O barulho do secador se misturava com sua voz no banheiro. Coloquei o embrulho sobre a cama e me concentrei em cada canto do apartamento. Se Ódio tivesse cruzado o caminho de Amy, deveria ter algum vestígio ali. Olhei por todos os lados até que Draco miou em tom de reprovação ou apenas para alertar de que eu estava parecendo um louco. Amy saiu do banheiro e eu disfarcei enquanto mexia com o gato nos pés da cama.

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— Já estão se matando? – Ela se sentou na cama e pegou o embrulho – O que é isso?

— Ah, é um presente.

Ela abriu a caixa e desembrulhou o papel de seda roxo puxando pelas alças um delicado vestido longo estilo egípcio de seda pura e branco algodão. O decote era um pouco cavado e na cintura estava um lindo cinto de diamantes pequeninos brilhando como estrelas e alguns pedaços de rubis tão vermelhas quanto sangue. Ele era longo e levemente esvoaçante. Os olhos de Amy brilharam e minha pele queimou ao imaginar ela dentro do vestido, ou melhor, ao me imaginar tirando aquele vestido dela.

— Eros...é lindo!

— Eu disse que você não ia de calça jeans.

— Como você conseguiu isso?

— É um segredo.

Ela me encarou:

— Mais um dos seus segredos.

Suspirei:

— Eu juro que um dia não vai mais existir nenhum segredo.

— Saiba que cobrarei esse juramento.

Eu ri e tentei mudar de assunto:

— Amy...você disse que vê almas perdidas desde pequena. Certo?

— Sim. Por que?

— Eu estava pensando - Ela guardava o vestido com cuidado novamente na caixa – você tem visto alguém? Além de mim, claro.

Ela ficou parada um pouco olhando a mesa de desenhos:

— Não. Faz tempo que não vejo ninguém. No mesmo dia em que te vi, lembro de ter visto uma outra garota. Parecia ter oito ou nove anos..., mas ela sumiu antes que eu pudesse dizer algo. – Ela colocou a caixa sobre os desenhos e se sentou na cama novamente cruzando as penas e me olhado. – Por que?

Dei de ombros:

— Curiosidade...vamos dormir? Amanhã você tem uma encomenda não é?

— Ah, nem me lembre...odeio mexer com rosas.

Ela se arrumou na cama e eu apaguei a luz. Assim que deitamos e ela pegou no sono, a tempestade começou. Fiquei encarando a janela por um tempo, vendo cada pedrinha de gelo espancar o vidro como se de repente Ódio fosse aparecer ali. Mas ela não apareceu.

Ninguém apareceu.

Apenas a chuva banhada de granizo e um forte vento. Amy tremeu do meu lado e eu a abracei com mais força.

O dia na floricultura foi banhado por melodias do tipo: “Ai meu dedo. ”, “ Mas que droga de espinho! ”, “ Mais que inferno! Vou ficar sem sangue”, “Flor maldita! ”.

Quando chegamos em casa a visão dos arranjos que Amy havia feito durante o dia ainda me impressionava. Um mais lindo que o outro, como a própria noiva havia dito entre lagrimas. Os dedos de Amy estavam todos furados e alguns haviam ganhado um band aid da Hello Kitty que Nora guardava no caixa. O frio ainda cortava o ar da cidade e em todos os lugares falavam das enchentes. Amy estava perdida em pensamentos enquanto fazia uma sopa.

Continuou assim enquanto comeu e foi dormir silenciosa.

Eu fiquei sentado no pé da cama observando seu sono.

Seus pensamentos me atormentaram.

Ela havia visto a felicidade da noiva e ficou se perguntando se algum dia aquilo seria dela também.

Me lembrei de quando voltávamos para casa, ela olhou a aliança em seu dedo e sua mente permitiu a imagem de Gael esperando ela no altar de braços abertos. Sua imaginação rolou alto permitindo-a sonhar com um futuro. Eu caminhei ao seu lado espiando sua imaginação até que ela parou e me olhou. Sorriu e logo em seguida seus olhos se encherem de lagrimas, mas ela apenas continuou andando. Seu último pensamento antes de começar a cantarolar foi a lembrança da noite em que nos beijamos.

