O Grande Inverno da Rússia

Eu Conheço Você


Londres, Inglaterra. 27 de Maio de 1910.

Residência dos Watson.

Grigori havia passado o dia inteiro brincando com Emily e as demais filhas do Dr. Watson. Claro, isso jamais aconteceria se não fosse pela ida de Molly Watson, mãe das meninas, à Kent, visitar a irmã doente. No pequeno jardim da residência dos Watson, o menino brincava de pique-esconde e também desenhava para as meninas, que pareciam admiradas com os rabiscos dele.

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Quando as pequenas se retiraram para as aulas de Música – que Emily não participava porque desde cedo jamais tivera aptidão ou paciência -, Grigori pôde ficar às sós com a mais velha dos Watson, algo que não acontecia desde o terrível incidente envolvendo os dois.

Desta vez, a agitada Emily decidiu fazer algo mais “saudável” do que cavar segredos de família alheios. Levou o menino Grigori até a suntuosa biblioteca de seu pai. Mostrou a ele os volumes que ela ganhara de Watson, seu pai: “Alice no País das Maravilhas”, “O Pequeno Príncipe”, dentre outros. No entanto, sua traquinagem não tardou para aparecer: sabendo da habilidade de Grigori em escalar coisas, ela pediu que o menino alcançasse a prateleira mais alta, que continha os volumes de Medicina de seu pai, inclusive o Manual de Anatomia Humana. As crianças abriram as páginas e ficaram atônitas em perceber o que de exato havia no corpo humano: o sistema respiratório, circulatório, digestivo, dentre outros. Porém, ao chegar na metade do livro, as crianças encontraram o sistema reprodutor masculino, que suscitou na atrevida e curiosa Emily muitas perguntas que deixaram Grigori encabulado, forçando o menino a desviar a conversa daquele tópico nada agradável sobre “como você consegue andar com tanta coisa entre suas pernas?”.

-Er... O que exatamente faz o Mr. Holmes? – tentou fugir daquela conversa.

Emily pareceu surpresa, a ponto de se esquecer de sua curiosidade. Não sabia que o menino, que morava há semanas com Sherlock Holmes, era tão ignorante a respeito dele. – Pensei que soubesse. Aliás, qualquer um sabe o que faz Sherlock Holmes. Você nunca ouviu falar dele antes?

-Não. E na verdade, eu só estou perguntando porque... Quando nos conhecemos, ele disse o nome dele como se esperasse uma reação minha. Mas não houve, então... Isso me deixou intrigado. Eu deveria saber quem ele era?

-Claro que sim! – exclamou Emily. – Mr. Holmes é um homem famoso!

-Mas pelo quê?

-Ele é um detetive. O mais famoso detetive da Europa. E meu pai é seu biógrafo e melhor amigo. Você jamais leu as histórias?

-Não. Eu... Eu não sei ler Inglês. Só Russo, e muito mal.

Emily ficou em silêncio, afinal não esperava por isso. Por final, sem pensar duas vezes, ela fechou o livro de Anatomia – fazendo o menino Grigori suspirar de alivio.

-Eu vou te mostrar todos os livros de Mr. Sherlock Holmes e você vai entender quem ele é.

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Londres, Inglaterra. 27 de Maio de 1909.

Trafalgar Square.

Já era noite quando o táxi trazendo Sherlock Holmes estacionou na Trafalgar Square. Perante a imponente estátua do Almirante Nelson, o detetive saiu, atravessando a larga Trafalgar Square, no coração do Strand. Assim como ele, muitos visitantes da elite inglesa estavam presentes para a breve exposição dos quadros do jovem Eric Reid, outrora aluno da Real Academia de Artes Britânica e agora mártir da “causa trabalhadora”. Holmes reconhecera o crescimento da imagem de Eric aos esforços de Norah em transformar o filho em um gênio cuja vida fora interrompida em prol de um mundo melhor e sem exploração, no malfadado assassinato de Macintosh. O discurso enojava Holmes, e principalmente, o tornava mais descrente quanto ao quê Norah Reid tinha se tornado com o passar dos anos. Ele se perguntava se Esther tivera a mesma impressão em seu último encontro com a feminista.

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Deixando sua cartola e mostrando seu convite ao recepcionista, Holmes adentrou a famosa Galeria de Artes londrina, carregando o folheto que coletou na casa de Norah. Não demorou muito a localizá-la, pois lá estava ela, rodeada por seus assessores, sendo entrevistada por jornalistas.

—... e espero que a memória de meu filho seja eternizada com esta exposição. Que todos possam sair daqui tocados, ou melhor, motivados a desejarem um mundo mais igualitário. Um mundo pelo qual ele deu a vida para que acontecesse. – ela disse, recebendo um lenço de um de seus assessores. Um jornalista tirou uma fotografia do momento.

