Sentimento Incompleto

Calmo por fora, desesperado por dentro


Len POV

Estar em um táxi nunca antes foi tão constrangedor, depois da pequena discussão entre minha mãe e eu. Isso colaborou de uma forma estranha para que o tempo passasse mais rápido.

A melhor parte de não ter anunciado para ninguém a conclusão da semana, é que pela primeira vez em um bom tempo pude andar pelo aeroporto feito uma pessoa normal, sem tumulto, sem aglomerações. Nem mesmo aqueles encontros por sorte ou coincidência de qualquer pessoa normal. Ou talvez essas já imaginaram a situação e evitaram, já que seria o encontro mais desconfortável da história.

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Mas o dia estava apenas começando.

Leon pareceu ter envelhecido bem mais do que os últimos anos passaram, para seus 60 e poucos anos. A expressão e postura impassíveis, de eterna desaprovação e julgamento, por outro lado, continuavam as mesmas. Assim como as roupas sérias, com aparência de quem nunca relaxava. Combinava com a minha mãe e destoava de longe para qualquer um que reparasse no meu moletom largo, jeans e All Star velho.

— Depois de todos esses escândalos desnecessários... – Leon começou, parou. Me mediu de cima a baixo, enquanto eu sentia o peso da reprovação. – Olhe para mim enquanto eu falo. Desfaça essa cara de funeral. Tenha postura de homem! – Ordenou. Olhei a contra gosto. O show de horrores começou. – Realmente, não esperava mais de você depois de tudo isso.

A personalidade amarga também era a mesma.

Não me dei o luxo de perguntar porque fez questão de pagar a passagem e vir até aqui por menos de 2 dias. Mas tenho certeza de que se não fosse esse "pequeno detalhe", nos conhecendo bem, eu simplesmente não saíria de casa nem se fosse arrastado, seria minha última esperança. É por isso que a presença dele faz sentido. É por isso que não sobrou nenhuma esperança. Apenas agradeci por dentro que não foi me encontrar antes e nem teve nenhum interesse em Rin, eu queria que ele ficasse o mais longe possível dela.

E não: ninguém veio atrás de mim, ninguém esperou o último momento para aparecer e tentar lutar para que eu ficasse de forma dramática. Ninguém seria louco o bastante para encarar essa situação, ou encarar Leon. Em poucas horas já estava dentro do avião e ele decolou, momento em que comecei a "despedida" entre os amigos e grupos que faltavam. Recebi algumas dúvidas de volta, achando que apesar de tudo não chegaria ao nível que chegou. Queria poder concordar.

Mamoru e Gumi disseram que já esperavam por isso. Ambos arrazados por termos simplesmente cedido a tal decisão. Mamoru meio que entendeu a minha decisão de não me despedir.

Miki e Piko estavam incrédulos, perguntaram o que deu em nós dois para simplesmente desistir. Eu não tinha uma resposta.

Hikari, Jun, Ayumi e Ichiro, antigos amigos da YP e o pessoal do clube de teatro, foram os que eu mais senti que ficaram chateados pela minha decisão de não me despedir, mas me apoiaram acima de tudo.

Depois de algumas horas (umas das mais entediantes da minha vida até então, onde ninguém tinha coragem de abrir a boca), tia Ágata foi a próxima na fila de mensagens: "Me perdoe, por favor. Aguente firme, fique bem e não precisa fazer tudo o que ele te obrigar. Eu vou fazer o possível por você e pela Rin. Eu amo vocês."

Eu tive a deprimente sensação de que por mais que quisesse muito, isso era tudo o que ela podia dizer. E talvez até mais, se colocando em risco por nossa causa. Me senti parte de alguma conspiração mortal. Respondi, quase implorando, para que não se culpasse e ficasse tranquila, mesmo sabendo que minhas palavras teriam pouca serventia.

A última mensagem foi de Asami: "Não importa o que aconteça, lembre-se que você sempre será bem-vindo aqui se quiser, com a Rin, seus amigos e todos nós. Seja cuidadoso com suas decisões. Desculpe."

Asami se desculpou também e por pouco eu achei que não tivesse sentido, até lembrar que fez parte de um passado complicado e poderia estar envolvida, mesmo contra sua vontade.

Cada palavra de consolo ou motivações me corroíam pouco a pouco, me lembrando constantemente do quanto eu sabia que não queria estar ali, sem ter outra escolha.

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Pensei em Yuuto também, e me lembrei que nunca fiz questão de que soubesse meu número e vice-versa. Não tive coragem de perguntar para Allana e me culpei por isso, mesmo sabendo que ele não se importaria e, se algum dia me ver novamente, estaria com um sorriso despreocupado na cara e perguntaria de algum jogo novo.

