A Criação da Luz

Atração pelo perigo


Resolveu forçar a entrada nas acomodações dela quando regressou ao aquartelamento. Não estava demasiado embriagado para se ter esquecido da senha e da contrassenha, mas estava ébrio o suficiente para ser totalmente imprudente e arriscar a sua posição naquela missão. Não se importava com as consequências, naquele momento em que escalava um rochedo sobranceiro ao edifício onde ela estava reclusa. Só queria vê-la e perceber o que se passava. As palavras do homem zarolho eram gritos na sua mente confusa.

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Para começar, não acreditava que tivesse uma marca. Claro que se sentia diferente depois dos breves encontros com a criatura, tinha pesadelos e vivia em permanente agitação, mas isso não significava que estava marcado por ela e que se convertera num alvo. Sabia defender-se e não hesitaria em ripostar se ela o atacasse. Depois, não tinha medo da criatura e a prova era, enquanto trepava pelo rochedo, que ia voluntariamente confrontá-la. Por fim, considerava-se um homem objetivo e não influenciável, que não se deixaria afetar, tal como nunca acontecera mesmo nos seus tempos mais negros, por crendices. Sempre tinha verificado e comprovado todos os boatos que o tinham vagamente interessado. Como aquele já famoso na sua lenda pessoal que o fizera alistar-se no exército de O’Sen Kram e o conduzira a Tatooine integrado num grupo secreto.

Alcançou o topo do rochedo e olhou para baixo. Viu os terraços da casa onde sabia que ela estava, os seis soldados que vigiavam as possíveis saídas, janelas e portas.

O aquartelamento era uma edificação local, compartimentos cúbicos acanhados, empilhados caoticamente e encostados a um penhasco, construídos com pedras e cobertos por uma argamassa arenosa. Era a habitação de um nobre Tusken que fora realojado, juntamente com a extensa família, numas tendas junto à cidade, mas o suborno milionário não o encorajara a protestar. Fazia parte daquelas alianças vergonhosas que Frint detestava.

Descobriu uma porta que não estava vigiada, acedida por uma escadaria corroída escavada na rocha adjacente ao compartimento. Saltou para o patamar, com algum ruído, mas os guardas não notaram qualquer anormalidade. Passeavam-se indolentes nas suas rondas, provavelmente julgando que vigiavam quartos vazios. Até podia ser e ele estava prestes a descobrir.

A porta estava aberta. Não estava destrancada, encostada ou entreaberta, estava escancarada. Olhou para baixo, apreensivo, mas o guarda que rodeava o edifício não mostrava sinais de se ter apercebido da brecha na segurança. Engoliu em seco. A porta fora deliberadamente aberta, ela estava à espera dele. Considerou ir embora, mas o guarda tinha parado junto à escadaria. Com alguns passos colocava-se junto ao primeiro degrau e bastava levantar um pouco a cabeça para descobri-lo ali. Não se iria comprometer com uma quase invasão, era preferível ser apanhado em flagrante. Sacudiu os ombros e entrou.

O compartimento estava pobremente mobilado e cheirava a terra. Todo o aquartelamento tinha esse cheiro, mas ali era mais intenso. Circunvagou o quarto, verificando a cama feita, a pequena mesa vazia, a arca encostada à parede onde estava uma porta em arco, o chão por varrer. Não tinha nenhum sinal de que ali morava alguém, pelo que comprovava outro rumor – guardavam-se acomodações vazias.

Percebeu que a porta se fechava pela diminuição da luz interior. Ao ouvir o som mínimo do trinco, sentiu-se agradecido por estar zonzo e bêbado. De outro modo, teria perdido a coragem. Voltou-se devagar. Ela estava de frente para a porta. Apesar de todos terem ordens para abandonar a farda, ela usava o uniforme rubro-negro.

— Não gosto de esperar… Fico aborrecida.

A última vez que lhe tinha ouvido aquilo, alguém tinha morrido. Sacou da pistola laser SC-4 que prendia no cinto e quando a ia empunhar, esta voou-lhe dos dedos, arrancada por uma força invisível. A mão dela, que comandara essa força, agarrou na arma.

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— Não precisas disso contigo. Seria inútil se eu resolvesse atacar-te.

— Não vais atacar-me.

