Vazios

XLIII


Wanda estava parada na frente da porta de Bucky Barnes há cinco minutos inteiros. Por sorte ninguém a vira ali, com a mão erguida e hesitante, pronta e ao mesmo tempo despreparada para lidar com a situação. Natasha riria dela, Shuri a desprezaria. Sam ficaria ofendido, Steve confuso. Inspirou fundo pela décima vez. Tinha que explicar o que acontecera na Biblioteca Real. Tinha mesmo? Ela sentia que sim e sentia que não. E sem esperar que ela decidisse afinal qual era a melhor opção, a porta se abriu.

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— Eu estava me perguntando quando você bateria. — Bucky disse, encostado no batente da porta com o braço metálico. Ele deu um meio sorriso, daqueles de lado, e depois parecia ter se arrependido, como se sua pose casual fosse forjada. Ele lembrou-se como estivera na mesma posição antes, só que sem a coragem de entrar no quarto e consolá-la em seu choro. — Digo, porque dava para te ouvir murmurando um pouco do lado de fora, não que eu esperasse que viesse aqui por algum motivo e… Bom, no que eu posso te ajudar?

— Bem, eu… — A boca de Wanda ficou seca. Apertou mais o livro roxo com a outra mão, a esquerda, fato que Bucky pareceu notar. Nem ela sabia porque tinha trazido o livro. — Acho que devo algumas respostas a você, pelo o que houve.

— Você não tem que se explicar. Não se não quiser.

— Eu gostava do jeito que não havia segredos entre nós quando…— Ela engoliu seco. — Quando nós encontramos.

"E não quero que isso acabe." Ela pensou, sem ousar dizer tais palavras, e ao mesmo tempo desejando que ele as entendesse.

Silêncio.

— Entre.

O quarto dele era um quarto padrão, parecia de hotel. Cinza, com detalhes em madeira e metal. Ele dobrava as roupas de cama perfeitamente, talvez do jeito que fazia no exército. No entanto, isso fazia com que o ar do quarto fosse impessoal, nulo. Como se ninguém morasse ali.

Wanda se virou para James Barnes, tentando ao máximo se manter calma enquanto assistia sua aura escura e retraída. Ela então tomou súbita consciência o quanto sentia-se menor que ele, mesmo que a diferença fosse de dez centímetros ao máximo. Era forte, encorpado, mas ela não sentia perigo na presença do Soldado Invernal, hoje com um braço metálico sem estrela vermelha e sim com linhas levemente douradas. James vestia roupas básicas, blusa até os cotovelos e um jeans. Havia ainda aquela corrente, aquele puxão, que a atraía para dentro de seus pensamentos e memórias, mas aquele não era o momento, não o de repetir a invasão que fizera ao longo de dias. De todas as pessoas, Barnes era a que merecia mais respostas dela.

Ele fez sinal para que se sentasse e ela o obedeceu, escolhendo a ponta da cama. Por sua vez, ele apoiou os braços no encosto de uma cadeira, que dava de frente para uma simples escrivaninha também vazia, e esperou o que a Feiticeira tinha a dizer. Até que notou um curativo em seu braço, no local onde sempre inserem-se agulhas, tira-se sangue.

— O que houve com seu braço? Não está se sentindo bem?

— Oh, é apenas um exame de sangue. Nada demais.

Ele soltou um “Hm” não bem convencido e permaneceu reticente, ao passo que Wanda sentia um engasgo de tão forte que seu coração batia.

— Eu… — A frase quase morreu em seus lábios. — Eu não sei o que houve para entrar na sua cabeça da primeira vez. Eu tentei descobrir na segunda, na terceira… E ainda não sei a razão. Só entendi que suas memórias se alinhavam com coisas que eu sentia, e que você sentiu.

— Eu sinto muito que tenha sentido todas essas coisas. E que tenha visto o que viu.

— Não é isso o que quero dizer. Na verdade sou eu que tenho que pedir desculpas. — Ela levantou os olhos. — O que eu quero dizer é que você foi uma das pessoas mais honestas que já encontrei. Ou que me encontrou. E eu devo isso a você, James, respostas. Ou um meio de se livrar tudo o que a HYDRA fez contigo.

— Wanda… — Ele deu um passo para frente, parou, soltou a cadeira. Depois sentou-se nela, do modo contrário e com encosto da cadeira entre os joelhos, apoiando os braços e o queixo por cima. Tinha pensado em mil maneiras de conversar com ela depois da situação estranha envolvendo o gato preto e o livro agourento. Queria falar com ela, não queria. E ela tinha vindo ali, por vontade própria. — Você não me deve nada.

