Três semanas depois da contaminação

Uma semana e meia.

Esse foi o tempo que minha comida durou e durante muitas horas, me amaldiçoei por não ter pego tudo o que achei pela frente na minha casa.

Durante os primeiros dias desse novo inferno, considerei e até tentei voltar para casa, pegar mais suprimentos, porém, aquelas coisas, aquelas pessoas inumanas estavam em todos os lugares. Tentei por vários dias contatar minha família e o Fort Benning, sintonizando em frequências de rádios que eu sei que eles usavam. Mas não recebi nada, nada além de um silencio morto. Meu celular ficou sem bateria por volta do quinto dia e mesmo usando ele apenas para checar as horas, ele durou um dia a mais para eu perceber que a antena de comunicação estava fora do ar.

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Nunca pensei que passaria meus dias entrando em casas abandonadas, me esgueirando sorrateiramente até os armários das cozinhas das pessoas e suas geladeiras para me alimentar.

Isso é irreal.

Mais irreal ainda foi ver o que aquelas coisas, que um dia foram humanas fazem com as outras pessoas, pessoas como eu, as que falam. A primeira vez que vi foi quando entrei em uma loja de conveniência em um posto, quando fui encher o tanque do meu jipe. O frentista, aparentemente, estava debruçado sob um corpo de um outro homem um pouco gordinho e ele estava literalmente COMENDO, MASTIGANDO E ENGOLINDO a carne humana.

Aquela foi a primeira pessoa que eu tive coragem de matar, as demais, vieram como consequências de pequenos erros meus. Deixar cair uma prateleira, trombar e escorregar em móveis e a mais recorrente, arrombar portas. Aprendi que eles apenas paravam com um dano considerável na cabeça, se atingíssemos o cérebro, eles paravam.

Morriam.

Com o passar dos dias, descobri como evitar aquelas coisas. Evitei de atirar, guardei minha munição a sete chaves e gastei apenas o necessário, o barulho atraia aqueles canibais irracionais. Depois, quando tive um azar incrível de esquecer de pegar um galão de gasolina na segunda semana, tive que abandonar o meu jipe e passar a caminhar, me esconder nas casas durante a noite, em um dos quartos para não acabar morta. Sempre que eu podia tomava banho e lavava as minhas roupas, como não podia estende-las e esperar secar, as vestia molhadas mesmo, pois conforme andava no sol, elas secavam naturalmente no meu corpo. Achar água passou a ser cada vez mais difícil e por isso eu sempre levava umas três garrafinhas comigo, fazendo o possível para beber menos a cada dia. Escovar os dentes era um luxo que eu raramente podia ter, quando dava sorte de encontrar uma casa com água, a primeira coisa que fazia era encher as garrafas, limpar o melhor possível o meu curativo na barriga e tomar um banho, rápido e frio, lavar as roupas de baixo o melhor possível e escovar os dentes com minha velha escova, a qual sempre ficava na minha mochila de sobrevivência quando eu era encarregada para ir em alguma missão.

Missão, exército.

Harris.

Eu tentava não pensar, fazia muito esforço cada vez que eu cruzava com aquelas pessoas comedoras de gente e imaginar que meus pais, meus irmãos, as minhas cunhadas e o homem que eu tanto aprecio tenham acabado mortos ou virado uma daquelas coisas. Isso seria demais para mim.

Na terceira semana, eu me peguei murmurando coisas, estava conversando comigo mesma. Foi aí que eu lembrei de que não tinha conversado com uma pessoa de verdade á muito tempo.

Na noite passada, quando me abriguei em uma pequena casa perto de uma pedreira, encontrei um espelho de bolso. Mesmo apenas tendo uma vela iluminando o quarto, eu consegui ver o meu reflexo. Olhos cansados, olheiras levemente profundas. O cabelo, o qual além de desgrenhado e amarrado de qualquer jeito, estava precisando de uma boa lavada. Lábios rachados, a pele do rosto um pouco suja. Naquela noite, desejei que aquilo tudo fosse uma grande brincadeira e que meus amigos entrassem gritando “Nossa, olha só você, caiu mesmo! Fizemos direitinho não? ”.

