Bicho-papão.

Perguntas.


Gabriel passou uma ou duas horas, ele não sabia ao certo, sozinho na sala esperando sua mãe finalmente voltar. Lucas praticamente se trancou no quarto depois de pedir para o mais novo manter o relacionamento em segredo e, pelo visto, não pretendia sair de lá tão cedo. O garoto se limitou a deitar no sofá e encarar o teto, mantendo a expressão mais séria que podia. Desgosto. Foi o que seu irmão disse. Era o que ele representava agora.

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Esse pensamento foi quebrado pelo som da porta sendo aberta e, em seguida, de uma mulher sorridente entrando em casa com uma mala em mãos. Gabriel forçou um sorriso no rosto e se levantou para abraçá-la e recebê-la, afinal, sua mãe não precisava saber desses probleminhas, certo? Ela já se preocupava o bastante sem isso.

— Oi, mãe, que bom que voltou. — Ele sorriu mais enquanto desfazia o abraço.

— Oi, querido, senti saudades. — Ela retribuiu o sorriso. — Tudo bem? O Lucas tomou conta direitinho de você?

— Sim, mãe, tudo bem. E o Lucas cuidou bem de tudo... Então, como foi a viagem? — Ele mudou de assunto rapidamente.

— Ah, tudo bem. Cansativo, mas bom. — Comentou enquanto abria a mala, retirando um pequeno pacote dela. — E eu trouxe um presente para você.

Gabriel agradeceu e pegou o embrulho, mas, antes que pudesse abri-lo, Lucas apareceu na sala já com a mochila nas costas e todas as atenções foram voltadas para ele.

— Uh, oi, que bom que voltou de viagem. — O mais velho sorriu olhando para a mãe e Gabriel teve a sensação de ser ignorado. — Acho que eu já vou indo, beijo e tchau. — Disse rapidamente enquanto ia para a porta da frente, mas a mulher o segurou pelo ombro.

— Espera aí, mocinho, por que a pressa? Até parece que fez algo errado... — Alfinetou mantendo uma expressão séria. — Pelo menos leva seu presente junto. Comprei uma lembrancinha para cada um. — Ela completou mais suavemente e entregou a ele um pequeno embrulho semelhante ao de Gabriel.

— Ok, obrigado. — Lucas sorriu de novo e colocou a caixinha no bolso, deixando a casa logo em seguida.

Assim que ficaram sozinhos, Gabriel abriu seu presente: um PSP. Não era moderno, mas era muito bom, e um videogame portátil poderia ser bem útil. Além do mais, ele sabia que era o melhor que sua mãe pôde comprar, então se limitou a sorrir e agradecer com outro abraço.

— Obrigado, mãe.

— De nada, meu bem. Agora vou desfazer a mala, depois vamos lanchar e você me conta as novidades, tá bem?

— Claro.

*

Gabriel se manteve entretido jogando no PSP enquanto sua mãe reorganizava o guarda-roupa e tomava um banho. Depois disso, a mulher comprou um bolo na padaria para o lanche e perguntou o que aconteceu nos dias em que passou fora. O garoto deu as respostas mais genéricas que conseguiu pensar sem levantar tantas suspeitas, afinal, o que ele diria? Que começou a namorar o melhor amigo? Que seus problemas com o bicho-papão voltaram? Que ele e Lucas haviam discutido? Não... Era melhor ficar quieto e manter as aparências.

Felizmente, a mulher pareceu relevar o silêncio do filho e, em vez de fazer mais perguntas, decidiu mudar de assunto e contar os detalhes da viagem, além de planejar algumas atividades para fazerem no fim de semana ou na próxima folga dela. Passeios, cinema, teatro... Qualquer coisa que ele quisesse, como que para compensar o tempo que ela tinha de passar fora de casa.

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Depois do lanche, a mãe de Gabriel o convidou para assistir TV com ela antes da hora de dormir, mas ele recusou com o pretexto de fazer dever de casa e foi direto para o quarto. Não é que ele não gostasse de passar um tempo com a mãe, pensou consigo mesmo, ele só precisava de um tempo sozinho. Sim, apenas isso.

