O Corvo

Dia 8 — A sombra de um corvo


Bosque Dourado era apenas um nome bonito dado a uma trilha para as ruínas de um castelo, que há muito, mesmo quando ainda inteiro, não tinha um lorde. Dizia-se que os elfos viveram ali antes da chegada dos humanos, e anteriores a estes, os próprios deuses gostavam de habitar o local, bebendo de seu néctar dourado que incandescia com a luz do sol. Entretanto, todos sabiam que o néctar dos deuses era prateado.

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Corvo focou-se em uma oração silenciosa, enquanto o trio caminhava na trilha sob a iluminação noturna dos astros. Na distância era possível ouvir o som de aço chocando contra aço, galhos partindo-se e gritos fervorosos, tanto os de Líria quanto os de Dargil. Ocorria ali um frenesi de batalha que transmitia um vertiginoso suspense.

Quem está vencendo? Deuses, por favor, que seja ela.

— Chegamos. — A voz de Garian veio a tona, firme e sussurrante.

— Está pronto, garoto? — Tadeo colocou a mão em seu ombro.

Corvo olhou para frente, e então para cima, vislumbrando uma torre e parte de uma muralha. A torre beirava seus cinco metros, e a muralha não passava muito distante disto. Abaixo das janelas da torre, várias gárgulas olhavam-no, gargalhando por detrás do sorriso de dentes pontiagudos. Anos são dias para elas, refletiu o aprendiz, e me enxergam como mais um humano que fracassa.

— Estou. — Não, eu não vou fracassar. Irei perseverar. — Vamos lá.

Tadeo tomou a frente do grupo, buscando por alguma entrada na torre. Depois de alguns minutos de procura, encontraram cerca de três, mas todas estavam, de alguma forma, obstruídas, seja por uma árvore que crescera e seu tronco fechou a passagem ou por um agrupamento de rochas. Por fim, Garian sugeriu que escalassem a muralha e entrassem por uma das janelas da torre. Um pouco hesitante, Tadeo concordou que seria a melhor opção.

Garian prendeu uma corda na ponta de uma de suas adagas, girou três vezes e a lançou para cima, prendendo-a ao redor de um desnível da muralha. Colocou os dois pés na parede e escalou. Ele era habilidoso, movia-se com graciosidade enquanto pulava de pedra em pedra, amarrava uma corda aqui e outra ali, e por fim alcançou o topo. Jogou uma longa corda para baixo, permitindo um acesso mais fácil aos outros dois. Tadeo sorriu satisfeito.

— Não vou conseguir subir. — Protestou Corvo. — Sou gordo.

— É forte. — Tadeo o entregou a corda. — Vai lá.

Corvo hesitou, mas por fim, subiu. Os primeiros metros foram os mais fáceis, desengonçados, porém firmes. Na medida com que subia, seus braços sentiam alfinetadas de dor, e o vento forte era um grande empecilho. A altura deixava-o tonto ao ponto de refletir se o que estava fazendo realmente valia a pena. Suor brilhava nas madeixas negras do aprendiz, iluminado pelo brilho prateado da lua minguante. O ar parecia escasso de alguma forma, e desejou soltar-se e se deixar cair. Fecharia os olhos e não sentiria nada. Se sobrevivesse, poderia dizer que foi um acidente. Então Tadeo gritou.

— Olhe para cima!

Os olhos de Corvo focaram no topo. Faltava muito, muito pouco. O próprio Garian estendia a mão para ele, sorrindo por ter sido capaz de escalar tudo aquilo com as próprias mãos. Desistir faria com que todo aquele esforço fosse em vão, e com este pensamento, o escudeiro chegou ao topo. Deu a mão a Garian e permitiu ser puxado.

— Boa escalada. — Elogiou o meio elfo. — Se tivesse sido mais rápido, julgaria que você estaria voando até aqui.

— Como uma águia? — Indagou, ofegante.

— Talvez como um corvo. — E riu.

Tadeo os alcançou não muito tempo depois. Por um momento, escudeiro apoiou-se nas ameias e ficou a encarar a trilha, no lugar onde supostamente Dargil e Líria deveriam estar batalhando. Era longe demais para que visse com nitidez, mas enxergou fogo; Branco e negro.

Engoliu em seco.