Bom, quem quer que tenha causado isso, fez direitinho.

Quando amanheceu, meu café da manhã foi a metade de uma barra de cereais sabor chocolate com banana, o qual foi meu jantar ontem. Eu sabia que não ia muito longe racionando a comida desse jeito, mas quanto menos eu saia e me deixava exposta nas ruas, era melhor pois qualquer coisa podia acontecer. Depois de encher duas garrafinhas, fui tomar banho e fiquei maravilhada ao achar um pedaço pequeno de sabonete, o qual revezei para também lavar o meu cabelo. Ultimamente, eu estava aderindo a outros meios de saber a hora, às vezes, me localizava pela minha sombra e a posição do sol, outras, apenas deduzia.

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Então agora, de acordo com a minha sombra, poderia muito bem ser meio-dia ou até uma hora da tarde.

Como estava com escassez de água, decidi subir até a pedreira. O caminho foi tranquilo, considerando que desviar de matos e ficar alerta para não trombar com as raízes expostas das árvores era o maior perigo. Depois de se passar tanto tempo sozinha, você consegue distinguir barulhos. Mas definitivamente eu não esperava ser pega de surpresa por uma espécie de besta apontada para o meu rosto. Crispei os meus lábios, nervosa comigo mesma por não ter escutado os passos do homem. Ele não parecia ser uma daquelas coisas, pois estava exatamente parado, me olhando como se me avisasse que se eu fizesse qualquer coisa ele atiraria em mim. O homem parecia ser do interior, pelo tipo de roupa que usava, tinha feições sérias, lábios pequenos e olhos claros estreitos. Havia alguns animais mortos pendurados por uma cordinha em seu ombro. Ele parecia perigoso.

Nós ficamos nos encarando, enquanto eu me perguntava quantos segundos eu levaria para puxar a minha pistola antes de levar uma flechada no meio da testa. O som de galhos se quebrando atrás de mim fez os pelos da minha nuca se eriçarem, mesmo sabendo que dar as costas para uma ameaça significaria a morte, era melhor do que ser pega por trás. Quando eu me virei subitamente, escutei um aviso do homem, sua voz era rouca e baixa, eu diria perigosa até. Valeu a pena quando eu vi outro homem, o qual parou quando viu que eu tinha me virado, este, se vestia quase igual ao outro, porem usava roupas pretas, parecia ser mais velho, tinha um olhar arrogante e malicioso.

— Oho! – Eu o ouvi dizer fingindo animação, por alguns segundos eu aproveitei o som de sua voz, pois não tinha escutado nada além de grunhidos e gemidos por semanas – Você também achou outro tipo de comida, irmãozinho.

Meu estomago embrulhou e tudo que eu consegui sentir foi nojo. Encontrar pervertidos como os primeiros humanos normais não era lá muita sorte.

— Só... – comecei a falar, mas minha voz falhou, pela falta de uso e então eu pigarreei algumas vezes, impaciente e fiquei de lado, dando uns passos para trás para ter uma visão dos dois – Só vão embora, realmente não é muito inteligente mexer comigo.

— Exército, - o mesmo cara de antes falou, parecendo impressionado enquanto me olhava de cima à baixo – conheci alguns tipos do exército antes disso... – me contou, se aproximando em pequenos passos – gente boa.

— Aposto que sim. – Murmurei a ele, erguendo uma das minhas sobrancelhas, para avisa-lo de que, se chegar perto, não vou me importar de levar uma flechada antes de dar um soco nele

— O que está acontecendo aqui? – Outra voz masculina perguntou autoritária, um pouco adiante

A primeira coisa que reparei foi como ele segurava a arma, uma espingarda. O homem tinha postura militar e se não fosse, provavelmente era policial. Tinha também um coldre como parte do cinto que estava segurando sua calça, com uma arma.