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— Sei que Shuri começou seu tratamento e… Que começou a dar certo depois que eu identifiquei algumas palavras da ativação do Soldado Invernal. E eu gostaria de saber se você me permitiria participar disso. Do seu processo de cura.

Ele não respondeu. Fazia muito tempo que alguém lhe perguntara o que ele desejava e James Barnes não sabia mais como agir exatamente sem ordens. Se ela dissesse que iria mexer na sua cabeça, ele concordaria - pois confiava nela, de algum jeito. Se ela dissesse que estava enojada com o que tinha visto, ele concordaria - pois sabia que era verdade, por mais que doesse perder companhia tal estranha, etérea e silenciosa.

— Se não quiser, tudo bem. — Wanda apertou mais o livro contra o peito.

— Não, é que… Não é doloroso para você?

— Sim. Mas já disse que muito do que você viu, eu vi também. Senti também. A diferença é que eu carrego o peso de ter escolhido certas coisas. Você não escolheu tudo isso.

Ele assentiu. Então era verdade, aquela mulher de aspecto esquálido sabia de tudo, ou ao menos parecia saber de todas as coisas como um jovem oráculo. E ela enxergava o lado sombrio dele por inteiro, a fundo, e ainda lhe oferecia a mão. Ele estava tentado a aceitar.

— Como vamos fazer isso?

Wanda sorriu aliviada.

— Vossa Alteza, Shuri, vai nos guiar. Acredito que será mais seguro assim.

— E o que o livro, ou o gato, têm a ver com isso?

— Bom, eu… Tenho um segredo. Eu… — Os lábios dela tremeram. — Tenho habilidades que não foram bem explicadas. Só estou tentando desenvolvê-los. Para ajudar mais pessoas. Para nunca mais ferir alguém. Mas descobri um jeito não muito científico de treinar e isso pode assustar algumas pessoas.

— Parece com o que estou fazendo. Só ao invés de tirar algo, você vai explorá-lo.

— É uma boa comparação.

— Você contou a mais alguém?

— Não. Steve está… Bem ocupado salvando o mundo.

Ele entendeu. Passou dois anos tentando compreender quem ele era e quem tinha sido, como viera para ali no século XXI, enquanto assistia o querido da América, seu melhor amigo, continuar com sua tendência suicida de heroísmo. Descobriu que era tudo o que Steve não era e por isso permaneceu no anonimato. Como ele poderia ter companhia tão indigna ao seu lado?

Bucky abriu a boca para contestar seus próprios pensamentos. Se Wanda acreditava ser tão desprezível quanto ele, tão instável, faria sentido ela ser tão evasiva e manter segredos tão enterrados. No entanto, estava errada - ao menos sobre ela mesma. E ao fim de todos estes devaneios, ele entendeu o que ela queria dizer com “os sentimentos se alinharem aos dele” e isto era aterrorizante. Significava o qual miserável ela se sentia.

— Então… — Ele alongou as vogais na garganta, passando as pontas dos dedos pela barba por fazer. — Vamos arrumar encrenca juntos, boneca?

A Feiticeira Escarlate apenas inclinou a cabeça, um sorriso florescendo dos seus lábios enquanto Bucky xingava-se internamente por tê-la chamado assim. Quem diria tal disparate era o Bucky do passado, aquele de andar tranquilo e flerte engatilhado, e não tinha certeza de que era a mesma pessoa.

— Eu espero que não encontremos problemas, James. Mas podemos fazer isso juntos.

Ele soltou um riso nervoso e discreto, aliviado por ela não ter se ofendido e simultaneamente confuso pela mesma razão.

— Você tem um plano?

— Não, mas Shuri parece saber o que está fazendo. Disse que se você aceitasse, poderíamos nos reunir no “lab” dela amanhã, às dez da manhã.

— “Lab”?

— Laboratório.

— Ah, sim. Já fui lá uma vez ou outra. Acho que duas. Só que a princesa não se referia como “lab”. Vocês parecem próximas.

— Do jeito mais disfuncional e estranho possível.

— Tipo eu e Steve? Nossa amizade começou de um jeito estranho também, aquele briguento.

— Com mais troca de socos envolvido. E uma perna quebrada.

