Era um dia como outro qualquer. A única diferença é que eu estava a quase vinte e seis horas sem dormir. Eu era uma das poucas que aceitava trocar plantão, por isso eu era a primeira pessoa para quem eles recorriam. Aquele dia em especial eu estava sendo requisitada por quase toda a equipe. Todos sabiam que eu não me importava com feriados, principalmente o de ação de graças. “Hey, Hermione, eu estava querendo viajar com minha esposa e meus filhos, será que você poderia me cobrir a noite?” “Hermione, não vejo meus pais há um ano, essa seria a única oportunidade. Pode ficar no meu lugar na parte da tarde?”. E é claro, eu não sabia dizer não.

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— Ainda está aqui? – Meu chefe, Doutor Carter, perguntou quando nos encontramos no corredor. – Quantas vezes eu pedi a você para que fosse para casa descansar?

— Acho que três vezes desde o meio dia. Mas é que...

— Nada de mais, Hermione. Você já está aqui há vinte e seis horas! Precisa descansar.

— Eu realmente não preciso, Senhor...

— Hermione. – Ele colocou a prancheta debaixo do braço e me encarou. Eu imaginei que viria uma bronca, como ele costumava fazer. – Eu estou dizendo isso porque me preocupo com você. E porque me preocupo com os pacientes também. Por Deus! Você está a vinte e seis horas sem dormir, e trabalhou antes disso também. Quantas horas você dormiu antes de pegar o primeiro turno?

— Não sei... Umas duas.

— Meu Deus! Vá para casa, Hermione. Se você pegar um paciente para cirurgia é capaz de entregar um fórceps ao invés de uma pinça. E isso não é um pedido. – Ele disse antes que eu pudesse argumentar. – É uma ordem.

Dizendo isso, ele me deu as costas e saiu andando. É claro que eu queria muito descansar e colocar o meu sono em dia, ou pelo menos parte dele. Mas eu realmente preferia passar os meus dias trabalhando a ficar em casa, sozinha. Eu não gostava de ficar sozinha, porque todas às vezes eu pensava demais. Luna, minha melhor amiga, era a única pessoa que conseguia me tirar de casa, mas mesmo assim, depois de muitas tentativas e ameaças. Minha vida era dedicada ao meu trabalho. Minha família eram meus colegas, enfermeiras, cirurgiões, recepcionistas. Meus amigos eram meus pacientes, de várias faixas etárias. E eu guardava o rosto de cada um, por incrível que pareça. Eu amava o meu trabalho, amava ficar vinte e seis horas acordada, amava não ter que ficar sozinha com meus pensamentos.

— Emergência no segundo andar. – A voz ecoou pelo corredor. Olhei ao redor, e não havia ninguém.

Pensei em ignorar e obedecer às ordens do meu chefe, mas algo me impulsionou a correr para o segundo andar e atender o paciente que precisava de atendimento urgente. Saí do elevador e fui de encontro com os enfermeiros da ambulância que entravam empurrando a maca.

— O que aconteceu? – Perguntei olhando para o paciente.

— Acidente grave. De carro. As pernas ficaram prensadas e ele bateu a cabeça com muita força contra o vidro. Estava sem cinto.

Olhei para o paciente completamente machucado. Estava desacordado, obviamente. A testa com um enorme corte e as pernas visivelmente quebradas. Acompanhei os enfermeiros até a sala de cirurgia, e Victor veio de encontro a nós.

— O que houve?

— Acidente de carro. – Respondi. - Pernas fraturadas e corte profundo na testa. Não sabemos se tem mais alguma fratura.

— Certo. Levem-no para a sala de cirurgia.

Enquanto os enfermeiros levavam o paciente para a sala de cirurgia, Victor e eu nos trocamos e nos preparamos para salva-lo. Essa era a nossa missão, e até então eu nunca havia falhado.

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— Foi por pouco. – Victor disse quando terminamos de nos higienizar. – Ele teve muita sorte.

— Mas ainda precisa acordar. Foi um corte muito profundo.