— Não…

Foi incapaz de distinguir a entoação certa da réplica, se seria um não afirmativo e então podia relaxar pois não corria perigo, se seria um não interrogativo carregado de sarcasmo e, nesse caso, estaria mesmo com a vida ameaçada. A cerveja jawa a circular-lhe no sangue deixava-o alheio a uma certa precaução essencial à autopreservação. Contudo, ficaria mais descansado se ainda conservasse a sua pistola laser SC-4 e cobiçou-a descaradamente, enquanto esta pendia mole na mão dela.

Viu-lhe as costas distenderem-se com uma inspiração mais profunda. O som brusco da arma a tombar no chão sobressaltou-o. Ela passou por ele.

— Vem comigo.

Mordeu a língua para não lhe perguntar para onde iam, ela não lhe responderia de qualquer maneira. Ainda considerou ir buscar a pistola, mas achou que não valia a pena. Podia irritá-la e nem queria pensar como reagiria a criatura se estivesse irritada, já que quando estava aborrecida era mortífera. Seguiu-a para outro compartimento adjacente ao quarto, passando pela porta em arco, afastando a cortina puída que a tapava. Ela destapou uma passagem dissimulada na parede do lado e subiu uns degraus íngremes de madeira. Ele voltou a segui-la e depois de vencer a subida apertada, saiu por um buraco escavado na rocha do penhasco onde se alcandorava o aquartelamento.

O dia acabava com o pôr dos dois sóis de Tatooine.

Postou-se ao lado dela, a olharem para o horizonte que se avermelhava.

Era ali que ela se refugiava, durante os dias em que as suas acomodações estavam vazias. Os soldados tinham razão, não havia nada para guardar. A criatura podia sair quando quisesse, escapar-se e rir-se deles. A sua liberdade era mitigada, porém, pelo vasto deserto e talvez pelo seu sentido do dever. Nunca se afastaria mais do que aquela plataforma rochosa.

Ela perguntou-lhe:

— Gostas deste cheiro?

O ar, que tinha um aroma doce como incenso, estava impregnado do fedor dos banthas que se bamboleavam nas lonjuras, conduzidos pelo Povo da Areia. Deixava-o tonto, mas naquele momento também estava tonto por causa do álcool. Podia fazer o esforço de dizer que gostava do cheiro, para lhe agradar ou para que deixasse de estar aborrecida, mas antes de conseguir responder, ela adiantou-se:

— Eu não. Odeio-o! Parece que me quer adormecer para me contar uma mentira!

Notou-lhe o esforço, mas a voz dela continuava francamente monocórdica. Ele explicou:

— Ninguém adormece com a atmosfera de um planeta, a não ser que seja sensível a um dos seus componentes gasosos. Existem antídotos, contudo, para quebrar o efeito mais desagradável provocado por alguma atmosfera mais estranha. As colónias encontram-se estabelecidas em planetas com atmosferas similares, para possibilitar as viagens e a interação entre estes, pelo que as reações são pontuais e quase inexpressivas no quadro galáctico.

— Oh… Também és um professor! – ironizou ela no mesmo tom.

— Estudamos os mundos habitados da galáxia… na Academia.

— Não sabia que existia uma Academia para treinar os soldadinhos de O’Sen Kram.

— Não existe. Estudei na Academia do Império Galáctico.

— Ah… Um soldadinho do extinto Império Galáctico.

— Nunca cheguei a ser um soldadinho do Império – corrigiu ele, ocultando a mágoa dessa evidência. Nunca tinha conversado tanto com a criatura. Agradeceu à cerveja jawa pela ideia tresloucada de a ter ido procurar. Nunca o teria feito se estivesse no seu perfeito juízo. Escondeu um sorriso orgulhoso.

A fixar o horizonte com os olhos vazios, ela quis saber:

— E existe algum antídoto para este… cheiro?

— Que eu me lembre, não.

— Senão, já o tinhas tomado… Também o odeias.

— Nunca disse isso.

— Não precisas. Sei que sentes assim.

— Consegues ler pensamentos?

— Consigo ler todos os seres vivos.

Ele arqueou as sobrancelhas, incrédulo.

— E como é que fazes isso?

— Nunca o compreenderás.

— Testa-me!

— Não vales o meu esforço.