Bucky soltou um assobio baixo.

— Temos um acordo? — Wanda quis confirmar.

— Acho que sim. Não tenho nada programado. — “E nenhuma lanchonete para comprar milkshakes” ele quis continuar, mas seria muito atrevimento.

— Certo. Então… Acho que já vou, James.

Wanda levantou-se e ele também, para abrir a porta. Ela deu um tímido aceno de despedida, entretanto foi impedida de ir com uma pergunta:

— Por que você me chama de “James”?

— Eu… Não sei. — Faltou-lhe ar e sobrou-lhe um ataque cardíaco. — Por que você me chama de “boneca”?

Ele parecia ter levado um chute no estômago.

— Isso te incomoda?

— Não. — Ela nem parou para pensar. — “James” te incomoda?

— Não.

O silêncio foi duro.

— Certo… — Wanda meneou a cabeça, olhou para os próprios pés. Só conseguiu encará-lo de volta depois de alguns segundos, sem querer remoer o quanto os olhos e a aura dele eram convidativos. — Boa noite, então, James.

Ele abriu a boca, mas o som demorou a vir.

— Boa noite, boneca.

Ambos só foram conseguir dormir tarde da noite, pensando no que diabos estava acontecendo e por que eles eram tão estúpidos.

Wanda, no quarto, ainda tinha o livro aberto e diversos textos para ler, bem como figuras e gráficos. Não foi capaz de se focar em muita coisa, apenas lia algo ali e acolá, levitando a moeda com o símbolo de Ouroboros. A Feiticeira brincava distraidamente com a própria magia, murmurou “Vegsvisir” e observou a runa girar de maneira lenta e com um brilho cálido. Sono finalmente a invadia e ela mal percebeu que a seta apontava para o quarto da frente.

* * *

Natasha partiu.

A Feiticeira Escarlate tentava não pensar muito sobre isso, sobre a despedida breve e olhos marejados, porém sem lágrimas de fato. A russa odiava despedidas, apesar de sua sentença de que “nada dura para sempre”. Então ela se foi, dizendo breve palavras, recomendando vodka para Wanda e juízo para Sam, que reclamou sempre receber café dela e não deixou de notar que tal hábito era compartilhado com Clint Barton. À Steve, um abraço e a ameaça para deixar Wanda usar o longo suéter vermelho com apenas as botas de cano longo. Ela riu da expressão do Capitão América, o ofendeu chamando-o de fóssil e antiquado, mas lançou um olhar demorado para Barnes ao mencionar tal coisa.

Wanda engoliu em seco naquele instante.

Em poucos segundos, sua amiga não estava mais lá e uma parte de Wanda também parecia ter desaparecido de seu peito.

Ainda era cedo e Wanda estava sozinha. Somente iria no “lab” de Shuri mais tarde e os rapazes do grupo foram todos treinar em torno da arena. Ela viu de relance Sam correr em seu ritmo normal e por vezes desacelerar por conta do cansaço, enquanto Steve seguia na velocidade que o soro do supersoldado permitia. Quando Bucky juntou-se a eles, pensou que dispararia para alcançar seu melhor amigo, porém ele pareceu querer correr ao lado do Falcão, talvez puxar conversa ou só ficar ao seu lado durante o exercício.

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Foi motivação suficiente para que Sam acelerasse as passadas e aumentasse a distância entre os dois.

Quando a situação não podia ficar mais estranha, o rei T’Challa apareceu e Wanda só pôde estreitar os olhos para tudo aquilo, observando do Alto de uma janela. “Isso é uma versão distorcida de pega-pega?” ela refletiu, pois Sam tentava se distanciar de Bucky, que por sua vez evitava o monarca de Wakanda. Steve permanecia alheio, acreditando que todos somente desejavam manter a boa forma.

Havia a vontade de estar ali e vencer de todos, brincar com aquelas pessoas maravilhosas, mas a verdade é que as noites não eram gentis com jovem de Sokovia.

Estava irritada. Não tinha contado uma infinidade de números até dormir, prática que mantia quando seu sono era leve demais. Tampouco tivera dor de cabeça de tanto chorar. A verdade é que cair no sono foi fácil como há muito tempo não era, porém seus sonhos a levaram a lugares ainda mais fundos. Agora ela revidava num saco de areia, numa sala de treinamento fechada e ladeada por janelas. O ambiente era climatizado, embora gotas de suor escorressem por suas têmporas e braços, colando um pouco a roupa vermelha e preta de treino sobre sua pele. Em sua pulseira kimoyo largada em cima de banco próximo, tocava a playlist que ela montara inspirada em seu gêmeo que gostava de ouvir músicas dos 80 e vestir roupas esportivas da Adidas. Enquanto ela esmurrava o saco de areia, a batida suave de “Physical” de Olivia Newton-John deixava a situação ainda mais ridícula.

