Dépendance

Capítulo 16 - Máscara


Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero.

Caio Fernando Abreu

Estava calor. Calor demais. Adrien não conseguia respirar. Uma nuvem de fumaça cobria sua visão e fazia seus olhos arderem. Um brilho laranja e quente começou a crescer, e ele percebeu que algo perto dele pegava fogo. Tossiu uma, duas vezes. Ficava cada vez mais difícil de respirar. Colocou a mão sobre o rosto, tentando filtrar o ar, e impulsionou o corpo para levantar-se, mas algo o segurou com força pela cintura, jogando-o de volta á posição inicial. Olhou para baixo e viu que estava preso por um cinto de segurança. Ele estava dentro de um carro, sentado no banco de trás.

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Olhou para os lados e viu os vidros fechados, a fumaça acumulando cada vez mais dentro dos pulmões, preenchendo-o, ocupando cada canto que deveria possuir oxigênio. Ele começou a tossir com mais ferocidade, a mão no rosto já não fazia efeito. Levou os dedos até a fivela do cinto e gritou ao tocar no ferro queimando. Precisava sair. Precisava sair dali. Agarrou a fivela e gemeu, pressionando o botão que começava a derreter e entortar. Puxou a presilha e soltou o cinto, jogando-o para longe e correndo até a maçaneta da porta enquanto tossia.

No momento em que sua mão tocou a porta, algo o agarrou pelo ombro, e quando virou para trás viu seu pai sentado no banco do motorista, o rosto deformado pelas queimaduras, um sorriso doentio cravado nos lábios.

“Você vai me deixar aqui, Adrien?”

Adrien prendeu um grito na garganta. Aquele não era o seu pai. Ele estava morto. Não estava mais ali. Não estava. E como se para afrontar as suas crenças, novamente o homem abriu os lábios rodeados por pele queimada que estourava em bolhas e disse mais uma vez.

“Você vai deixar a sua mãe aqui?”

Adrien jogou os olhos para o banco do carona, onde o rosto de sua mãe virou-se na direção dele, os cabelos loiros sendo consumidos pelas chamas, a testa franzida em desgosto.

“O que você fez com a gente, Adrien?”

Ele sentiu algo sacudir seu corpo e abriu os olhos em choque. Puxava o ar com força, tentando buscar oxigênio, mas notou que o fogo havia sumido. O carro havia sumido. Seus pais haviam sumido. Na sua frente, Ladybug estava ajoelhada com os olhos crivados de desespero, olhando-o como se ele tivesse crescido duas cabeças. Fechou os olhos com força. Pesadelo. Outra vez o mesmo pesadelo.

“Chat?” ela perguntou incerta, a voz trêmula, as mãos estendidas na direção dele, com medo de tocá-lo.

“Foi só um sonho.” ele tentou levantar-se para disfarçar os tremores, mas suas pernas falharam.

“Não mente pra mim, Chat.” ela gemeu.

“Foi só um sonho.” ele repetiu, olhando em volta.

Ainda estava sentado no depósito da Miraculous. Um cobertor repousava sobre suas pernas, indicando que provavelmente tinha pegado no sono. A escuridão dizia que a manhã ainda não havia chegado.

um sonho? Achei que você tava se afogando!” as palavras dela estavam carregadas de preocupação.

Chat Noir silenciou, torcendo os dedos uns nos outros e respirando devagar para compensar a ofegância e os batimentos cardíacos que golpeavam seus ouvidos.

“O que aconteceu?” Ladybug perguntou e ele a olhou como se não tivesse entendido a pergunta, então ela foi mais específica “O que você sonhou?”

“Eu não lembro.” ele respondeu, mas ela percebeu pelo maxilar trincado que ele estava mentindo.

“Você não quer falar sobre isso?”

“Não.” ele respondeu secamente, e ela sentou-se ao lado dele, puxando o cobertor na direção do próprio queixo.

“Você fala com alguém sobre isso?” Ladybug murmurou, vendo-o secar o suor da testa.

“Eu não preciso.” Chat afirmou, sentindo o calor crescer sob o uniforme.