A parte do dever de casa não era mentira, ele realmente pegou os livros e começou a fazê-los... Por dez minutos. Na metade da lição, o garoto já estava preferindo encarar o teto a ler outra questão. Entretanto, isso não durou muito, pois poucos minutos depois Gabriel encontrou uma distração melhor: seu celular.

Ele passou um tempo apenas checando o Facebook e jogando, mas logo se entediou com isso também e pensou no que fazer a seguir. Voltar para o dever? Não... Depois ele fazia isso. Ir assistir TV com sua mãe? Não... Ela só via jornal, e Gabriel não gostava muito de ver as notícias. Quem sabe mandar uma mensagem para o Daniel e conversar um pouco? Hm... No começo, a ideia pareceu péssima, Gabriel nunca havia mandado mensagem para o outro sem um bom motivo antes. Mas agora eles eram namorados, isso mudava um pouco as coisas, certo? Bem, valia a pena a tentativa:

“Olá :D”

Em menos de cinco minutos, veio a resposta:

“Hey! Tudo bem com vc? S2”.

“Td sim. E vc?”

“Ótimo! Foi tudo bem com seu irmão?”

Gabriel ficou um tempo encarando essa frase e, por fim, decidiu mentir. Não queria deixar Daniel para baixo com problemas de família.

“Sim, ele entendeu td no fim :)”

“Q bom! Então... Vamos sair no fds?”

“Ñ sei, talvez eu saia com minha mãe nesse fim de semana, Mas podemos marcar algo na escola amanhã, ok?”

“Ok. O que você achar melhor :3”

Gabriel sorriu para a tela do próprio celular. Daniel era a pessoa mais compreensiva que o garoto conhecia, e isso era algo que o bicho-papão nunca seria... Mas por que estava pensando nele? Era melhor focar na conversa com seu namorado, ele se repreendeu. E assim o fez, eles conversaram sobre banalidades e tudo o que vinha à mente, e Daniel mandou uma foto das respostas do dever de casa também... Eles passaram tanto tempo trocando mensagens que Gabriel nem notou o tempo passando até que sua mãe o chamou para jantar.

*

Logo chegou a temida hora: hora de ir para a cama. Gabriel achava que o dia passou rápido demais... Mas agora não era hora de reclamar, ele precisava ir para um quarto — seja o seu ou o de Lucas — e ficar deitado no escuro até dormir. Com sorte, ele não veria o bicho-papão hoje, afinal, já fazia algum tempo que não se viam, quem sabe ele desistiu de Gabriel?

Mesmo sabendo que isso era altamente improvável, o garoto decidiu se agarrar à hipótese. No fim, esperança é a última que morre... Depois de pensar um pouco, decidiu que dormiria no quarto de Lucas, ele se sentia mais seguro no beliche de cima. Mesmo se a criatura aparecesse, a cama era muito estreita para duas pessoas deitarem ao mesmo tempo e, lá de cima, seria mais fácil ignorar sombras no canto do quarto.

Tendo feito a escolha, Gabriel tomou um banho, pôs o pijama, escovou os dentes e deu um beijo de boa noite na mãe, tudo dentro da rotina. Quando passou pelo corredor, sentiu a tentação de deixar a luz acesa assim como antigamente. Aquela fresta de luz que entrava pela porta entreaberta sempre foi muito bem vinda... Mas aquilo preocuparia sua mãe, pareceria que ele não superou o medo de escuro. Não, ele teria que encarar a escuridão total, não pode ser tão ruim, certo?

Errado.

No começo, tudo foi bem normal: ele se deitou na cama com todas as luzes apagadas e se cobriu com o lençol, não viu nada anormal no quarto, ninguém a não ser ele. Mesmo assim, por algum motivo, o garoto ficou se revirando na cama sem conseguir dormir, talvez pela ansiedade ou pela sensação de que essa paz não duraria. Gabriel ouviu a TV sendo desligada, indicando que sua mãe havia ido dormir... A casa caiu num profundo silêncio.