O pesadelo tinha sido um tanto diferente, mas ela não conseguia lembrar-se ao certo dos detalhes. Mais uma vez a montanha coberta de neve, ladeada por coníferas. Seria Montanha Wungadore? Havia duas mulheres, disso ela tinha certeza. Talvez uma delas fosse a própria Wanda, tamanha era a semelhança. Gritos e uma presença demoníaca.

Wanda bateu mais forte, energia escarlate envolvendo seus braços e banhando seus olhos. Tinha a necessidade de socar alguma coisa. Arco e flecha não adiantaria, nem os exercícios de ballet que Natasha demonstrou no dia anterior, tampouco irritar Shuri com sua presença antes do horário combinado. A wakandana era metódica e a Feiticeira não estava com paciência para tais manias. Seus braços já doíam de cansaço, deixando seus socos fracos. Ela apoiou-se com as duas mãos na borda de cima, relando os dedos na corrente que suspendia o item de box no teto. Era um equipamento instalado para Steve Rogers ali em Wakanda e ela refletiu se haveria algum desses em Outer Heaven.

Inspirou fundo, soltou um arquejo e voltou a bater no couro.

Por que? Estava fazendo tudo certo, ou bem perto disso. Tentando. Por que sua cabeça ainda lhe pregava peças, com sonhos e pesadelos, esperanças que nunca iriam acontecer?

Quem sabe magia respondesse tais perguntas. Leu mais sobre auras e chackras, porém tais respostas pareciam distantes e ela não aguentava mais jogos. Wanda transbordava ira. Caótica, e então arrependida por ser assim.

Outra onda de raiva atravessou o coração da Feiticeira e os limites do seu corpo mal foram páreos para tal maré. Outros utensílios da academia tremeram, bem como o espelho e o vidro das janelas. Ela sentia poder pesado e pulsante envolver suas mãos, logo quando ia preparar-se para mais um golpe. Quase viu, de forma imaginada, o saco de areia explodir ou ser arremessado tão longe e tão forte que quebraria tudo. E ela desejava fazer tudo isso.

Sua mão parou no último instante, de repente consciente de seus atos, e ela agarrou-se ao saco de areia, colando a testa contra sua superfície.

— Você está se contendo. — Wanda virou seu torso devagar para a origem da voz. James Barnes desceu as escadas, aproximou-se e olhou para o saco, depois para as mãos da Feiticeira envoltas em bandagens,que já acumulavam o roxo de hematomas nas juntas. Ele pegou-as com delicadeza. — Mas não é bom fazer um treino pesado sem luvas. Vai estragar seus punhos.

Ela deu de ombros, desviou o olhar. Queria recolher as mãos, embora o toque fosse gentil. Só desfez o enlace quando Bucky também o fez. Wanda então arregalou os olhos, processando o que ele havia dito e como havia dito, e que havia pegado nas mãos dele. Ele havia falado em outra língua. Wanda sabia que o Soldado Invernal falava russo. Não achava, porém, que James Barnes conseguiria acessar esse conhecimento. Falar a língua do inverno. A sensação de que ele a entendia cresceu, pensamento que Wanda entendia ser mera suposição.

— Sim. Estou me contendo. Essa é a ideia.

Ele assentiu, embora não concordasse. Sabia que outras nações a consideraram responsável por muitas catástrofes, mas sabia também que essas nações gostavam de culpar uma pessoa e relevar toda a estrutura que a fazia cometer erros. Não havia questionamento sobre a miséria e bombas em Sokovia, mas sim sobre uma mulher capaz dos mais terríveis atos para acabar com tal sofrimento. Ela errou, é verdade. Mas não só ela. Atrás de tanta ira mal contida, havia dor. Atrás da guerra em Sokovia, havia quem lucrava com ela.

E ele fizera parte do time que arrancava tais lucros, um dia. Mesmo que não quisesse.

— Se importa se eu…?

