para dar uma boa nova, tentando quebrar o gelo da estranha reação do professor.

— Soube que pode ter sua licença de volta, Marcão. Parabéns, só não abandone a gente!

— É meio cedo pra dizer isso — ele rebateu —, mas obrigado, Felícia. Vou levar os meus primeiros e fiéis quatro alunos pra primeira fila do meu retorno.

Marcos fechou a academia para o almoço, mas antes de ir até em casa, Érico, o cadeirante resolver dar as caras.

— E aí, Temerário! — cumprimentou o deficiente.

— Fala, aleijado. — Marcos atentou para sua cadeira. — Essa daí é nova? É da Hot Whells?

— Acabei de comprar, flexível. Dá pra por em carros.

— Uh, legal. Já que tem isso agora, tá indo pra onde? Te dou uma carona pra estrear.

— Beleza! — concordou o paraplégico.

Marcos tirou Érico da cadeira e o sentou no banco de passageiro do Opala. Enquanto isso, curiosos olhavam-no de forma perplexa. Constrangido, respondeu:

— O que é? Bando de preconceituosos! — esbravejou enquanto colocava a cadeira no banco de trás.

Entrou no carro, parecia bastante irritado com aqueles transeuntes inconvenientes.

— Pra onde vai? — perguntou o motorista, ainda estressado.

— Pode me deixar na esquina da Almirante com a Alagoas — Érico percebeu o transtorno do companheiro.

Olhou para o painel e ligou o toca CDs, mas o tocador retrocedeu à última leitura do pendrive — que pertencia a Santana, mas Marcos tinha posto algumas músicas — e reproduziu a faixa Because I Got High, de Afroman.

Yo, yo, man! Parece que temos muito em comum — Animou-se Érico.

Marcos sorriu, mas ainda meio sem graça. Até que veio o refrão da música.

Cuz I Got High, Because I Got High, Because I Got High — cantaram juntos, sorrindo.

— Ei, cara! — o passageiro chamou atenção. — Você não é um babaca, não liga pra isso.

— Não me importo, mas alguns cretinos enchem o saco da minha filha. — Logo, chegaram ao destino que era próximo e o carro foi bruscamente freado. — Ela até pensa que eu sou mesmo preconceituoso. Porém, tenho eu a solução. Vou levá-la ao cinema mais tarde e você vai junto, pra provar que não sou.

— Não sei se é boa ideia, cara — Érico parecia inseguro com o convite.

Ao sair do veículo, Marcos tirou a cadeira de rodas, mas quando o dono sentou-se nela, avistou um homem estacionando um sedan na vaga de deficientes de um estacionamento vazio de um supermercado.

— Ah, viado. — o ex-lutador murmurou, ao observar a indecente atitude. — Com tanta vaga, logo essa... Passa essa flanela aí, bicho.

Érico entregou a flanela que estava no painel do Opala.

— Não viaja, cara! — disse Érico, preocupado.

Marcos aproximou-se do sedan, pegou uma pedra grande o suficiente para encher a palma de sua mão direita e arrombou o tanque de gasolina. Pegou a flanela, encharcou-a com o combustível, colocou-a na entrada do reservatório, acendeu-a com um isqueiro com folhas de maconha numa estampa branca e correu para seu carro. Apenas acompanhou de longe a explosão do veículo no supermercado.

— Tá pegando fogo, bicho! — exclamou Érico, surpreendido com a labareda na vaga do estacionamento.

Bruno Freitas, o cadeirante que o processara outrora, saiu do estabelecimento, junto do homem que estacionara o sedan.

— Meu Deus! Meu carro! — desesperou-se o dono.

— Eu só estacionei para o senhor, seu Bruno. — disse o manobrista preocupado. — Não foi culpa minha!

Vendo a situação e querendo livrar-se de outro processo, Marcos despediu-se rapidamente de seu colega.

— Que merda, hein! — riu nervoso. — Se bem que ele mereceu isso e eu vou ralar peito antes de outro processo, bicho! Te vejo às seis da tarde no CinePartage!