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Agora ela estava ali, deitada, dormindo profundamente e se sentindo culpada por estar com Gael e pensando em mim.

Eu já havia pensado em apagar novamente sua memória e continuar apagando até que chegasse o fim de sua vida, mas a visão do pavão negro no horizonte na noite anterior me fez esquecer essa ideia.

Talvez fosse apenas uma coincidência, talvez Ódio ou um dos seus Seres estavam apenas passando por ali. Mas o seguro morreu de velho e eu não poderia vacilar com a segurança de Amy.

O dia amanheceu tomado por nuvens escuras e sem esperanças de um raio de sol. Deixei Amy dormindo e sai para passear pelo bairro e antes que eu percebesse estava na floricultura. Nora já estava lá varrendo lentamente algumas folhas secas que haviam caído dos arranjos de rosas. A porta estava aberta porem a placa dizia que estavam fechados para limpeza. Assim que entrei Nora me encarou e sorriu. Depois continuou a varrer normalmente como se eu não estivesse ali. Aquela mulher com certeza me via! E eu estava disposto a provar isso, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa Gael entrou com um sorriso largo:

— Nora!

Ela o olhou e o abraçou como quem abraça um filho.

— Ora, o que está fazendo aqui tão cedo? A menina Amy ainda não chegou.

— Eu sei, eu sei. Vim para garantir que a senhora irá amanhã! – Ele segurava as mãos de Nora com uma ternura incrível e ela correspondia. – Eu não aceitarei um não com resposta!

— Eu irei..., mas só por que você é extremamente charmoso e talentoso!

Os dois ficaram conversando sobre flores e sobre a juventude de Amy, eu observei por um tempo até ouvir um chamado. A voz de Flerah na minha cabeça foi calma, porem eu conhecia minha filha bem o bastante para saber que o assunto era sério. Assim que cheguei em casa ela me esperava no portão.

— Meu pai.

Beijei o alto de sua cabeça.

— Minha filha, o que houve?

— É o Sucesso. Ou melhor um dos seus Seres. Ele foi desfeito.

Eu a olhei sem entender o motivo daquilo ser importante.

— Flerah, eu sei que somos Seres do Amor, mas infelizmente não podemos nos intrometer na criação dos outros Seres.

— Eu sei! Mas é aí que está o problema. O nome dele era Irley...ele era o primeiro do Sucesso e ele jura de pés juntos que não desfez o filho.

Eu a encarei tentando entender aquilo. Só exista um meio de desfazer um Ser, queimar o seu objeto de criação e apenas o seu criador ou o próprio Ser tinha acesso a isso. Se outro Ser tentar pegar o arco e flecha de algumas das minhas filhas não conseguirá pois eles irão desparecer instantaneamente e reaparecer nas mãos delas. Se Sucesso não havia desfeito o filho, a possibilidade de outro fazer isso era nula.

— Flerah, você tem certeza disso?

— Sim. Encontrei Filone hoje em Paris, a primeira do Vicio, ela me contou. Aconteceu essa madrugada. Sucesso está desesperado e quer saber como isso pode ter acontecido. Todos estão! A notícia está correndo e a essa hora todos os Imateriais e seus Seres já estão sabendo.

— Eu imagino...

— Pai, é possível que alguém possa nos desfazer?

— Não. Apenas um criador pode desfazer seu Ser.

— Então como isso pode ter acontecido? Sucesso está mentindo?

— Provavelmente sim. Mas se esta qual é o propósito?

— E se ele não estiver mentindo?

Eu suspirei:

— Então teremos uma guerra. Vamos ao encontro do Sucesso. Outros também já estão lá. Posso senti-los.

Me virei e abri uma Porta. Observei os adornos surgirem e brilharem esperando eu dizer o destino desejado. Engoli em seco e segurei a mão de Flerah:

— Portugal, Algar de Benagil.

A Porta se abriu na margem e assim que passamos e ela se fechou o cheiro do mar invadiu meu pulmão e senti meu coturno sendo engolido pela areia. Flerah olhou em volta assustada e segurou com mais força a minha mão.