Wanda deu de ombros, enquanto esquivava-se para tomar um gole de água. Ele também se ausentou por alguns instantes para pegar um par de luvas na prateleira da parede oposta e Wanda achou que iria assisti-lo treinar sozinho, ainda que estranhasse o cabelo solto dele.

— Boneca?— Ele chamou.— Hora de pôr as luvas.

Ao som de “Maniac”, de Michael Sembello, Wanda recebeu algumas lições de box, como deveria posicionar melhor sua mão para que os socos não doessem tanto, ainda que o impacto fosse bruto. Ele ensinou sobre a posição dos braços quando quisesse se esquivar e sobre como deveria ter os pés e joelhos ágeis e ainda assim firmes. Bucky parecia concentrado na missão de ajudá-la até que veio o refrão de “What a Feeling” de Irene Cara. Ele simplesmente parou, segurando o saco de areia, e perguntou:

— O que é isso?

— Anos 80.

— E... Qual era a música favorita do seu irmão?

— Não sei se ele tinha favorita, mas ouvia muito “Sweet Dreams”. Vou colocar pra você ouvir.

Wanda foi até a pulseira kimoyo avançou algumas músicas para frente, despertando a batida característica daquela canção. Ele apenas balançou a cabeça, balançando o cabelo junto. Riu e ela riu também, seu coração morno com a lembrança de Pietro.

— Não está cansado? — Ela perguntou, vendo o respirar rápido. Estava de regata branca, mesmo tipo de roupa que Steve usava quando ia se exercitar. — Digo, estava já treinando com Steve e…

Bucky soltou um murmúrio.

— Nós terminamos lá. T’Challa humilhou todo mundo. E como eram oito e meia da manhã e você estava acordada, decidi… Ver se iria comigo até o tal lab da princesa Shuri. Depois.

— Ah.

— Sem falar que dormi por tempo demais na câmara criogênica. Está na hora de fazer alguma coisa.

— Hm. James… É impressão minha ou seu braço está brilhando?

— Ah, sim. — Encarou o próprio bíceps metálico, que emitia um breve lume em suas linhas. — Você não estava lá quando T’Challa mostrou que minha prótese consegue absorver impacto e redirecionar essa energia. Disse que era uma tecnologia recente, implantada no traje dele.

— Fico feliz que não tivesse isso quando o enfrentamos.

Bucky concordou com um sorriso silencioso.

— Eu só, uh, não mostro agora porque poderia quebrar algo.

— Tudo bem. Era só curiosidade. Mas é legal.

Ele mencionou que a postura de Wanda ainda era insegura e um golpe na área dos quadris a faria ser derrubada. Wanda tentou aprumar-se da maneira correta, até mesmo lembrando-se de que Shuri já lhe dera um golpe poderoso ali, porém ainda mais insegura em saber que ele reparara até nisso. Bucky, em sua própria cabeça, defendia-se no assunto, repetindo a si mesmo que tratava-se apenas de um assunto profissional e que não havia demorado seus olhos sobre o quadril da jovem.

— Sobre o que mais quer conversar? — Wanda mudou de assunto.

Ele soltou uma risada curta.

— Não sei.

— Você tinha um cachorro?

— O quê?

— Um cachorro. Steve disse que ficou dois anos sem notícias suas e então em 2016 encontrou você num apartamento na Romênia. Tinha barras de cereais e chocolate em cima da geladeira. Parecia ter uma vida. Não sei.

— Não, eu não tinha um cachorro. — Mas ele lembrava-se de querer um. — Acho que eu era o cachorro.

— Hm. — Ela respondeu com um meio sorriso, seus olhos verdes encarando de baixo para cima. Durou um segundo a mais.

— Algo errado?

— Não, é… Você está se exercitando com o cabelo solto. Não te incomoda? Estou com o meu preso e já estou irritada.

Ele sabia que ela estava irritada por mais motivos que o cabelo.

— É que eu… não tenho nenhum prendedor.

—Oh. Bom, eu tenho mais de um. Sente ali no tatame. Posso prendê-lo pra você, mas não alcanço direito se ficar de pé.

— Sim, senhora.

Bucky Barnes sentou-se com as pernas cruzadas no piso, olhando para frente. Observou através do espelho ela ir até seus pertences, num banco ali perto, onde repousava uma pulseira típica dos cidadãos de Wakanda - que reproduzia áudio e vídeo, para sua surpresa - sua garrafa d’água e um pequeno estojo. Dali retirou um pequeno elástico preto e aproximou-se de volta em três passos. Ajoelhou-se atrás dele, murmurou algo sobre sempre arrebentar os elásticos ou perdê-los, e passou as mãos nos cabelos dele, puxando suavemente da frente para trás.