— És assim tão importante?

Ela calou-se. O sol mais afastado mergulhava nas dunas, ela esticou um dedo na sua direção. A unha perfurava a esfera incandescente e os vapores da bebedeira fizeram Frint crer que via um fio de fumo sair da superfície da estrela. Pestanejou, mas a ilusão mantinha-se. Mesmo a uma distância impossível, ela conseguia tocar e rasgar o sol.

Perguntou-lhe para se distrair daquela estúpida miragem:

— Sabes o que fazes aqui?

— Sei.

O coração dele deu um salto. Ela baixou o braço, o sol deixou de fumegar e desceu um pouco mais no céu. Como se ela o tivesse retido durante o tempo em que lhe espetara o dedo.

— Vou enfrentar-me a Luke Skywalker, um cavaleiro Jedi.

— E depois?

— Haverá um confronto. É o que acontece quando nos enfrentamos a alguém.

— Vais matá-lo.

— Sim, alguém morre. É o que acontece quando existe um confronto.

— És tão poderosa como um cavaleiro Jedi? Lembro-me de o meu avô contar histórias sobre os Jedi. Eram os guardiães da Antiga República. Um corpo muito bem treinado, com habilidades incríveis, que sabia manejar uma espada.

— Um sabre de luz.

— Também tens um sabre de luz?

— Não, mas posso construir um. Quando for necessário.

Ela colou o queixo ao peito e pareceu sinceramente desiludida.

— Será demasiado fácil. Controlo a Força, destruirei o Jedi facilmente… Desejava um verdadeiro desafio, onde pudesse mostrar toda a amplitude do meu poder. Sou capaz de aniquilar a luz e estender, sobre o infinito, as trevas mais negras.

Lançou um braço que agitou o ar em ondas que alcançaram os dois sóis, fazendo-os dançar. Frint deu uma gargalhada. Gostava das ilusões que ela criava, eram quase reais e muito divertidas. Melhores que aquelas que ele fabricava na sua imaginação, quando voava de obstáculo em obstáculo até ao horizonte longínquo do deserto.

Ela não se descontraiu, mas também não se ofendera com a sua risada. Era também reconfortante saber que, mesmo aborrecida, o enfado era tão palpável que ele sentia-o no perfume peculiar de Tatooine, não considerava matá-lo para se sentir melhor.

— Tens um nome?

Entreolharam-se. Os olhos vazios dela eram dois poços sem fundo.

— Sou uma criação da luz, um ente original…

— Uma criação da luz, um ente original – repetiu Frint, pensando nas letras iniciais da frase. – És uma C.L.E.O. Esse podia ser o teu nome.

Ela inclinou o pescoço ligeiramente para a esquerda, semicerrou as pálpebras.

— Cleo… Que nome horrível!

— Se eu te chamar assim, vais matar-me?

— Quando eu te matar, nem vais perceber o que te aconteceu.

— Não o faças – pediu ele, displicente. – Sou um soldado, prefiro perder a vida em combate.

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— Faltou empenho nesse desejo.

— Mesmo que to pedisse de joelhos, não consideravas pensar nisso.

— Não…

O mesmo não do início, entre uma afirmação e uma interrogação sarcástica. Era impossível ler aquela criatura, dominá-la, compreendê-la, classificá-la. Kram soubera escolher o seu brinquedo.

A despedida não iria acontecer, ele tinha simplesmente de ir-se embora e antes que fosse tarde demais, pois o risco nunca fora eliminado. Foi-lhe difícil quebrar o contacto visual, estava demasiado hipnotizado pela ausência da criatura, empenhado em tocar naquela alma inexistente, chamá-la pelo nome que ela odiava tanto como à atmosfera de Tatooine e convidá-la para uma tarde de cerveja jawa na cantina de Forte Tusken. Isso é que seria inédito… O soldado Frint e o brinquedo de Kram a fazer uma competição de copos.

Saiu pela porta da frente. Foi imediatamente algemado e levado ao comandante da missão. Recebeu a condenação quando já estava sóbrio e arrependido. Passou três dias na prisão. Nunca sonhou durante essas noites, tão vazias como os olhos da criatura. Nem nunca mais se lembrou do homem zarolho que lhe dissera ser um feiticeiro.