Ladybug ficou olhando para ele por alguns segundos. Suor brotava no rosto dele, as pupilas fendidas dilatadas, os ombros sacudiam com a respiração acelerada e cada músculo por baixo do uniforme estava contraído. Lembrou de Adrien e dos pesadelos que ele tinha. Ele costumava ligar para ela no meio da madrugada e eles conversavam até ele conseguir pegar no sono de novo. Ele nunca quis contar sobre o que eram os pesadelos, mas ela se sentia útil cada vez que seu celular tocava. Sentia-se parte da vida dele. Até não ser mais.

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“Você não pode passar por isso sozinho, Chat.” ela insistiu.

“É tarde demais, Ladybug. Deixa isso pra lá.” ele respirou fundo, começando a se acalmar.

“Nunca é tarde demais.”

“Chega, Ladybug, por favor.” ele esfregou as mãos no rosto.

Não ia envolvê-la naquilo. Uma vez já havia deixado algo semelhante acontecer com Marinette e se arrependeu amargamente depois. Precisar de Marinette o havia enfraquecido, o havia tornado frágil, e quando ela não estava mais lá, precisara redescobrir como se acalmar sozinho. Meses de sofrimento até conseguir ter uma noite decente de sono, o que nunca mais acontecera com frequência desde que a Papillon invadira sua vida.

“É sobre a Papillon? Sobre a Farfalle?” ela queria saber, queria muito saber o que o fizera se debater daquele jeito enquanto dormia. O que retorcia a expressão do rosto dele e lhe causava tamanha dor.

Chat Noir puxou uma golfada de ar para dentro dos pulmões, tentando acalmar-se. Ele entendia a preocupação dela, mas não havia possibilidade de dividir aquilo. Não deixaria sua vida civil cruzar com a dela, já tinha causado problemas demais do jeito que as coisas estavam, e não seria o responsável por tornar os dias dela mais difíceis ainda. Se envolver com Adrien Agreste era se envolver em problemas.

“Você não confia em mim.” ela queria ter perguntado, mas no final uma afirmação saiu dos seus lábios.

“Não tem nada a ver com confiança, eu só...” a frase morreu antes de terminar.

“Tem a ver com confiança, sim. Não tem outro motivo pra você não dividir comigo o que tá acontecendo. Você ouviu o que o Plagg falou. Precisa me contar o que tá acontecendo, a gente precisa estar em sincronia.” Ladybug começava a deixar a ansiedade tomar conta de suas ações, e percebeu isso quando ele olhou para ela com as sobrancelhas altas, a decepção no olhar.

“Você estava ouvindo a nossa conversa?” ele a recriminou sentindo o coração palpitar e começou a rebobinar as palavras que havia conversado com Plagg na cabeça, tentando lembrar se dissera algo que podia entregar a sua identidade.

“N-Não foi de propósito.” Ladybug gaguejou, a culpa gelando seu peito.

“Não foi de propósito?” ele pergutou novamente com o olhar incrédulo na direção dela, e deixou um riso irônico escapar “Como você consegue mentir na minha cara?”

“Do mesmo jeito que você tá mentindo na minha!”

Não, não.

Eu não posso dizer essas coisas pra ele.

Não posso.

Chat Noir olhou para Ladybug com a tristeza estampada no rosto e ela sentiu o coração quebrar no mesmo segundo. Tinha ido ali com o intuito de conversarem e resolverem suas diferenças, mas parecia que quanto mais ela tentava entrar no mundo dele, mais ele se trancava, e aquilo a estava frustrando imensamente, a ponto de irritar.

“Por que você não confia em mim?” ela tentou mais uma vez, começando a perder as estribeiras, mas sentiu que ele também estava ficando cansado de resistir.

“Eu não posso.” as palavras saíram como se eles estivesse fazendo um esforço imenso para falar. O cansaço estava tirando o melhor dele.

“Por quê? Sou eu? Tem alguma coisa errada comigo?” ela endireitou as costas olhando para os punhos que fechavam sobre o colo.

“Não é isso, eu-“

“Então você não confia mesmo em mim.” ela não conseguia parar de olhar para ele, e ele não tinha coragem de retribuir o olhar.

Segundos de silêncio que parecerem horas dominaram todo o cômodo, até que Chat o quebrou com as palavras.

“Eu não consigo confiar em ninguém, Ladybug. Não depois de tudo o que aconteceu. Só não consigo.” Chat Noir esfregou o rosto com as duas mãos, sentindo-se tão exausto como se tivesse carregado toneladas de tijolos nas costas durante todos os dias e noites da última semana.