Eu observei a confusão.

Em um canto Sucesso gritava com Morte e Vicio que ele não havia feito aquilo.

Ele estava destruído e eu não consegui acreditar que ele teria desfeito seu primeiro e atuasse tão bem assim. Seu terno de seda branco sempre alinhado estava todo amassado e os cabelos longos e lisos vermelhos como sangue estavam desgrenhados. Em outro ponto Honestidade, Vida e Inspiração conversavam sobre as possibilidades cada qual de mão dadas com seus primeiros. Ao me verem balançaram a cabeça em comprimento e logo viraram a atenção para a Porta que se abria, dela o demônio loiro deu as caras em um vestido curto e justo de couro negro e ao seu lado, o seu primeiro me encarou como seu eu fosse a maior ofensa do planeta.

Ódio o cutucou e ele abaixou a cabeça. Antes que algo pudesse ser dito, outra Porta foi aberta e Sabedoria apareceu com um sorriso junto com uma menina negra como a noite, de cabelos brancos e lisos e olhos verdes limão. Ela aparentava ter dezesseis anos e seu terno branco contrastava com a pele e a gravata borboleta preta. Sucesso correu para Sabedoria que logo ficou sério.

— Você sabe quem foi, não é? – Ele agarrou sabedoria pela camisa e o chacoalhou - Não esconda de mim!

— Me solte criatura! Eu não sei quem foi! – Morte puxou Sucesso e Vicio o ajudou a segura-lo – Só o que sei é que o único capaz de desfazer um Ser é o seu próprio criador.

Os dois se fuzilaram com o olhar.

— Então é isso? Você está me acusando?

— Não. Estou apenas dizendo o que sei.

Sucesso se soltou e passou as mãos pelo cabelo deixando claro as evidencias de desespero e incredulidade pela situação.

— Saibam que se tivéssemos efeito uns sobre os outros eu me entregaria de braços abertos a Honestidade apenas para ver cada um de vocês engolindo essas acusações! – Ele caiu de joelhos – Eu não desfiz ele...eu não matei meu filho!

A frase ecoou pela ilha e todos nós, até aqueles que duvidavam da inocência dele, sentimos sua dor.

Após algum tempo de muitas especulações uma porta se abriu e um dos Seres do Sucesso o levou para casa dizendo que já estavam sofrendo o bastante e que não precisavam de acusações.

Permanecemos por mais um tempo ali até que um por um, fomos embora. Ao chegar em casa garanti que todas estavam em segurança e fui para meu quarto. Deitei e encarei o teto branco lembrando do desespero do Sucesso. Sentindo ainda o gosto da sua dor.

Me levantei e tentei esquecer o acontecido. Tomei um banho, coloquei uma calça de moletom apenas e caminhei pela casa. Algumas das meninas estavam cantando e dançando e eu as acompanhei por um tempo. Depois fiquei com outras na biblioteca, ajudei Flerah na contagem das flechas e pratiquei tiro ao alvo com Arly.

Na noite do dia seguinte eu apareci na mostra de Gael apenas para perder o folego ao ver Amy deslumbrante no vestido que Honestidade havia dado. Fiquei de longe, escondido dela, observando as obras do jovem pintor. Todas eram lindas, mas a estrela principal das obras era o quadro de uma jovem sorrindo. Os cabelos vermelhos caiam em volta do seu rosto com cachos perfeitos e seus olhos, cada um de uma cor, pareciam vibrar na tela. Ela estava tão feliz na pintura que era impossível não sorrir também ao ver.

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Á meia-noite Gael agradeceu a presença de todos, comemorou pelo sucesso das vendas e puxou Amy para frente da plateia. Beijou sua testa e ajoelhou.

— La mia ispirazione...aceitaria ser minha esposa?

Ele abriu uma caixinha de veludo preto mostrando um anel dourado com uma pequena pérola na ponta. Amy começou a chorar e todos aplaudiram.

Minha respiração começou a falhar e um zunido forte cortou meus ouvidos. Minha visão embaçou e eu nem ao menos me dei conta de que estava na praia deserta até que uma onda me atingiu com força na areia.