— Ele vai ficar bem.

— Assim espero.

— Podemos comemorar. – Ele sorriu divertido e eu o empurrei.

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— Não adianta, Krum.

— Você vai ceder algum dia, eu sei disso.

— Por que não vai encher os seus pais no dia de ação de graças? Faltam apenas dois dias.

— É exatamente o que vou fazer. Devia fazer o mesmo.

Apenas sorri e continuei andando. Andei pelo corredor com a sensação de missão cumprida, mais uma vez. Mas minha animação se esvaiu quando Doutor Carter veio em minha direção, com os olhos faiscando.

— Granger!

— Senhor.

— Eu pensei que tinha te dado uma ordem.

— Desculpe. Foi uma emergência.

— Uma emergência que você poderia não ter ajudado.

— Mas foi mais forte do que eu, Senhor. O paciente está bem.

— Eu espero mesmo que esteja, e espero que você fique encarregada disso, mas depois de descansar. – Ele disse autoritário. – Não vou tolerar que passe por cima da minha palavra mais uma vez.

— Sim Senhor.

Doutor Carter embora rigoroso, era uma boa pessoa. Eu sabia que por trás de todo aquele jeito nervoso e mandão existia um homem dócil, mesmo que fosse beeeem no fundo. Decidi não abusar da sorte mais uma vez e fui até o vestiário para pegar minhas coisas.

— Está indo embora? – Nina me perguntou quando nos encontramos.

— Sim. Fui obrigada. – Suspirei e ela riu.

— Estava mais do que na hora. Se ficasse mais tempo acordada era capaz de você dopar um paciente em coma.

— Muito engraçado. – Forcei um sorriso. – Eu vou, mas volto amanhã de manhã.

— Vê se descansa.

— Eu nunca descanso. - Acenei para ela e saí da sala.

Chegar em casa era a pior e a melhor parte do dia. Eu ficava aliada por finalmente poder descansar, mas ficava infeliz de olhar para aquele apartamento vazio. Joguei minhas chaves em qualquer lugar e coloquei minha bolsa no sofá. O apartamento não estava bagunçado, mas há muito tempo eu não fazia uma boa faxina geral ali. Mas não seria hoje que eu faria isso. Fui até a cozinha e abri a geladeira na espera de encontrar alguma sobra de pizza, mas me lembrei que nem isso tinha. Eu precisava urgente fazer compras. Tomei um copo de suco e fui para o meu quarto, praticamente arrastada.

Olhei para o relógio e pensei em coloca-lo para despertar, mas minha mão parou no meio do caminho, e depois disso eu não me lembro de mais nada. Tudo escureceu.

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*Pip. Pip. Pip. Pip* “Mas que barulho infernal!” *Pip. Pip. Pip* “Que droga! Esses vizinhos idiotas não sabem respeitar o horário de sono?” *Pip. Pip. Pip. Pip* “Mas que po...” Abri os olhos procurando de onde vinha aquele barulho ensurdecedor, e então me dei conta de que era o meu celular, avisando que havia três mensagens na caixa postal. “Ah não. Droga! Droga! Droga!” Acordei com um pulo e olhei para o relógio. Estava mais do que atrasada. Estava super atrasada! “Mas que droga!”. Corri para o banheiro e tomei um rápido banho. Não deu tempo de tomar café da manhã, mas não fazia tanta diferença, não tinha nada na minha geladeira além de conserva.

Corri para a calçada como uma louca. As pessoas olhavam para mim e provavelmente se perguntavam “O que essa doida esta fazendo com o casaco aberto e os sapatos na mão?”. Dei sinal para o primeiro taxi que passou, ele parou e por sorte o motorista gostava de adrenalina. Dirigia feito um louco, quase avançando nos sinais (mas ele conseguia ser mais rápido do que eles). Em outros dias eu me preocuparia e até o mandaria parar ou ir mais devagar, mas naquele dia ele veio a calhar.