— Apenas batendo um papinho, não é, ruiva? – Aquele mesmo homem me perguntou, sorrindo maliciosamente

Então aquele homem de postura militar prestou atenção em mim, olhou para o meu uniforme e parou nas minhas duas insígnias um pouco acima do meu peito, onde estava o meu nome e as minhas duas patentes. Primeira-Tenente e Chefe. Ele me chamou com a cabeça e antes de ir até ele, olhei para os dois homens, para o mais falante, lhe dei um mini sorriso esnobe e para o outro, o melhor olhar crítico que eu poderia dar em uma hora como aquela.

Shane Walsh se apresentou como um policial de uma cidadezinha próxima a Atlanta e pediu desculpas pelos dois homens, os quais, ele mencionou como “Aqueles idiotas” antes de me levar para cima da pedreira, onde me contou que tinha montado um acampamento com outros sobreviventes.

Ao sair das arvores e entrar verdadeiramente no acampamento, descobri que eles estavam vivendo melhor do que eu. Haviam barracas, algumas fogueiras, as quais estavam apagadas a essa hora e carros, entre eles um trailer cor bege. Vi crianças, um menino e uma menina, desenhando em uma mesinha com mais duas mulheres, pareciam ser mães deles.

O sorriso que estava quase nascendo nos meus lábios morreu, quando eu escutei uma frase muito conhecida, junto com uma voz masculina tão conhecida quanto. “Está atrasada”. Adrian Jones aparentemente tinha parado de conversar com alguns homens mais à frente quando notou a movimentação e me olhou. Senti que deveria dar meia-volta e voltar a me aventurar na floresta, sozinha.

Sei que devia estar feliz de rever uma pessoa conhecida, mas tinha pessoas melhores para me mandar depois de semanas sem ninguém.

O homem de terno amassado, cabelos loiros e olhos escuros caminhou na minha direção, parecia estar se contendo de alguma coisa. Ele parou na minha frente e pude ver Shane ficar indeciso entre nos dar privacidade ou afasta-lo de mim, pois nossos rostos tinham expressões diferentes. Olhei para Shane, fechando os olhos levemente e dei um leve aceno negativo com a cabeça. Aquilo pareceu trazer um prazer no policial, pois ele esticou o braço na minha frente e deu uma leve empurrada em Adrian pelo peito, o afastando.

Era bom saber que Adrian Jones ainda continuava uma merda para fazer amizades, era muito bom.

— Que porra é essa? – A voz furiosa e muito conhecida de Adrian se elevou, quando Shane o empurrou – Essa mulher é minha namorada.

Balancei a cabeça negativamente mais uma vez, sentindo uma onda de prazer brotar em meu corpo.

— Não é o que ela diz, Jones. – Shane falou firme, um pouco ríspido, mas seu jeito de falar estava maravilhoso – Agora se afaste.

A esse ponto, pareceu que as pessoas no acampamento estavam ainda mais curiosas sobre a minha chegada e a possível briga que estava se formando, pois estavam se aproximando, quase que fazendo uma roda ao nosso redor.

— Sua vadia manipuladora. – Adrian rosnou, me olhando nos olhos com uma frieza que eu não estava muito bem acostumada, mas não era ao todo uma novidade – Sempre persuadindo homens para fazer o que é conveniente para você. Você tem sorte, eu ia te entregar para o seu pai se visse outra gravação de você dando para aquele tal de Harris na nossa cama...

Meu punho acertou o rosto de Adrian com tanta força que ele foi para trás, colocando a mão no nariz, para tentar evitar que o sangue escorresse. Ele fez menção de ir avançar para mim, mas Shane empunhou a espingarda, claramente em uma ameaça.

— Se quiser conte, Jones. – Minha voz saiu fria e arrastada – Conte que eu era perversa e desumana com meus soldados, conte que eu dormia quase todos os dias com o meu Segundo-Tenente e nossa, eu adorava cada segundo da transa.

— Espero que ele esteja morto. – Adrian praticamente cuspiu as palavras na minha cara - Como aquelas coisas e que tenha sido muito doloroso.

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— Eu teria cuidado com as coisas que está falando, - comentei – se sou mesmo tudo que você diz, eu dormiria de olhos abertos essa noite.