Algum tempo depois, Gabriel não sabia dizer ao certo quanto, ele começou a se sentir observado. A sensação era fraca no começo, mas constante o bastante para ser notada. Paranoia? Talvez. Ao menos ele torcia para que fosse! Mas essa esperança desapareceu quando o som de garras arranhando a parte de baixo da cama, não de um modo raivoso ou animalesco, apenas o barulho constante da madeira sendo arranhada, seguido por uma pausa e um novo arranhão, como se a pessoa que o fizesse estivesse entediada.

Gabriel fechou os olhos com força e ficou imóvel, dando seu melhor para ignorar tudo isso. A sensação de ser observado, o som da madeira sendo arranhada, a certeza de que se olhasse para baixo veria um largo sorriso e olhos amarelos. Isso era quase tortura psicológica! Depois do que pareceu uma eternidade para Gabriel, os sons pararam e o quarto voltou ao silêncio. Talvez o bicho-papão realmente desistiu de falar consigo essa noite? A ideia o aliviou.

Ah, doce engano...

— Por quanto tempo pretende me ignorar? — A conhecida voz chegou aos ouvidos de Gabriel e o garoto respirou fundo, não dava mais para evitar essa conversa.

— Eu não estou te ignorando. — Mentiu encarando o teto. Talvez, se negasse tudo, conseguisse evitar uma discussão.

Claro que não... — Zombou. — Só evita falar comigo ou olhar para mim... Vai me contar o motivo?

— Talvez eu não tenha um motivo. Talvez eu só tenha crescido e decidido que o bicho-papão não existe! — Gabriel exclamou mais alto do que pretendia, descontando sua frustração no outro.

Ele se arrependeu disso poucos segundos depois de dizê-lo, pois o quarto mergulhou novamente no silêncio. Um, dois, três, dez minutos e nada. Nenhuma palavra, nenhum comentário. Foi então que o garoto tomou mais uma péssima decisão: virar de bruços para espiar a cama de baixo. O bicho-papão ainda estava lá, deitado em silêncio, sem o sorriso característico e com os olhos brilhando intensamente. Quando percebeu que Gabriel o observava, saiu do estado de torpor e voltou ao tom irônico:

Quanta agressividade, não combina com você... — Ele sorriu zombeteiro. — Você está me evitando por dias e se recusa a dormir no próprio quarto — Gabriel fez menção de reclamar, mas ele o cortou. — e isso não é uma pergunta, é um fato. Agora temos a questão: vai me contar o motivo ou tenho que descobrir sozinho?

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Gabriel se calou e desviou o olhar para a parede. Não era algo que desse para negar, era uma escolha: contar agora ou adiar o problema. Talvez ele conseguisse desviar o assunto ou inventar um motivo qualquer? Valia a tentativa.

— Não é nada demais. É só que... — Precisava inventar algo rápido. — Eu briguei com o Lucas, e não estou muito no clima para conversa. — Não era uma mentira, apenas uma meia-verdade. Talvez convincente o bastante?

— Hm, então você decidiu dormir no quarto do seu irmão porque brigou com ele? — Gabriel assentiu fracamente e sentiu dedos com garras segurando seu queixo e virando levemente seu rosto. — Poderia ao menos olhar para mim quando eu falo com você. — O bicho-papão estava agora sentado na cama, seu rosto apenas alguns centímetros abaixo do rosto de Gabriel. — O que aconteceu?

— Não foi nada... — Ele sentiu a tentação de desviar o olhar, ou mesmo virar novamente para encarar o teto, qualquer coisa seria melhor que continuar encarando os olhos brilhantes daquele ser, que exigiam a verdade. — Se eu te contar, você não vai gostar. — Cedeu.

Tente. — O bicho-papão sorriu largamente, agora estavam chegando a algum lugar.

Gabriel suspirou pesadamente, pelo visto, ele não conseguiria dormir se não contasse aquilo de uma vez! Como ele se metia nessas situações mesmo?