Em menos de quinze minutos cheguei ao hospital. Paguei o taxista e nem me preocupei com o troco, para a sorte dele. Corri em direção à recepção e quando entrei, Carla me olhou assustada.

— Meu Deus! O que aconteceu? – Ela perguntou me olhando perplexa. – Você foi atropelada por um caminhão.

— Estou atrasada. Bom dia! – Passei correndo pela recepção e segui em direção à sala dos médicos.

— Olha ela aí! Você não dormiu hoje de novo?

Victor perguntou com um copo de café em sua mão. Peguei o copo da mão dele e corri para bater o meu ponto. Nunca havia corrido tanto em minha vida.

— Meu Deus, você está péssima! – Nina me olhou. – Para que essa pressa toda?

— Estou quase quarenta minutos atrasada. – Falei com a respiração ofegante, bebendo um pouco do café que roubei de Victor.

— É uma doida mesmo! Isso tudo por causa de horário? Eu nem sei mais quantas vezes já cheguei atrasada.

— É por isso que você nunca ganha o bônus no final do mês. – Victor disse se aproximando de nós duas. – E você me deve sete libras pelo café.

— Você pode colocar na conta. – Falei ainda respirando ofegante.

— Carter disse para você ir checar o paciente de ontem. Está no quarto sete. Ele disse que você ficaria encarregada dele já que arriscou seu emprego pra salvar a vida dele.

— Ótimo. – Suspirei. – Cuidar de pacientes desacordados é minha maior alegria.

Eu não estava mentindo. Eu realmente gostava de cuidar dos pacientes que estavam desacordados. Pode parecer loucura, mas eles são os melhores ouvintes, e com eles eu podia conversar sobre tudo e de qualquer pessoa. Era relaxante e reconfortante poder contar segredos e saber que a pessoa não se lembraria de nada disso quando acordasse.

Fui até o quarto sete e peguei a ficha do paciente que estava na porta. Quando entrei no quarto olhei para ele, estava completamente diferente do dia anterior. Era óbvio que eles não o deixariam todo sujo e com roupas rasgadas, mas também havia algo de diferente nele. Me aproximei com cautela e olhei para seu rosto. Seus cabelos eram tão ruivos que eu quase estiquei minha mão para tocá-los, apenas para saber se eram de verdade. Controlei aquele pensamento maluco e olhei para sua ficha.

Quando foi socorrido ele havia sofrido uma parada cardiorrespiratória e foi reanimado pelos enfermeiros da ambulância. Mesmo depois da cirurgia em suas pernas que realizamos no dia anterior, ele ainda não teve reação aos testes em seus membros inferiores. Teríamos que espera-lo acordar. Desde a cirurgia ele não havia acordado, apenas mexido os dedos das mãos algumas vezes. Me aproximei para olhar o corte em sua testa e percebi que deveria trocar a atadura em volta de sua cabeça.

— Foi uma pancada feia, hein?! – Falei inutilmente enquanto colocava minhas luvas. – Mas já está na hora de acordar, não acha, dorminhoco? – Sorri para ele, e ele permaneceu imóvel. Me aproximei dele e cortei a atadura, revelando um corte profundo, porém no processo de cicatrização. – Isso deve ter doído. – Continuei falando enquanto limpava o corte. – Uma vez quando eu era criança eu bati minha cabeça em um galho de árvore. Não chegou a cortar, mas fez um galo enorme. Foi uma dor tremenda, e eu fiquei algumas semanas sem conseguir passar perto de árvores. – Eu ri de mim mesma. – Mas no seu caso não vai ser tão ruim. Você vai estar preocupado demais em agradecer pela sua vida. É um grande vencedor. – Comecei a enrolar a atadura em volta de sua cabeça, matando a curiosidade se o cabelo dele realmente era de verdade. – É, é de verdade. – Sorri.

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Me afastei dele e olhei para o eletrocardiograma. Estava tudo normal.