“Você tem medo que eu use os seus segredos contra você.”

O silêncio dele valeu mais do que palavras, e ela sentiu uma dor lancinante no peito. O que ele escondia por trás daquela máscara? Quantas coisas não haviam acontecido para que ele chegasse naquele ponto de não conseguir se abrir com ela?

Ladybug decidiu que não deixaria que aqueles sentimentos continuassem crescendo dentro dele, corroendo quaisquer que fossem as chances dos dois confiarem um no outro. Naquele instante, o maior segredo que ela tinha era a única chave para a confiança de Chat Noir.

“O que você está fazendo?” ele arregalou os olhos ao ver ela levar as mãos até a própria nuca, desamarrando a máscara vermelha.

“Se eu te der um segredo meu, você me dá um seu.” ela sentia o coração palpitar em ansiedade. Era a primeira vez que fazia aquilo, e não tinha certeza se era o caminho certo a ser tomado, mas se a Papillon sabia sua identidade, não havia mais motivos para escondê-la de Chat Noir. Ele, mais do que ninguém, era merecedor da confiança dela, e se aquela era a única maneira de fazer com que ele se abrisse, não mediria esforços.

“Não faz isso, Ladybug.” as sobrancelhas dele caíram sobre os olhos e ele se inclinou para trás, como se ela apontasse uma arma para ele.

“Por que não? Eu quero te provar que você pode confiar em mim.” ela disse com confiança.

Ladybug desprendeu o último nó e segurou as pontas da máscara que cobria metade de seu rosto no exato instante em Chat Noir inclinou-se na direção dela, segurando os dois punhos dela atrás da cabeça antes que ela deixasse o tecido cair.

“Você não precisa fazer isso.” ele estava com a testa franzida, o rosto próximo ao dela, os lábios entreabertos enquanto segurava as mãos dela atrás da cabeça.

“Do que você tem medo?” ela sentiu as palavras saírem em um murmúrio, os olhos colados nos dele, e ele engoliu a seco ao sentir o hálito dela próximo ao rosto. Os lábios dos dois estavam próximos, próximos demais. Era daquilo que ele tinha medo. Mais do que tudo, era de se envolver daquele jeito que ele tinha medo.

“Não faz isso, Ladybug.” ele sussurrou em meio a um gemido, sentindo o rosto chegar próximo ao dela, os lábios sendo atraídos como uma mariposa para a luz.

“Você não vai me machucar.” Ladybug falou tão baixo que a voz saiu quase em um sussurro.

Chat Noir soltou os punhos dela devagar, não conseguindo mais conter o que sentia. Em meio àquele mundo escuro e cheio de desgraças, ela havia aparecido como um brilho no fundo de um túnel pelo qual ele havia caminhado por tempo demais. Ele não queria se apegar, não podia se envolver, mas ela o puxava como ímã, e ele estava cansado de resistir. Estava exausto de viver apenas sentindo dor. Ele queria sentir aquilo de novo, aquela corrente elétrica que havia percorrido seu corpo no corredor do teatro. Queria ver aquela vida nos olhos dela de novo, queria que ela pudesse fazê-lo viver de novo. E pensando naquilo, pousou os lábios nos dela.

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As mãos de Chat Noir aninharam-se no pescoço dela, atravessando as mechas de cabelo em um toque gentil, acariciando-a e fechando os olhos quando sentiu os lábios encostarem-se e dançarem um sobre o outro. Ele sentiu o ar faltar no momento em que as línguas se tocaram, aprofundando o beijo, e desejou que aquela sensação nunca terminasse. Ele sabia que nunca mais conseguiria esquecer o perfume dela entrando por suas narinas, preenchendo-o de desejo.

Ladybug sentiu o gosto doce na boca antes mesmo dos lábios se encostarem. Ela fechou os olhos e soltou a máscara, sentindo-a cair sobre o colo, e levou as mãos até o rosto dele, acariciando-o, correndo os dedos por dentro do capuz, sentindo os cabelos quentes e macios. Ela queria que ele confiasse de novo, que sentisse de novo. Não queria mais ver aquele olhar perdido e triste que ele fazia quando ninguém estava olhando.