—Mrs. Reid, a senhora permanece a defender o voto feminino? – perguntou um jornalista, mais audacioso.

—Sim. Nós, mulheres, somos as responsáveis por conceber a vida. Todos os homens de bem tiveram por trás de si uma mulher, seja a mãe, avó ou mesmo esposa. Se parte de nossa iniciativa a boa formação de um cidadão, por que não podemos participar do processo eleitoral?

Holmes cruzou os braços, impaciente. Esperou que a entrevista da sufragista Norah Reid terminasse, para se aproximar dela. Por sorte, ela não estava em seu dia mis inspirado e suas respostas foram curtas.

-Boa noite, Mrs. Reid. – ele disse, se aproximando, por fim.

-Mr. Holmes, folgo em vê-lo. – respondeu Norah.

-Seu discurso a respeito de Eric foi deveras tocante. Pergunto-me no que estava pensando para que lágrimas saíssem de seus olhos enquanto recitava aquelas mentiras. – disse Holmes, com cinismo. Norah preferiu não responde-lo.

-Você me fez uma promessa, Mr. Holmes. Espero que a cumpra, do contrário, jamais te darei a localização de Lev.

-E irei cumpri-la. Como um político honesto deveria fazer. – disse o detetive, quando recebia mais uma taça de champanhe. – A propósito, fiquei deveras surpreso em constatar que o quadro que fica exposto em sua sala recebeu uma saleta apenas para si. – disse o detetive, conduzindo Norah pela exposição.

-Era o quadro preferido dele. Achei melhor destaca-lo dos demais.

-Admito que seja um quadro bonito. Aliás, servirá aos nossos propósitos deixa-lo em um local privado.

Norah parou de andar subitamente.

-Privado?! Aquele quadro faz parte da exposição. O quê...?

-Apenas siga-me. – disse o detetive, cortando a feminista.

Norah percebeu que um segurança impedia o acesso ao local do quadro mencionado por Holmes. Sem dúvida, concluiu a feminista, foi uma armação dele. Mas para seu pasmo, havia uma mulher diante do quadro. Ela era elegante, deveria ter cerca de trinta anos, e segurava uma taça de champanhe. Como estava de costas, Norah não pôde reconhece-la, mas notou algo de familiar em sua postura. Algo...

-Vejo que recebeu bem o meu recado, Mrs. Macintosh. – começou o detetive.

A mulher permaneceu fitando o quadro, de costas a Sherlock Holmes e Norah Reid, àquela altura nervosa por perceber toda a verdade diante de si.

-Está... Está querendo dizer que... Que... – Norah tentava dizer, mas suas palavras eram fracas. Ela estava completamente tomada de horror. – Não pode ser.

-Pensei que viria aqui sozinho. – disse a mulher, ainda de costas. Holmes conduziu Norah para mais perto dela, e sentiu as mãos da mulher trêmulas. Ele não sabia se de horror ou ódio. Talvez um misto de ambos.

-Precisava tratar de um assunto pendente. Pendente há um ano, para ser mais exato.

A mulher deixou escapar um riso discreto. Isso foi a gota d’água para Norah.

-Você! Você matou o meu filho! – ela exclamou, com os punhos fechados.

-Matei coisa alguma. O fedelho era fraco. Não fui eu quem enrolou o lençol no pescoço dele, foi? Ele se matou porque quis. – disse a mulher, com sarcasmo, recebendo como resposta um tapa. Temendo que maiores agressões viessem, Holmes decidiu conter Norah Reid.

-Basta, Norah. – pediu Holmes, tentando deter uma desesperada Norah. – Basta.

-Por que fez isso? Por que usar o meu Eric?

A mulher ainda parecia admirar o quadro. Só retirava o seu olhar apenas para observar suas unhas, bem cuidadas.

-Não foi meramente aleatório, se quer saber. O falso diário, plantado em suas coisas, a contratação de meu ajudante Wiggins como cocheiro... Tudo idéia minha. A escolha de seu perturbado Eric caía bem em meus planos. Eu precisava de um bode expiatório, e encontrei um perfeito para isso. Além disso, a morte de seu marido trouxe um grave prejuízo a mim. Ou melhor dizendo, a minha família.

-O quê?! – exclamou Norah, sem entender.

-Aposto que Mr. Holmes não te contou toda a verdade a respeito da morte dele, não? Tsc, tsc... É algo de se esperar de um homem tão repleto de segredos como ele. – ela disse, voltando-se para Holmes, que parecia agora mortificado.

-Do que ela está falando, Holmes? O que há sobre a morte de Reid que eu não saiba? O que você deixou de me contar?

-Bom, você teve mais de uma década de oportunidade para contar, então serei eu quem o farei. – ela disse, voltando-se para Holmes, desafiadora, enquanto abria um elegante leque. – Edmund Reid está morto porque tentou proteger, a todo custo, o maior segredo de Sherlock Holmes: seu matrimônio com uma judia imunda chamada Esther Katz. Acho que essa parte da história é ao menos de seu conhecimento, não?