— Bom, parece que não tenho muito o que fazer aqui. – Peguei a prancheta e fui até a cortina, abrindo-a um pouco. – Você precisa ver como o dia está lindo. – Continuei de costas para ele, olhando através da janela, quando escutei um barulho. Olhei para ele imediatamente, e vi que ele se mexia. Corri até sua cama e esperei um tempo para ver se ele estava acordando, e para minha surpresa, estava.

— Onde... Onde estou? – Ele perguntou com a voz grave porém baixa. Olhei rapidamente para sua ficha e tinha apenas um nome: Rony. Sem sobrenome, sem telefone, sem nada.

— Ahm... Rony! – Falei e ele forçou para abrir os olhos.

— Por que... Tão claro?

— Ah! É claro! – Corri até a janela e fechei as cortinas.

Voltei para perto da cama e esperei até que ele abrisse os olhos. Quando o fez, revelou os olhos verdes como bolinhas de gude, que se iluminaram com a baixa luz do quarto.

— Você consegue me ouvir? – Perguntei em voz baixa. – Está sentindo alguma coisa? Dores?

— Não... – Ele respondeu piscando várias vezes.

— Preciso examinar você, e vou lhe explicar tudo, está bem?

— Onde eu estou?

— Você está na sala de um hospital. Sofreu um acidente grave de carro.

— Acidente?

— Sim. Você ficou desacordado por algumas horas. – Coloquei uma pequena lanterna em seus olhos. – Siga a luz, está bem?

Mexi a lanterninha para os lados e ele seguiu a luz.

— Seus reflexos estão bons. – Guardei a lanterninha em meu bolso. – Está com dor de cabeça? Dores no corpo?

— Dor de cabeça.

— Certo.

— Quem me trouxe para cá?

— Os enfermeiros que fizeram o resgate.

— Como foi que aconteceu?

Olhei em sua ficha.

— Parece que você... Estava em alta velocidade. Bateu o carro no poste, por isso o corte em sua testa. Você estava... Sem o cinto de segurança.

Ele parecia se lembrar, mas não teve nenhuma reação. Os pacientes que sofriam acidentes, principalmente quando eles mesmos eram culpados por isso, costumavam arrepender-se por ter feito tudo errado. Alguns começavam a dizer que mudaria de vida e que seria uma pessoa melhor, mas ele não parecia arrependido de nada.

— Eu... Não estou conseguindo mexer a minha perna. Eu deveria estar assim?

Olhei para ele e abri a boca algumas vezes para dizer, mas ele não me esperou dizer.

— Pela sua reação parece que não. – Disse com frieza.

— Precisamos fazer alguns exames. Você sofreu algumas fraturas nas pernas e uma lesão na coluna. Teremos que fazer alguns raios x para saber qual foi a gravidade da lesão.

— Isso quer dizer que eu posso não andar mais?

— N... Não. Não foi isso que eu disse.

Eu nunca havia me sentido daquela maneira. Sempre me dei bem com meus pacientes, até mesmo os mais difíceis de lidar. Mas aquele em especial conseguia me deixar sem graça, e fazia com que eu não tivesse a mínima vontade de animá-lo. Ele mesmo parecia não querer que eu fizesse isso, notando pela sua frieza.

— Você é medica?

— Sim.

— Pensei que era enfermeira.

— Não, eu sou médica. Tenho um diploma. – Ok. Talvez eu tenha sido um pouco rude. Ele me olhou por um tempo e depois virou o rosto para a porta.

— Eu quero falar com um médico. Homem.

Eu queria questionar o porquê. Queria chama-lo de machista e dizer que não seria possível chamar um médico homem para cuidar dele porque ele não tinha toda aquela mordomia. Mas a minha ética e o meu profissionalismo me impediram de dizer isso.

— Vou ver o que posso fazer por você. Vou pedir para fazerem alguns raios x até lá.

Mesmo tentando agir com toda a ética de uma profissional, foi impossível não responde-lo na mesma frieza com que ele me tratava. Saí do quarto sem nem ao menos perguntar se ele precisava de mais alguma coisa ou se sentia mais dores. Fechei a porta e pendurei a ficha dele de volta, com raiva.

— Epa! Qual o problema? – Victor passou no mesmo instante.