— Isso foi uma ameaça? – Ele rosnou, depois de cuspir um pouco de sangue

— Ah, pode apostar que sim.

Uma mulher loira se aproximou, ela parecia ter chegado apenas agora e avançava em nossa direção, descrente.

— Adrian, o que houve? – A voz dela mostrava preocupação e por isso eu juntei as minhas sobrancelhas, olhando de um para o outro – Meu deus!

Um riso se entalou na minha garganta quando vi a mulher pegar o rosto do meu ex-namorado com as mãos e ficar na ponta dos pés, examinando ele. Shane deu uma leve empurrada no meu braço com seu cotovelo e indicou o caminho, contornamos alguns curiosos e caminhamos até o trailer, onde dois homens conversavam, um era um senhor de idade, cabelos brancos, camiseta havaianas e um chapéu de pescador, o outro, sentado em uma cadeira de plástico me lembrou um fazendeiro.

— Dale, se importa? –Shane perguntou, se dirigindo ao senhor de idade

— Não, fique à vontade. – O senhor respondeu, me pareceu ser um senhor pacato e depois ele sorriu amigavelmente para mim – Seja bem-vinda, senhorita, - olhou para o meu sobrenome na minha camiseta – Lopes.

— Obrigada, - agradeci, meio sem jeito, já que não era normal eu ser tratada com tanta cortesia, mesmo nos dias passados – mas provavelmente não vou ficar por mais de algumas horas.

Shane me chamou e entrou no trailer, o qual era até aconchegante, mas era muito apertado para mim. Ele deixou a espingarda em cima da pequena mesa embutida e se sentou, olhando para mim, esperando.

Parecia que era o líder.

Tirei a minha mochila das minhas costas e a apoiei no chão, perto dos meus pés enquanto me sentava à mesa com ele, na sua frente. Antes que eu perguntasse se era um interrogatório, ele se pronunciou.

— Primeira-Tenente Lopes, Chefe. – Falou de forma formal, respeitosa – De qual Brigada? – Perguntou interessado

— Infantaria. – Respondi automaticamente

— Esteve em guerras?

— Iraque, 2004 e 2006. – Respondi novamente – Afeganistão no ano passado. Desculpe, isso é algum tipo de interrogatório? – Resolvi perguntar

— Não, - ele respondeu soltando um riso – eu só estava curioso. Queria saber mais sobre a mulher que conseguiu colocar Jones no lugar dele.

Um quase sorriso brotou em meus lábios e eu balancei a cabeça negativamente.

— Não acredito que tenha tantas pessoas aqui, - comentei, mudando de assunto – durante semanas eu não encontrei ninguém, pensei que todos tinham virado canibais...

— É assim que os chama? – Shane perguntou – Nós os chamamos de Caminhantes ou Mordedores, mas fique livre para chamar de Zumbis e Canibais se quiser.

— Zumbis? – Perguntei soltando um riso – Como nos livros. Droga, se fosse para acontecer um apocalipse podia ter sido o do Harry Potter.

Shane riu com o meu comentário e me disse que eu era livre para ficar ou ir embora, a escolha era minha, mas que ele precisava de mais gente como eu, que sabia empunhar uma arma e proteger as pessoas, pois estava praticamente sozinho nesse quesito. Como estava cansada, aceitei esse trabalho temporariamente, eu não queria passar muito tempo perto de Adrian, já que eu havia ligado o botão do foda-se para ele. Mas eu realmente precisava dormir pelo menos uma noite com os dois olhos fechados.

O policial me arrumou um espaço para montar a minha barraca, a qual, eu nunca havia usado desde que botei os pés nos Estados Unidos. O lugar era um pouco afastado, mas depois da minha, ainda tinha umas duas ou três barracas para ser o final do acampamento. Pela primeira vez, não me importei em ser de tarde e fui dormir, sem me preocupar com aquelas coisas. Eu sabia que eles matariam o primeiro Caminhante, como Shane disse que falam, ao entrar no acampamento.