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Cidade do Corsário, 2001

Neide estava na maca de um quarto de hospital. Marcos, sentado numa cadeira ao seu lado, estava triste, mas seus olhos estavam cheios de esperança.

— Mãe, eu aceitei a proposta. Vou participar do Ultimate Fighter do World Mixed Martial Arts. O campeão ganha um contrato milionário no grupo profissional.

— Mas filho; e o seu sonho? — perguntou, espantada. — Você quer ser um engenheiro.

— Meu sonho é que minha mãe veja meus momentos de felicidade. Nossa vida sempre foi uma merda desde que o meu pai foi embora e essa é a chance de mudar isso.

— Eu fico muito triste de ser o motivo — disse Neide, franzindo a testa.

— Oh, mãe. — Levantou-se e foi até a senhora deitada a abraçando e deu-lhe um beijo na testa. — A senhora é o motivo pelo qual eu vou lutar o desafio mais difícil da minha vida e vou fazer isso com maior prazer, por que a senhora vai me ver campeão e engenheiro também. — Sua voz entristeceu. — Eu vou precisar ir agora, tenho que resolver umas coisas antes da viagem. — Envolveu-a em seus braços novamente. — Eu te amo, vê se melhora. A benção?

— Deus te abençoe, meu coração de ouro — disse com os olhos cheios de lágrimas.

Ao sair do quarto, com o coração de ouro em pedaços, avistou Gabriel, Matheus e Ari na sala de espera. O primo, empolgado com a participação de Marcos no Ultimate Fighter avançou como um fã.

— Cara, ainda não acredito! Você tá no Big Brother do MMA, vai conhecer o Billy Ruas! Tenho certeza que vai ser Team Billy. — Foi ao ouvido de Marcos e cochichou. — Quem não ficou muito satisfeito foi o Gabriel — deu risinho sarcástico.

— Posso fazer nada. — Ari aproximou-se dos dois. — Corta o assunto! — exigiu do primo.

Ari vinha desanimado por sua esposa, fingia a alegria que não tinha, sorrindo com as olheiras estampando seu rosto.

— E aí, campeão! Não esquece esse velho aqui quando estiver no teu reino. — Percebeu a tristeza no olhar do enteado. — Fica tranquilo, rapaz, vou cuidar dela.

— Tenho certeza que vai, velho — abraçou Ari, com gratidão e tristeza ao mesmo temo.

Os braços se desvencilharam, estavam prontos para separarem-se

— Ei! — exclamou o padrasto. — Uma última antes de ir embora, é sobre deficiente físico, mas eu só vou contar a metade...

Casa de Elisa, hoje

— Papai, vâmo embora! — exclamou Marcos, chamando a filha. — A gente tá atrasado.

Impaciente, sentou-se no sofá da sala. Pegou o celular e destravou-o. Antes que fosse usá-lo, surpreendeu-se com Gato vestido com um tutu rosa, purpurina e uma tiara. Ele riu alto e provocou:

— Tá uma gata! Eu pegava!

— Vá se ferrar, otário! — praguejou o felino irritado. — Traga essa garota de novo aqui e ela nunca vai ter um irmão, porque eu arranco o seu pinto quando estiver dormindo.

— Você está fofa demais para eu considerar qualquer insulto-barra-ameaça!

Escutou sua filha cantar ao chuveiro. Olhou para a sua estante da sala e viu seu pequeno tubo de remédios, que por tolice não o tomava. Decidiu agir diferente e aproveitar a chance única de ter novamente sua família. Pegou uma pílula e tomou-a.

No celular havia uma mensagem de Ana, decidiu lê-la.

ANA “JITANA”: Enviou localização via GPS. Hoje às 17:00.

ANA “JITANA”: Esteja neste local amanhã às 00:00, sua luta está casada. Hoje às 17:01.

MARCODEUS: Hoje vai até 23:59, então quando for 00:00 tenho que estar lá? Hoje às 17:01.