Reiko. A música e a fita que encontramos na sala do clube. Esquecemos completamente disso, e em parte foi de propósito, por falta de vontade de investigar. Por mais que eu saiba, no fundo, que não serviria de nada e talvez até piorasse tudo, ter chegado tão perto de uma resposta e depois desistir foi desmotivador.

E agora não posso fazer mais nada.

...

O tédio continuava e a viagem seria longa. Fui claramente proibido de colocar os fones, jogar ou sequer ficar com o celular em mãos por algum tempo maior, a fim de não ter desculpas para não prestar atenção quando falassem comigo. Ignorava tudo isso sempre que Leon cochilava. Minha mãe reclamava, mas não fazia nada contra.

Eu simplesmente não conseguia pregar os olhos por mais de alguns segundos. Mesmo exausto, a todo momento meu cérebro me acordava na base do susto, como se dormir ali colocasse minha vida em risco. Eu tinha mais chances de conseguir dormir em um avião caindo do que com esses dois ao meu lado. Me sentia preso, sufocado e sem espaço. Pelo menos as vistas da janelinha eram bonitas, apesar de serem parecidas a maior parte do tempo.

E assim se foram mais de 15 horas, com escala e atrasos, sem contar o caminho até o condomínio em que Leon mora. Sinceramente, eu perdi a conta e a noção do tempo nas primeiras horas. Era manhã de novo e eu nunca me senti tão cansado. Mais uma viagem de táxi até lá.

As paredes do inferno eram brancas.

A porta também.

Eu odeio branco.

A casa continuava exatamente do jeito que eu tinha a infelicidade de lembrar. A decoração classuda, floral, carregada e brega, em tons pastéis desbotados e madeira. O rifle de caça orgulhosamente exposto em cima da lareira me deu às boas-vindas oficiais, não combinava com o ambiente em si, mas deixava bem claro o tipo de pessoa que morava ali.

Depois de seguir as ordens de subir as escadas, constatei em seguida que o meu antigo quarto ainda existia. Os móveis sempre foram sem graça e neutros, só a cama que foi trocada e tudo o que enchia os armários e prateleiras foi retirado, sejá lá para onde. O maior alívio do dia foi encontrar a chave no trinco, esquecida ao lado de dentro.

Não prestei atenção em mais nada, tranquei a porta, troquei de roupa e me escondi embaixo do edredom. Esqueci de mandar a mensagem avisando Rin que cheguei vivo com a internet do aeroporto. Ainda não tinha como usar meu chip e nem advinhar a senha do wi-fi, cuja existência aqui é quase um milagre.

Decepcionado, consegui finalmente dormir.

...

A cama era diferente, a claridade do local não era a mesma e até o cheiro de amaciante da roupa de cama era diferente. Abri os olhos. Me lembrei.

Era sábado de novo.

Por algum motivo que desconheço, havia passado muito do meio dia e eu continuava na cama. Talvez até tenham tentado me acordar, mas eu estava tão cansado que sequer ouvi, ainda bem. Era quase 13 horas da tarde e mesmo assim não devo ter dormido mais de 4 horas. Devia ser quase umas 6 da manhã de domingo no Japão. 16 horas de diferença de lá até aqui. 16 horas e mais ou menos 7.699 quilômetros entre nós.

Depois de conhecer uma vida mais livre, ter alguns anos bons e ter, ouso dizer, me tornado uma pessoa melhor, acabei voltando ao começo. Parte de mim queria tentar achar que valeu a pena ter pelo menos um gostinho, melhor do que nada. A outra sabia que tudo foi em vão e desperdiçado, e melhor nunca nem ter começado nada. Pelo menos seria mais fácil... Eu nunca imaginei que acabaria assim. Difícil de aceitar.

Enfim, a pior parte de ser sábado é que todo mundo vai estar aqui, com direito a piorar até domingo. Pelo menos poderia ver todos os parentes de uma vez e me livrar disso logo.

Alguém bateu à porta. Fim do sossego.

— Já é uma hora da tarde, Allen! – Minha mãe já estava desesperada. Vou ter de me acostumar a ser chamado de Allen de novo. – Você não vai passar disso aí dentro, então saia desse quarto agora. Me ouviu?

— Eu ouvi – respondi, igualmente.

Arrumar coragem para me mexer e sair da cama foi a pior parte, minha cabeça latejou e fiquei tonto, ainda exausto. Consegui uns bons minutos de atraso até me ajeitar e decidir um lugar para esconder a chave (num bolso fechado de uma blusa, dentro de uma das malas). Com sorte, encontrei o corredor de cima livre até o banheiro no final, ao lado do meu quarto. Minha aparência no espelho era deplórável e eu não fiz nenhuma questão de melhorar, além de quase enfiar a cara em baixo da água da torneira para tentar acordar.