Ofegantes e hesitantes, os lábios se separaram. As pálpebras flutuaram e os olhares inebriados se encontraram, mas diferente de antes de fecharem, Ladybug não era mais Ladybug. Ela agora era Marinette. E estava sorrindo para Chat Noir. Sorrindo como ele não via há quatro anos.

Chat Noir arregalou os olhos e sentiu os lábios ainda formigantes do beijo se entreabrirem em choque. Não podia ser verdade. Não podia. Sua mão soltou do pescoço dela tão devagar que quase não percebia os músculos trabalhando, o sorriso dela desaparecendo quando viu a expressão no rosto dele se transformar. Ele começou a se afastar, arrastando-se para longe dela sem conseguir desviar o olhar. Ela franziu a testa em incompreensão.

“Chat?” a voz dela saiu dos lábios que recém havia beijado e bateu nos ouvidos dele como um tiro.

Como ele não tinha visto antes? Como ele pudera ser tão cego? Os lábios dele se fecharam com força para pronunciar o “M” do nome dela, mas nenhuma palavra saiu.

É ela.

O tempo todo era ela.

Ladybug é a Marinette.

Marinette.

Marinette.

Ele levou a mão rapidamente até a boca para conter a forte náusea que atingiu seu estômago enquanto um milhão de cenas piscavam em sua cabeça, peças se juntando, palavras se unindo, situações se ligando, e o terror foi crescendo no peito dele, irrefreável como um trem descarrilhado.

Todos esses anos.

Todo esforço em vão.

Inútil.

Tudo em vão.

As palavras giravam na cabeça dele sem parar e o terror começou a se transformar em raiva. Uma raiva imensa, gigantesca, imensurável, tomando conta dele como chamas que o queimavam e se multiplicavam dentro suas veias, incendiando cada canto da sua alma. Sentiu o corpo todo começar a tremer e o queixo batia como se estivesse dentro de uma geleira.

Eles acharam ela.

Acharam ela.

Mesmo depois de tudo.

Acharam ela.

“Sou eu, Chat, lembra? Da garagem.” ela colocou a mão sobre o próprio peito e Chat Noir se levantou tão rápido que suas costas bateram nas caixas, derrubando algumas atrás de si “O que foi? Você tá tremendo.” Marinette estendeu a mão na direção dele, e ele se afastou rapidamente como se ela fosse uma bomba. A mão dela ficou suspensa no ar, o olhar preso no rosto dele em uma expressão de horror.

Chat Noir se afastou de ré, sentindo-se atingir uma das estantes, provocando um som metálico dos materiais chacoalhando nas prateleiras. Ele a olhou de cima a baixo e piscou como se ela fosse uma criatura de outro mundo que ele nunca vira antes. Quando os olhares dos dois se encontraram de novo, ele girou nos calcanhares e saiu correndo do depósito.

“Chat, espera!” ela gritou, mas as costas dele desaparecendo pela porta foi a única coisa que viu. Ele sequer olhou para trás.

Marinette baixou os olhos vendo a máscara caída no chão e juntou-a com a mão trêmula, erguendo-se devagar. O que tinha acontecido?

“O que houve?” Marinette ouviu a voz de Tikki perguntar ao longe, mas o silêncio permaneceu até ela sair do depósito com a máscara no meio dos dedos. Ao redor, nenhum sinal de Chat Noir.

Tikki viu Marinette sem a máscara e derrubou a xícara que segurava, levando as mãos até a boca para conter o grito, o estouro da porcelana quebrada ecoando pela Miraculous, os cacos espalhando-se até chegar aos pés dela.

Plagg estava do lado de fora da agência, olhando sobre a cobertura para onde Chat Noir havia saído e voltou correndo ao ouvir o barulho. Os olhos dele foram até o pedaço de xícara parado aos pés de Marinette, e no momento em que os olhos dele subiram e ele viu o rosto dela sem a máscara, cerrou a mandíbula com força.

“Não.” a palavra saiu no meio dos dentes de Plagg como um último suspiro, e ele imediatamente deu as costas e saiu correndo para a cobertura, desaparecendo no meio da noite.

“Tikki.” Marinette murmurou, olhando para a pequena garota que ainda estava com as mãos no rosto, os cacos da louça sacudindo aos pés em um tilintar insistente.