O gesto não tinha necessidade de ser demorado, tampouco cerimonioso, mas ali estava Wanda passando as pontas dos dedos nas madeixas de James, como quisera fazer há dias. Achou que seu coração seria visível batendo forte dentro do peito e lutava para não tremer os lábios ou as mãos, e até mesmo encarou o espelho para certificar-se de que não parecia muito ridícula. Quase soltou um suspiro ao vê-lo de pálpebras fechadas, sereno, e quase gritou quando ele as abriu e encarou de volta, seu olhar tão veloz e perfurante como uma bala. Ela engoliu seco.

— Pronto, James. Acho que vai ficar mais confortável agora.

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— Acho que sim.

Wanda não foi capaz de levantar-se, nem encarar de volta, mas sentia que ele ainda olhava para ela, ou a parte que ainda era visível atrás da figura dele, sentado. Houve silêncio.

— Wanda… — Ele soltou o nome dela no ar e foi como se o próprio vento tivesse dito. — Como aquelas visões foram para você?

— Eu não consigo explicar. Era como se eu fosse… Tragada para dentro das suas memórias. Não posso dizer que você me chamou. Mas houve um momento que você notou minha presença e olhou de volta. — Ela ponderou o que era real e o que não era, depois perguntou com quase as mesmas palavras de Bucky, quando se encontraram em sua mente: — Isso aconteceu?

— Sim.

— Como...Como isso funcionou pra você? Doeu?

Ele virou seu torso para Wanda, para vê-la de frente. Ela tinha os olhos muito grandes e assustados, com medo de tê-lo machucado, e Bucky sentiu-se mal porque era justamente o contrário.

— As memórias iam e vinham, o tempo todo. Você estando lá para ver ou não. Eu estava instável e… Sim, doía. Nos dois anos que me fiquei… afastado, na Romênia, mantive diários para tentar colocar alguma ordem naquilo tudo. E você viu que, em algumas lembranças, eu pedia por…

— Ajuda.

— É. — Ele deu de ombros. — Acho que você escutou.

— Houve uma ocasião que… Que eu anotei todas as palavras-chave. De ativação, em russo.

— Todas?

Wanda assentiu.

— Como você…?

— Eu vi uma sequência de tortura. Foi bem… — Ela fechou os olhos bem forte, tentando reprimir a memória. — Difícil. Mas Shuri disse que justamente isso, as palavras, podem te ajudar mais rápido.

Ele tinha a expressão mais desolada do mundo, tanto que a Feiticeira observou a aura escura dele retrair-se ainda mais perto do corpo, mais escura. Lembrou-se das palavras de Agatha Harkness sobre auras, chackras e pensamentos desequilibrados. Bucky deveria ter vários. Ele parecia querer pedir desculpas, mas ela não queria que pedisse. Não era culpa dele.

— Eu posso te dar a folha em que anotei isso, James. Se quiser.

— Preferiria fazer isso na presença da princesa. Qualquer coisa ela me põe pra dormir. Falando nisso… — Ele esticou-se, alongando os braços. Depois encarou o próprio pulso, onde estava um relógio fino, cinza e discreto. — Está quase na hora de irmos até o lab dela e acho que não gostaria de nos receber meio suados.

— Verdade. — Wanda sorriu.

James levantou-se primeiro, depois deu a mão para Wanda poder se levantar. Segundos depois de ter estendido a mão esquerda que ele notou que era sua mão metálica, mas era tarde demais: A jovem já tinha aceitado a oferta de ajuda e levantado-se também. Ele tentou não colocar muito peso naquele gesto, pois realmente era insignificante, no entanto não deixou de odiar menos o fato de ter um braço metálico capaz de quebrar traqueias.

— São nove e pouco. — Olhou mais uma vez o relógio de pulso, a voz rouca. Tinha medo de pensar certas coisas alto demais e ela ouvir, de novo. — Dá tempo para um banho e para um lanche.

— Hm.

Ele franziu a testa.

— Não está com fome?

— Não estou com vontade de comer. Ou preparar algo para comer.

— Posso fazer algo. Em retribuição pelo prendedor de cabelo.

Wanda assentiu, um sorriso tímido escapando de seus lábios.

— Combinado.