— Bem... Talvez eu possa estar, ah... Namorando alguém agora. — Admitiu, se preparando para o pior. Garras arranhando a parede, gritos, fúria... Mas nada disso veio.

Você. Está. Namorando. — Ele repetiu bem devagar, quase sibilando.

— É, eu estou. A-Algum problema com isso? — O garoto tentou se impor, mas sua voz tremeu um pouco, principalmente quando foi respondido por um sorriso assustador tão perto de seu próprio rosto.

— Problema? É... Talvez eu tenha um problema sim. Mas você precisa dormir, falamos disso amanhã. Boa noite, Gabriel. — Ele se despediu e desapareceu em meio às sombras.

Por um momento, o garoto cogitou se o “falamos disso amanhã” era ou não uma ameaça. Por fim, deu de ombros e rolou na cama, voltando a encarar o teto, outra hora ele se preocuparia com isso, agora só queria dormir.

*

Gabriel acordou com o som do despertador e, lentamente, começou a se arrumar para ir à escola. Ele ainda estava com sono, provavelmente por ter ficado acordado até tarde, mas teria que dar um jeito de aguentar a escola. Ele lavou o rosto com água fria, pegou a mochila e foi até a cozinha, onde sua mãe o esperava com um sorriso no rosto.

— Bom dia, querido. Dormiu bem?

— Bom dia, mãe. Dormi sim, muito bem. — Respondeu automaticamente e se sentou a mesa, sendo servido logo depois.

Para o café da manhã, havia um bolo comprado na padaria e um Toddyinho. Depois de comer e escovar os dentes, Gabriel se despediu da mãe e foi para a escola. A mulher perguntou se ele queria uma carona de carro, já que ela não precisaria trabalhar de manhã naquele dia, mas Gabriel recusou e disse que preferia ir a pé.

Na verdade, o motivo de Gabriel recusar uma carona foi esse: Daniel. Depois que começaram a namorar, ele e Daniel costumavam se encontrar na metade do caminho e iam conversando. Claro que isso exigia que o garoto acordasse um pouco mais cedo, por algum motivo Daniel gostava de chegar com muita antecedência à sala. Mas isso não o incomodava, afinal, qualquer coisa para fazer seu namorado feliz.

Após alguns minutos de caminhada, Gabriel encontrou Daniel o esperando na esquina de sempre com um sorriso amigável. Ao vê-lo, o garoto retribuiu o sorriso de modo educado.

— Bom dia. — Gabriel cumprimentou.

— Bom dia, amor. — Daniel o abraçou assim que ele se aproximou. — Então tudo bem?

— Claro, tudo ok. E você?

— Melhor agora com você. — Sorriu.

Os dois andaram juntos por algum tempo, falando sobre qualquer coisa que pensassem apenas para evitar o silêncio constrangedor. Entretanto, depois de alguns minutos, Daniel se calou por um instante e olhou para os lados, como se quisesse dizer algo, mas não tivesse certeza de como fazê-lo.

— Hm... Gabe, posso te pedir uma coisa?

— Ah, tudo bem. Vá em frente. — Gabriel estranhou a pergunta.

— Será que a gente pode... Você sabe, andar de mãos dadas até a escola? — Perguntou timidamente e Gabriel pensou ter visto as bochechas do namorado corarem.

— Era isso? Ah, claro, por mim tudo bem. — Concluiu igualmente sem jeito.

Daniel sorriu e beijou o namorado rapidamente na bochecha para agradecer. Os dois andaram um bom trecho de mãos entrelaçadas antes que o primeiro voltasse a fazer uma pergunta inusitada:

— Ei, Gabe... Só mais uma coisa.

— Hm?

— Eu sei que não é da minha conta, mas... Naquela hora na sorveteria, quando seu irmão falou de “duas gatinhas” — Fez aspas com os dedos. —, eu sei que é uma pergunta boba, mas você gostava de mais alguém antes de aceitar meu pedido?