“Ah, Marinette...” Tikki disse com a voz embargada, as palavras abafadas pelas mãos “O que foi que você fez?”

Marinette sentiu uma ruga torcer na testa, as sobrancelhas franzindo tanto que sua cabeça doía com o esforço. Ela baixou os olhos para a máscara na mão direita. O que ela tinha feito? Ela não sabia, não conseguia entender. Chat havia demonstrado um pouco de resistência no início, mas depois parecia ter concordado, parecia querer aquilo tanto quanto ela. Ele a tinha beijado, a tinha tomado entre as mãos. O que tinha acontecido? Ainda conseguia sentir os dedos dele passeando nos meios dos seus cabelos, puxando-a para si. O que tinha acontecido? Ainda sentia a pele quente onde ele a havia tocado. Não entendia. Não conseguia entender.

Tikki estava em choque. Nunca imaginara que Marinette entregaria sua identidade, muito menos para Chat Noir. Muito menos para a pessoa que mais havia tentado manter Marinette longe daquilo tudo. E o pior era que, ao que parecia, Chat Noir não havia contado para ela a própria identidade, então Marinette estava ali em pé, no meio da agência, provavelmente com a cabeça correndo violentamente atrás de respostas que nunca iria obter sozinha.

Tikki respirou fundo e se abaixou para juntar os cacos de porcelana do chão. Precisava conversar com Marinette, mas não podia entregar a identidade de Chat Noir. Não podia. Não era direito dela contar. A garota de cabelos cor-de-rosa levou a mão até um dos pedaços da xícara e viu Marinette se abaixar à sua frente, silenciosamente, ajudando-a. Ela não podia contar tudo, mas podia contar o suficiente.

“Marinette-” Tikki começou a falar, parando quando seu rosto encontrou os olhos azuis de Marinette cheios de lágrimas e confusão.

“O que foi que eu fiz, Tikki?” Marinette perguntou, descendo o olhar inquieto para o chão, as lágrimas caindo pelo rosto “O que foi que eu fiz?” Tikki juntou o último pedaço de xícara do chão e se levantou, puxando uma das cadeiras giratórias.

“Tem algumas coisas que você precisa saber.” Tikki falou e buscou outra cadeira para si e sentou-se, indicando a da frente para Marinette.

“É sobre a Farfalle?” Marinette perguntou, fungando, e Tikki franziu a testa, relaxando-a a seguir. Então pelo menos aquilo Chat tinha contado.

“Em parte, sim.” Tikki começou, as mãos entrelaçadas sobre o colo “O Chat trabalhou por quase três anos dentro da Papillon, na divisão da Farfalle. Você sabe o que a Farfalle faz, Marinette?” Marinette sacudiu a cabeça negativamente, engolindo a seco, quando viu Tikki erguer os olhos para ela “Eles são a divisão de extermínio.”

“Exter...mínio?” Marinette sentiu um choque frio subir por suas costas e arrepiar os pêlos da sua nuca ao pronunciar as palavras.

“Assassinos, Mari. Eles são a divisão da Papillon responsável por matar quem entra no caminho deles.”

Marinette apoiou os cotovelos nos joelhos e afundou o rosto nas mãos para conter a forte vertigem que fez sua cabeça rodar.

“Você consegue imaginar quanta gente ele precisou matar? Quantas vidas ele não tirou com as próprias mãos?” Tikki tinha a voz firme, mas as frases saíam rápidas, em um ritmo nervoso.

“Por que ele fez isso, Tikki? Por quê?” Chat Noir ainda era uma incógnita muito grande para ela, mas não conseguia imaginá-lo matando pessoas a sangue frio. Lembrou da casualidade com a qual ele havia comentado que teriam que matar pessoas no Teatro e grunhiu para si mesma.

“Não teve jeito, Mari. Ele tinha algo que precisava proteger a todo custo, e nem o Plagg conseguiu convencer ele do contrário. Ele achou que poderia lidar com aquilo, que faria uma missão e conseguiria sair, mas a Farfalle foi puxando ele cada vez mais para o fundo.” Tikki inclinou-se para trás na cadeira, sentindo-se exausta só em tocar naquele assunto “Você não faz ideia do ponto onde ele chegou. Aquilo transformou ele, Mari. Tornou ele na pessoa que ele é hoje, alguém que já não sabe direito diferenciar o certo do errado, que não sabe lidar com os outros,.”