ANA “JITANA”: Você entendeu. Hoje às 17:02.

MARCODEUS: Não, não entendi. Hoje às 17:02.

ANA “JITANA”: De meia-noite esteja dormindo, por que vai precisar estar descansado na próxima meia-noite. Hoje às 17:02.

MARCODEUS: Continuo sem entender. Hoje às 17:03.

ANA “JITANA”: _/_ Hoje às 17:03.

MARCODEUS: Indelicada. Põe aonde o sol não bate, nem vai sentir, arrombada. Hoje às 17:03.

Travou a tela, guardou o celular e as pílulas no bolso e observou o gato passar. O felino de tutu acariciou sua perna com a cabeça e miou. Escutou sua filha noutro plano:

— Gostou do visual do Cupipinho, pai?

— Foda demais! — respondeu com um grito.

Hoje 21:27

Após o término da sessão de cinema, o Opala foi estacionado na frente da casa de Elisa e o pai beijo a testa de sua filha.

O adulto estava tão descontente, que a garota decidiu consolá-lo.

— Ei, pai. — chamou a atenção, tocando no queixo barbudo dele. — Não fica triste, porque seu amigo não veio. Foi ótimo, sério! — Fez um coração com as mãos, sorrindo. — Adorei ver Frozen com você.

— Não fiquei triste, filha. Talvez o meu amigo tenha tido algum imprevisto — tentou justificar, dando um abraço demorado na filha.

Elisa veio buscar Vanessa na porta do carro.

— Vai entrando, filha — disse a mãe, quando a filha saiu do Opala, carregando a sua mochila nas costas.

A ex-esposa olhou seriamente para seu antigo afeto, que evitou, mirando a rua.

— Eu estou muito perto de pegar quem quer que tenha feito isso. — Marcos usava o que tinha como desculpas. — É só uma questão de tempo.

— Isso não é trabalho seu. — falou, irritada. — É da polícia.

— Não quando a polícia acha que eu sou o culpado. — Foi a vez de ele enfezar-se. — Vou fazer isso, Elisa. Sua vontade ou não, é a minha integridade em jogo. — disse Marcos irritado ao acelerar.

Sabe o que tinha dito à mãe de sua filha, uma meia verdade. Em verdade, sabe que havia mais que sua integridade em jogo: vidas.

Passou pela casa de Ari e lá parou. Percebeu que não estava mais interditada e resolveu ir até a casa. Tocou o interfone.

Quem é? — perguntou a familiar voz no interfone.

— É o Marcos, preciso falar com você.

O portão automático logo se abriu, o visitante estava impressionado por não ter havido alguma resistência por parte de Gabriel. Entrou com o Opala, observou que a piscina estava cheia novamente.

— Pode entrar — convidou da porta o anfitrião.

Sentaram-se na sala ao entrarem, o vinho foi servido a ambos.

— Senti sua falta no velório — comentou Gabriel.

— Quis evitar o alvoroço da mídia. — devorou a taça num gole único. — E é sobre o Ari que eu quero conversar. A morte dele está ligada ao meu advogado, Fernando Franklin Ventur.

— E você diz isso baseado em quê? — indagou, confusamente assustado.

— “Baseadim”? — devolveu a interrogação, como se as palavras ditas anteriormente lhe ativassem um transe mental.

— Que? — Gabriel franziu a testa.

— Quero — respondeu Marcos, sorrindo.

— Pelo amor de Deus, bicho! — esbravejou. — Meu pai morreu e não temos mais dezessete anos!

— Calma, estressado. Descobri uma lista de um cara, chamam ele de “O Cobrador” e provavelmente, ele matou o Ari. O coroa estava envolvido em algo errado e eu sei que você sabia. Então me diga — pediu, obstinado a saber a verdade.

— Não. Eu não posso. — disse, com suas mãos trêmulas a implorar. — Não posso virar um alvo do Cobrador. Quero te dizer uma coisa, bicho.