— O paciente de ontem acordou. E está descontando toda a raiva que ele acumulou enquanto ficou desacordado.

Victor riu.

— É a primeira vez que vejo você reclamando de um paciente.

— É que esse é... Eu não sei. Ele é frio. Ele me trata com indiferença.

— Ele só está confuso. Acabou de acordar depois de um acidente grave.

— Eu sei. Argh! Não sei por que estou assim. Eu não deveria me importar, eu sou uma profissional.

— Tudo bem. Respire um pouco e depois volte lá.

— Preciso pedir um exame de raios-X. Ele diz que não está sentindo as pernas.

— Isso é preocupante.

— Também vou pegar um medicamento para ele, está se queixando de dor de cabeça.

— Está bem. Vá lá e aproveite para esvaziar a cabeça. Lembre-se que você é uma profissional.

— Ah... Ele quer um médico homem.

— O que?

— Não sei se é machista ou supersticioso, muito menos se ele tem afeto por pessoas do mesmo sexo, mas ele diz que quer um médico homem.

— Está bem. Vá lá fazer os pedidos dos raios-X que eu vou conversar com ele.

Concordei e nós nos separamos. Fui fazer o pedido de raios-X e passei na farmácia para pegar o medicamento para levar para ele. Quando estava voltando, passei pela recepção e parei pensativa. Talvez ele estivesse assim porque precisava da família. Da esposa, namorada, noiva. Dos pais. Dos irmãos. Alguém que ele pudesse confiar.

— Megg. – Escorei no balcão. – Tem a ficha do paciente que deu entrada ontem à noite? O que sofreu acidente de carro.

— O ruivo?

— Sim.

Só eu que não tinha reparado antes que ele era ruivo?

— Vou olhar.

Esperei enquanto Megg digitava em seu computador, até ela torcer o nariz e fazer uma feição estranha olhando para a tela.

— O que foi? – Perguntei.

— Não tem nada. Ele não estava com documentos. Não tem telefone e nem como encontrar as pessoas próximas. Estava sem celular também. Esse realmente não queria ser encontrado. – Ela riu. – Só encontraram um bilhete no bolso dele. Tinha um nome na parte da frente, deduziram que era o apelido dele...

— Rony.

— Isso.

— Você tem as coisas dele aí? Quero dizer... As poucas coisas que ele tinha.

Megg tirou um saquinho debaixo do balcão e me entregou. Só havia um relógio e um bilhete. O tal bilhete.

— Obrigada.

— Acha que devemos pedir para investigarem pela placa do carro? Precisamos avisar algum parente.

— Não sei. É melhor conversar com ele primeiro. Talvez ele diga alguma coisa. – O que eu acho muito difícil.

Segui até o quarto sete e vi através da janelinha que Victor estava conversando com ele. Ele não parecia tão frio quanto estava comigo, mas sua feição continuava fechada e misteriosa.

— Com licença, Doutor. – Entrei no quarto e fui até a cama.

— Ah, aí está ela! – Victor sorriu. – Estávamos falando de você.

— Mesmo? – Olhei para Rony e ele continuou sério, erguendo apenas uma das sobrancelhas.

— Eu dizia a ele que ótima profissional você é, e quantas vidas você já salvou desde que veio trabalhar aqui.

— Ah... Não foram tantas assim. – Disse envergonhada.

— Está sendo modesta. E eu disse à ele que ele seria um sortudo se você tivesse que cuidar dele durante esse tempo que ele está aqui no hospital.

— E pelo visto ele ficou muito animado com a notícia. – Falei sarcástica e ele sorriu de lado. Não foi um sorriso animado, estava mais voltado para o deboche.

— Ele concordou que você poderia cuidar dele, contanto que você seguisse algumas exigências dele. Certo?

Ele não respondeu, mas deu um longo suspiro. Exigências uma ova! Desde quando eu havia virado uma enfermeira particular?

— Então estamos entendidos. Eu volto mais tarde depois que você tirar os raios-X. Foi um prazer falar com você, Rony.