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— Vamos, Corvo. — Chamou o meio elfo, subindo a janela da torre e adentrando-a. Sentou-se no parapeito e ofereceu a mão para Tadeo, que aceitou e também subiu. — Dargil é o maior guerreiro entre nós, e sua mestra é, você sabe, uma paladina. Eles ficarão bem.

— Certo... — Deu uma última olhada no horizonte, a tempo de ouvir um grito agudo e o som de aço em carne, então voltou-se para a dupla. Entrou na torre.

Por dentro, as paredes davam a impressão de serem ainda mais escuras, mesmo que houvesse a iluminação dos archotes. O teto era profundo, antigo, em formato de prisma. Tadeo livrou-se de uma teia de aranha e pegou um dos archotes para guiar o grupo. Escadas de pedra aguardavam os passos do trio, infestadas de algo que talvez fosse musgo. Corvo não saberia dizer.

— Tomem cuidado com os degraus. — Instruiu Tadeo. — Eles não parecem muito confiáveis.

— Como se qualquer coisa aqui parecesse. — Rebateu Garian.

Na medida com que desciam, suas sombras os acompanhavam, ora aumentando, ora diminuindo. O fogo mortiço tramava o momento certo para se apagar e deixá-los assolados na escuridão. Com a hipótese, suas mãos suaram frio, e cerrou o punho ao redor da espada, temendo que ela escorregasse. Tinha de vencer o medo.

Quando as escadas finalmente terminaram, e viram-se em um corredor estreito e mal iluminado, um cheiro pútrido começou a fortalecer-se, como se estivessem aproximando-se de um cadáver. Corvo sentiu náuseas e seu coração acelerou, aquele cheiro era uma indicação de que estavam se aproximando do objetivo. Havia uma única porta de madeira no final do corredor, iluminada por dois pares de tochas.

Tadeo parou de andar.

— O que houve? — Perguntou Garian, colocando-se ao seu lado.

— Não grita. — E apontou.

Corvo e Garian acompanharam o dedo de Tadeo com grande temor, avistando um punhado de vísceras rodeadas de moscas em um canto distante. Corvo desviou o olhar, afastando a mente do cheiro e da imagem que ficou gravada em seu pensamento. O meio elfo abriu a boca, mas Tadeo tapou com a mão livre.

— Eu não ia gritar. — Defendeu-se Garian, afastando a mão do amigo.

— Então o que ia fazer? — Colocou a clava nos ombros.

— Dizer para ficar em alerta. Tem alguém vindo.

Corvo e Tadeo voltaram os olhares para a porta de madeira, que abriu-se em um ranger de agonia. De dentro dela, uma figura vestida em um manto verde musgo arrastou-se para fora. Com mãos pálidas e unhas compridas, tirou o capuz que escondia seu rosto.

O trio ergueu suas armas, ofensivos.

— Hum. — A voz trêmula e envelhecida grunhiu. A face era de um homem ranzinza e destruído pelo tempo. Tinha olhos descoloridos e sem vida. — Vocês estão juntos da paladina e do guerreiro?

Nenhum dos três atreveu-se responder, então continuou:

— Estão, sim. Fedem como eles. — Deu um passo para frente. Seus movimentos eram como os de um galho prestes a romper, estalados. — Os dois estão nos dando muito trabalho... Mas não serão páreos para todos nós. — Deu uma piscada longa e seguiu em um segundo passo. — Não temos interesse algum em vocês, homens velhos e feitos, mas talvez o garoto nos seja útil. — Apontou para Corvo, que retesou o maxilar. — Se deixarem as armas no chão, talvez eu permita que saiam vivos e inteiros.

— Você é o líder? — Rosnou Tadeo.

— O líder é o deus que tudo assola. Eu sou apenas... — Abriu as mãos e os dedos, em um gesto abrangente. Suas unhas eram cheias de musgos e sangue seco. —... Um mediador.

Tadeo avançou contra o necromante, girando sua clava em um potente golpe, mas a sombra do velho emergiu da parede, como se fosse uma matéria concreta e escura, aparando o golpe.

— Corvo, prepare-se. — Garian girou duas adagas na mão. — A partir de agora, qualquer movimento que fizer pode levá-lo a morte.

Tadeo recuou a clava e afastou-se com um pulo, e o necromante abriu um sorriso tão sombrio quanto o das gárgulas. Corvo fechou ambos os olhos, dominando seu medo e fazendo uma oração.

— As sombras... Elas são fortes...