O corte na bochecha estava um pouco melhor, porém, ainda bem visível e chamativo. Os hematomas também estavam ali, apesar de bem mais claros. Queria trocar os band-aids dos cortes da mão direita, de quando me livrei do estilete. Não tinha nenhum, então só arranquei todos e os joguei fora, cansado de trocar o tempo todo e não conseguir mover a mão direito.

Enquanto descia a escada, comecei a ouvir a conversa e até algumas risadas da sala de estar. Senti o cheiro vindo da cozinha, provavelmente do almoço, me lembrando que alguém iria reclamar por eu ter atrasado.

Minha mãe apareceu na entrada da sala de jantar e parou, surpresa por ter me notado. Não precisaria me chamar alguma outra vez.

— Faça o favor de pelo menos cumprimentar todo mundo – disse, meio automática.

— Ah, ele já acordou? – Ouvi uma voz da cozinha, enquanto terminava de descer. – Pergunte se ele tem alguma sugestão para o almoço, já que ainda não fiz o acompanhamento.

Era Maryann, ou só tia Ann. A única com um pouquinho de juízo entre todos aqui, mas não posso dizer muito além disso. Não sei em que nível é tia ou parente, já que é casada com o irmão mais novo de Leon... Willian, o pior de todos. Me senti tonto só de saber que se ela está aqui, ele também está e eu vou ser obrigado a aguentá-lo muito antes do previsto.

Maryann me cumprimentou com um abraço não solicitado enquanto dizia coisas de tias adaptadas ao meu caso e tipo de família:

— Você cresceu, mas não muito! Tá cuidando bem da saúde? Veio procurar emprego melhor? E as namoradinhas?

Apesar de ser a mais comum, a última pergunta invasiva me pegou completamente desprevenido e me obrigou a trocar uns olhares com a minha mãe, claramente dizendo "não abre essa boca" com o olhar.

Então, Leon não contou o meu escândalo para ninguém daqui. Acabei de ganhar algumas vantagens e mais dúvidas para me torturar.

Pelo canto do olho, percebi Miriam na cozinha também, apenas acenou e disse um "oi" seco. Depois de William, era a mais nova dos três. Em resumo, ela me odeia (e odiava Rin também). E assim é desde sempre, talvez por ter sido obrigada a cuidar e conviver com duas crianças, o que sempre deixou bem claro seu ódio. Nunca se casou, nunca teve filhos e não sei como sobrevive aqui sem julgamentos por isso... Deve ser porque respira e consome ódio

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— Enfim, o que quer para o almoço? – Ann voltou a me perguntar depois da minha falta de resposta, parecia tão animada que não consegui recusar, apesar de tudo. – Pode pedir qualquer coisa!

— Batata? – respondi sem jeito, me sentindo pressionado.

— De que jeito? – insistiu.

— Qualquer um. Eu não entendo muito de comida.

— Mas só isso? O que mais?

— Queijo...?

— Vai servir!

Ela me soltou e voltou para a cozinha como se não tivesse tido a pior conversa sobre almoço de sua vida. Miriam quase deixou queimar seja lá o que estivesse naquela panela por ter ficado nos encarando com total desprezo o tempo todo.

De repente, minha mãe me pegou pelo braço e me levou escada acima de novo até o quarto dela, o último do corredor, em frente ao meu. Trancou a porta e nos fez atravessar o cômodo para ficar bem longe de qualquer ponto de escuta.

— Até as paredes tem ouvidos por aqui – ela iniciou, como se fosse algum segredo governamental. Essa frase me lembrou de certos dias em uma certa escola.

— Eu sei, já passei por isso. – Por algum motivo, fui contagiado com o mesmo tom de mistério dela. – Mais vezes do que gostaria.

— Então percebeu que seu avô não contou nada sobre o seu caso com a sua irmã. E isso deve continuar assim, o tempo todo. Ele deixou bem claro que esse assunto deve ser morto, enterrado e jamais tocado novamente. É pelo bem da sua imagem e do seu futuro.

Que imagem? As que já se acabaram? As que eu mesmo acabei? Quanto drama.

A única explicação para que não descubram é que a repercussão desse "caso" só foi maior no Japão ou com as mídias já envolvida com celebridades, escândalos e derivados desse meio, assim como fãs e etc. Ninguém daqui tem interesse em nada do gênero e dificilmente ficará sabendo, felizmente.

Em resumo, me tornei um tipo de criminoso secreto.

— Eu fui clara? – minha mãe reforçou, sem paciência.

— Bastante – confirmei. Calmo por fora, desesperado por dentro.