“Mas e você e o Plagg? Por que ele parece sempre tão à vontade com vocês?” Marinette perguntou, sentindo as lágrimas beliscarem atrás dos olhos.

“A gente é...” Tikki mordiscou o lábios inferior, procurando a palavra certa “Diferente.” sentiu o canto do lábio subir levemente com satisfação “O Plagg conhece ele há muitos anos, antes mesmo do Chat entrar na Papillon. Antes mesmo de ele ser o Chat Noir. Nós fomos nos adaptando às mudanças dele, mas o resto do mundo não.”

“Ele não se abre, Tikki. Eu tento e tento, mas ele não fala comigo. E agora...” Marinette apertou a máscara de Ladybug no colo com força “E agora eu mostrei quem eu sou e ele me rejeitou.” ela fechou os olhos com força “Eu forcei isso nele e ele nunca mais vai confiar em mim.”

“Não é isso.” Tikki sacudiu a cabeça negativamente “Se ele não quisesse mesmo saber, pode ter certeza que teria impedido. A verdade é que ele tem medo, Mari. Ele tem medo de que você passe por tudo o que ele passou. De que a Papillon faça com você as coisas que fez com ele.”

A voz de Tikki penetrou Marinette como uma faca. Era mais do que apenas ele não ser capaz de confiar nela, era a possibilidade de vê-la passar na pele tudo o que ele havia passado, todo o terror que ele havia vivido. E ela só fora capaz de enxergar o próprio umbigo.

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“É isso que ele tá enfrentando agora, Marinette. Eu sei que é horrível pra você, e também é pra gente, mas o fardo dele é muito maior.” Tikki torceu nos dedos os anéis que não estavam ali “Agora que ele sabe quem você é por baixo da máscara, a responsabilidade dele dobrou. Agora não é só a Ladybug que ele precisa proteger, é também a Marinette.” Tikki escolhia as palavras, tentando fazer Marinette entender o tamanho do impacto dos problemas enfrentados ali sem delatar a identidade de Chat.

“O Chat disse que eu sou melhor do que ele era, que eu posso fazer coisas que ele não podia.” Marinette tentava justificar os sentimentos que a invadiam.

“É por isso que a Papillon te quer tanto, Mari. É justamente por isso que eles estão atrás de você, e é por isso que o Chat está aqui te protegendo.”

“Mas ele não precisa me proteger!” Marinette exasperou-se “Ele acha que precisa proteger tudo, mas ele não precisa, Tikki! Eu sei me cuidar!”

“Sabe sim, mas é o jeito dele.” Tikki contraiu os ombros e sacudiu a cabeça “Ele se sente responsável pelas pessoas que cruzam com a Papillon, porque um dia foi parte dela.”

Marinette grunhiu e deixou o corpo relaxar sobre a cadeira, esfregando as mãos no rosto. Por que parecia que toda vez que tomava uma decisão, era a escolha errada? Ela só queria que uma vez na vida as coisas dessem certo como deveriam. Que uma vez na vida ela não precisasse passar por um inferno imenso antes de ver tudo se resolver.

Uma música baixa tocou e Tikki levou a mão até o bolso, puxando o próprio celular. Marinette tirou as mãos do rosto para olhá-la, o coração palpitando no peito.

“Oi.” Tikki atendeu, e logo o semblante exausto da garota deu lugar a uma expressão de terror, fazendo Marinette inclinar-se na direção dela.

“O que foi? Quem é?” Marinette perguntou, amarrando novamente a máscara de Ladybug sobre o rosto.

“Tá, tá bem.” Tikki respondeu com o celular colado à orelha sem tirar os olhos de Marinette “Pode deixar, se cuida.” e desligou.

“O que houve?” Ladybug perguntou com urgência.

“O Chat se trancou na garagem e não quer deixar o Plagg entrar.” Ladybug ouvia as palavras trêmulas de Tikki “Disse que vai atrás da Papillon sozinho e que-”

Ladybug não esperou Tikki terminar a frase. Levantou-se da cadeira, jogando-a para trás e saiu correndo, sentindo os pés baterem no chão da agência e arremessando-se para a noite na direção do esconderijo de Chat Noir.