— Pode dizer, irmão — falou Marcos, compreensivamente.

— Eu luto na “piscina”, a vida não está fácil pra ninguém. Mesmo sócio, o meu pai conseguiu endividar-se e isso lhe custou a cabeça.

Inconsolado, Gabriel olhou para o chão.

— Puta merda! — Levou a mão à cabeça. — Fica tranquilo, bicho. Eu vou te tirar dessa. Vou pegar esse miserável, confia em mim. — Marcos levantou-se e indo em direção ao filho do finado Ari, abraçou-o tentando confortá-lo daquele trágico luto.

Estava destinado a acabar com aquela pressão, que afetava muitas pessoas.

Residência de Fernando Ventur, 22:47

O Temerário observava de um beco sem saída em frente à casa de seu advogado, a chegada do mesmo. Antes dos portões automáticos se abrirem, puxou uma pistola que atirava projéteis de piche. Ele mesmo, como fã de armas e engenheiro formado, desenhou e desenvolveu a pistola. Acertou o tiro na lente da câmera do portão na primeira tentativa. Quando o carro de Ventur entrou, furtivamente o Caveira foi junto.

Notou que não havia mais câmeras no local.

Roubou minhas propriedades e meu dinheiro e resolveu economizar nas câmeras?

Passou por um longo corredor escuro com paredes cobertas por plantas. Adentrou na casa pela porta da frente, que estava destrancada. O advogado morava só, Marcos conhecia bem a casa dos churrascos de fim de semana. Um dia eles bebiam juntos, noutro Ventur o extorquia.

Ventur, gordo, baixinho e calvo num terno caro, entrou em seu quarto. O guarda-roupa tinha espelhos do lado de fora das portas, abriu uma para pegar uma toalha limpa. Quando a fechou novamente assustou-se com reflexo da caveira.

— Santo Deus! — exclamou, ao ver a figura refletida.

A voz demoníaca do modulador piorava a tensão sentida.

— Fernando Franklin Ventur, você tem sido visitado por Santana ultimamente?

— É você não é? O ta-tal cobrador? — gaguejou, faltando-lhe ar para respirar.

Uma luz vermelha vinda de uma janela aberta projetou-se no peito do advogado.

— Se abaixe! — gritou o Caveira, jogando-se do alvo.

Uma rajada de tiros passou pela janela.

— Saia do quarto abaixado! — a grave voz modificada, instruía nervosa e abafada pelo som dos disparos.

Os dois rastejaram até a saída do quarto. Enquanto os rombos brotavam nas paredes da casa, ambos rastejavam como cobras até a escada. Quando os tiros cessaram, levantaram e desceram as escadas rústicas com corrimão de madeira para o térreo, com papéis de paredes floridos e claros, fizeram isso o mais rápido possível, indo até a saída.

Quando Ventur tocou a maçaneta de aço da porta da frente, pôde ver pela porta de vidro o rosto numa máscara branca de face humanoide, sem expressões nem emoções, com pequenos furos para os olhos, e mais dois para o nariz. Bem trajado de terno cinza, seus cabelos loiros eram visivelmente falsos e empunhava uma automática na mão direita.

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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O Temerário que vinha logo atrás do proprietário da casa, percebendo a figura macabra do Cobrador, derrubou Ventur com uma rasteira antes que o assassino disparasse a arma, quando o bandido o fez, os tiros atingiram o traje do Caveira. Baqueado, o herói deu dois passos para trás, antes que tomasse o equilíbrio novamente e avançou nas pernas do estranho mascarado.

— Está tentando me ajudar, ou me matar?! — esbravejou Ventur, indignado com a brutalidade da queda sofrida por ele.

— Corre, gordo! — gritou a voz deformada, que rapidamente foi obedecida pelo advogado.

O Cobrador fechou a guarda completa com as pernas na cintura do Temerário, que se levantou, soltou a guarda, ergueu-o e aplicou um bate-estaca, mas não conseguiu desvencilhar o braço nas pernas do assassino, que mesmo, atordoado pelo golpe, pôde, no chão, aplicar um armlock no herói.