Ele não esboçou nenhum tipo de animação, nem mesmo disse um “obrigado” à Victor. Ele bateu no meu ombro e saiu da sala, nos deixando a sós. Provavelmente Victor percebeu que Rony era mais frio do que um iceberg, e que eu não me assustaria se esse fosse o nome do que afundou o Titanic.

— Eu... Peguei algumas coisas que estava com você na hora do acidente. – Entreguei a sacolinha para ele. – Não tinha muita coisa, mas deve ser importante para você.

Ele analisou a sacola, mas não a pegou.

— Jogue fora.

— O que?

— Eu não quero isso.

— Mas...

— Eu não sei por que não deixaram essa porcaria junto com o carro destroçado. Eu não quero isso.

Achei melhor não discutir, e coloquei o saquinho em cima da mesinha ao lado.

— Trouxe um comprimido para dor. Você tem que tomar a cada quatro horas, mas eu virei aqui para te lembrar.

— Ótimo. Tudo o que eu queria era uma babá.

— Me desculpe, mas acho que você não percebeu que eu só estou querendo te ajudar. – Falei sem pensar.

— Ajudar? Você se intrometeu em uma hora errada. Uma péssima hora. Por que teve que salvar a minha vida?

— Como é?

— Porque você não me deixou morrer?

— Acho que você deveria estar agradecido quanto à isso, não?

— Eu por acaso pedi para ser salvo? Não!

Isso estava mesmo acontecendo? Eu estava tendo uma discussão com um paciente? Nunca em todo o meu tempo trabalhando no hospital aquilo havia acontecido. Mas que tipo de pessoa se irritava por ter sido salva? Eu deveria ter me calado, mas ele foi uma das poucas pessoas que conseguiu me tirar do sério.

— Então da próxima vez que você quiser se matar, deixe um bilhete e coloque um aviso grande dizendo para que nenhum médico dedicasse horas do seu dia para salvar a sua vida! Mesmo que esse profissional tenha ficado vinte e seis horas sem dormir e por pouco não perdeu o emprego. Mas deixe em caixa alta para que ninguém corra esse risco de novo!

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Minha voz estava absolutamente elevada, chegando até a produzir ecos dentro da sala. Eu havia perdido o controle e a noção da situação. Se meu chefe ou qualquer outra pessoa me ouvisse tratar um paciente daquela maneira, obviamente eu levaria uma advertência, ou pior. Mas pelo visto tinha surtido efeito. Ao invés de me olhar com desdém como fez desde quando abriu aqueles malditos lindos olhos verdes, ele suspirou e escorou a cabeça no travesseiro.

Tentei aliviar minha raiva ajeitando as coisas em cima da mesinha e colocando um copo de água para que ele tomasse o remédio. Ficamos em silencio durante todo o tempo. Ele tomou o remédio e voltou a se deitar no travesseiro, observando cada movimento que eu fazia. Não sei o que era pior, aquele silencio perturbador ou uma pessoa que obviamente não queria a minha ajuda.

Quando eu não tinha mais nada a fazer ali a não ser ficar suportando aquele silencio e aqueles olhares de sobrancelha erguida sobre mim, me virei indo até a porta.

— Você pode pedir para que não avisem ninguém?

— O que? – Me virei para ele.

— Não quero que ninguém saiba. Não quero visitas enquanto eu estiver aqui.

— Nós... Não temos contato de ninguém. Esperava que você fosse nos dizer.

— Ótimo.

— Só descobriram que seu nome é Rony. É isso mesmo?

— Sim.

— Não quer que avise seus familiares?

— Não.

Preferi não discutir, ou ele soltaria sua fúria para cima de mim novamente. Apenas balancei a cabeça e abri a porta. Saí da sala com uma sensação diferente. Não era uma sensação de missão cumprida como eu costumava sentir. Eu tive a sensação de que mesmo que ele me afastasse, mesmo que ele não quisesse a minha ajuda, eu deveria ajuda-lo. De alguma maneira.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.