Nora estava horrorizada. Naquele momento, Holmes encheu-se de pavor, por temer que suas chances de encontrar Lev Sokolov tivessem se reduzido a pó graças ao ímpeto daquela mulher traiçoeira. Aquela revelação até estava em seus planos, mas ele esperava maior compreensão de Norah Reid – ou melhor dizendo, da mulher que ele conhecia. Não aquela sufragista sem escrúpulos.

—Norah... – ele disse, tentando se aproximar, mas foi impedido.

—Não toque em mim! Seu desgraçado nojento! Você é o culpado por toda a desgraça de minha vida! – ela esbravejou, fazendo Holmes sentir-se levemente encolhido. – Bem fez Esther, por ir embora! E se pensa que irei ajuda-lo a encontra-la, está muito enganado!

Norah saiu daquela sala completamente abalada e sem olhar para trás, com lágrimas a borrar sua maquiagem. Holmes sabia que tinha perdido, ali, sua escassa chance de saber a localização do homem que ajudou Esther a entrar na Rússia. E tudo isso era culpa de Mrs. Macintosh. Ele lançou sobre a madame um olhar furioso, mas a dama parecia ser constituída de aço, pois nada parecia lhe abalar. Ela deixou escapar mais uma de suas risadas desafiadoras, fazendo Holmes se segurar para não estapeá-la tal como fez Norah Reid.

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—Devo admitir que estou curiosa para saber como descobriu a verdade sobre mim, envolvendo a morte de Eric.

Holmes deu um passo para ela. Sabia que costumava intimidar muitos homens, mas aquela mulher, aparentemente, era imune a si. Ainda assim, ele não se impedia de ser ameaçador. Ao menos, o permitido a uma mulher.

—Os quadros de Eric. Todos eles têm um rosto em comum, no meio da multidão de trabalhadores. – disse o detetive, tocando o dedo no rosto de uma mulher com vestes de operária, que estava no quadro. – O seu rosto.

Mrs. Macintosh riu.

—Você é bastante observador. – ela disse, enquanto alisava sedutoramente a lapela do terno de Holmes. No entanto, o detetive conteve seus avanços, segurando sua mão com força.

—É o meu trabalho saber o que os outros não sabem. – disse o detetive, com frieza. - Inclusive sua verdadeira identidade, Vera Pavlova Ivanov, a filha do falecido Duque Ivanov...

—(Não ouse falar o nome de meu pai, seu cão sarnento!) – exclamou Vera, em russo. Holmes soltou a mão de Vera instantaneamente, e também não deixou escapar o fato sem um comentário.

—(O vencedor não se priva de falar o nome de seus subjugados.), - disse Holmes, também em russo, causando surpresa a Vera, que caiu na gargalhada.

—(Parece que aquela judia imunda da Esther andou te ensinando bem, apesar de seu irritante sotaque britânico me fazer rir a cada palavra dita por você em meu idioma. Mas o que mais esperar de um inglês “chá e biscoitos”, não é? Mas afinal, consegui enganar a megera da minha irmã Olga, mas não consegui enganar um detetive do outro lado do Continente. Creio que tenho que dar algum crédito à fama atribuída a si, Mr. Holmes.)

—(Apesar de o automóvel ser uma novidade da última década, sabotagem neste tipo de veículo tem sido recorrente, diria até que tem se tornando um clichê. Uma morte discreta e convenientemente “acidental”. O problema desse tipo de atentando é que o corpo fica carbonizado, tornando seu reconhecimento quase impossível.)

—(Mas como soube que sobrevivi?)

—(Apesar de não mais viver em Londres, eu ainda tenho lá meus contatos aqui. E convenhamos que você não foi das mais discretas, arranjando casamento com um famoso industrial britânico. Poderia ter adotado uma postura mais discreta da que você levava em seu país e evitado mais as colunas sociais.)

—(Claro. Você reconheceu o meu rosto em fotografias de colunas sociais nos dois países. Sempre soube que tinha um rosto belo e marcante. Agora, se me permite, irei me retirar. A noite foi divertida, mas não posso me delongar mais. Dormir tarde acaba com a pele.) - disse a mulher, se abanando com seu leque. – Uma boa noite, Mr. Holmes.

Sozinho na sala, Holmes contemplou o quadro de Eric por mais alguns minutos, e depois se retirou, dando dois soberanos ao segurança - na verdade, ninguém menos que o Dr. Watson, disfarçado com uma peruca morena – que ficou do lado de fora.

—Esperava uma gorjeta melhor. – disse Watson, bem-humorado, guardando os soberanos recebidos pelo detetive no bolso. – E é verdade? Aquela mulher é mesmo...?

—Watson... Para o seu próprio bem, esqueça aquela mulher.