O Temerário gemeu de dor, aguentando a pressão de ter seu braço quase quebrado, quando Ventur ligou o carro e chamou atenção do Cobrador, que soltou o membro do Caveira e chutou-o para afastá-lo. O assassino, então, levantou-se e correu para tentar alcançar o carro e o herói, fez o mesmo.

O automóvel derrubou o portão automático, derrapou na rua e bateu num poste.

— Caramba, gordo não tem vez nesse mundo. — lamentou o Temerário. — Mas foi legal de se ver.

Vendo que não alcançaria mais o adversário correndo, puxou a pistola de piche e mirou. O Cobrador olhou para o carro esfumaçado de Ventur, que estava desmaiado no banco do motorista, recarregou a automática e na hora de disparar teve piche espalhado em seu rosto, atrapalhando sua visão.

Atordoado e sem visão, teve de tirar a máscara e correr o mais rapidamente para não ser descoberta sua identidade. Mesmo assim, cabelos negros e uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, foram observados pelo herói.

— Isso foi ridículo. — O Caveira sorriu. — Mas deu certo, então foda-se!

Edifício Empresarial BaS, 23:40

Nada se podia ver, apenas o negro de uma escuridão profunda. Era como se ele fosse cego, conseguia somente ouvir. Sentia a pressão do sangue indo para a sua cabeça.

— “Frankie Ventur”... — começou a cantarolar a voz modificada. — I was walking down the street one day... Hey, Frankie! Do you remember me?

— Onde é que eu estou? — perguntou o advogado.

— Não vai querer saber. — respondeu o Caveira, irônico. — Vai por mim, o que os olhos não veem o coração não sente. — Soltou uma histérica risada, se divertia. — Que tal contribuir? — Seu tom alterou-se de divertido, para raivoso em um instante. — Marcos Fonseca! O que fizeram com as contas dele?

— Não vou te falar nada seu miserável. — negou-se com ceticismo.

— Você quem pediu — disse o Temerário.

Ventur foi puxado para cima e teve a venda retirada dos olhos. Estava pendurado numa escada de incêndios pela perna esquerda por uma corda no prédio empresarial de Ana, mais de dez andares do solo.

— Santo Deus! — Tomou o ar. — Eu falo! Eu falo o que você quiser! Eu tenho acrofobia!

— Eu sei, então é melhor começar a piar.

— O cara não perdia mais nada, era ruim para as apostas! Então a Ana deixou expor o caso da prisão, esquizofrenia e aproveitamos pra limpar as contas dele e dividir o bolo! A gente fez ele assinar transferências, repasse de imóveis... — Foi interrompido.

— Por quê?! — alterou o tom, visivelmente irritado.

Ventur começou a chorar.

— Me tira daqui, cara! — chorava tanto que gemia. — A gente era sócio na “piscina” e eu resolvi sair, agora tenho um monstro me perseguindo!

— É tudo o que eu queria ouvir — disse, dando uma risada irônica.

O Temerário subiu a corda para a escada e amarrou as mãos, pés e boca de Ventur com fita adesiva.

— Só uma correção, você tem dois monstros te perseguindo.

— Não vai me tirar daqui, porra?! — esperneou o advogado, nervoso.

— Fica caladinho aí! Já chamei a polícia e vai pra cadeia se tiver sorte da polícia chegar antes do Cobrador.

Descendo o edifício, deparou-se com o seu carro num local pouco arejado, no estreito espaço de um beco entre um prédio e outro. Porém, viu uma silhueta estranha ao lado de seu Opala; um homem sentado.

— E aí, Caveirão! — Érico revelou-se na escuridão.

— Aleijado? — perguntou o Temerário, confuso. — O que caralhos você está fazendo aqui?

— Como assim? — Sorriu o cadeirante. — Você não queria me ver? Se não queria... Era só tomar essas pílulas no seu bolso de novo.