Sereias apocalípticas

O que aconteceu?


A morte do Woody me abalou mais do que eu imaginava. Aquela imagem de sua cabeça estourada aparecia cada vez que eu fechava os olhos. Eu já o considerava um grande amigo. Gostava do seu jeito paciente e até da forma estilosa como fumava. O Woody era o único que contrariava o Jason e fazia com que ele não desse um chilique logo depois. Agora teríamos que lidar com a tristeza e o mau humor do Jason, que estava quadruplicado depois da morte do amigo.

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Nós estávamos dentro de uma casa aleatória, logo após o ocorrido com o Woody. Meu rosto ainda estava molhado das lágrimas, mas eu não me preocupei em enxugá-lo. Todos os meus amigos estavam em silêncio e o único barulho que preenchia o ar era o da chuva no telhado da casa, ou pelo menos o que restou dele.

Layx estava encolhida num canto, abraçando os joelhos. Ela se sentia culpada por tudo o que havia acontecido, mesmo que todos negassem. A culpa é uma forma que o psicológico usa para torturar uma pessoa. Ou ela encara aquilo, ou foge. E uma das fugas é o suicídio.

A palavra em si já me dava dor. Lembranças ruins surgiam em minha mente. Lembranças que eu ainda lutava para esquecer.

–Achei – saí do meu transe ao ouvir o Duck quebrar o silêncio. Ele tirou um remédio da sua mochila e foi em direção ao Jason. –Sua mão vai ficar melhor.

Inexplicavelmente o Jason não protestou. Duck sentou na sua frente e começou a desenrolar o pedaço de pano que já estava encharcado de sangue. Brendon e Ivy arrastaram um móvel para frente da porta para impedir a entrada de zumbis e também sentaram no chão, ao lado de Amanda e Charles.

Anna e Misha estavam sentados ao meu lado. Ficaram em silêncio e focaram nas mãos ágeis do Duck, assim como todos os outros da sala.

–Puta merda, isso está horrível – Duck franziu o cenho e jogou o pano sujo no chão. –Está muito infeccionado. Eu espero que o remédio funcione.

Uma lágrima rebelde escorreu pelo olho do Jason. Meu coração apertou. Mesmo ele sendo uma péssima pessoa algumas vezes, eu tive vontade de abraçá-lo. Fechei os olhos e tentei controlar o bolo de mágoas que se formava dentro de mim.

Abaixei minha cabeça e cerrei os dentes. Era incontrolável. Lágrimas rebeldes escorreram. Desta vez, pela minha face.

–Eu não quero remédios – Mais lágrimas escorreram pelos olhos do Jason. –Eu quero que você corte.

–O quê? –A voz do Duck parecia assustada.

–Corte minha mão – Jason agarrou o facão mais próximo e estendeu para o garoto pato.

O silêncio reinou por alguns segundos, até que o Duck olhou para cada um de nós.

–Vou precisar de uma ajuda.

Meus amigos e eu nos levantamos juntos. Duck entregou uma camisa para mim para que eu amordaçasse o Jason e deu uma tarefa para cada um que estava presente naquela sala. Sentei no chão e pedi para que Jason deitasse no meu colo. Ele não hesitou.

Brendon, Ivy e Charles seguraram as pernas dele, enquanto Misha e Anna seguravam cada braço. Amanda abraçou sua barriga para que ele também não pudesse movê-la. Duck passou álcool na lâmina do facão e pegou um pano limpo.

Coloquei o pano dentro da boca do Jason e abracei sua cabeça.

–Um... Dois... –Duck pressionou a lâmina sobre a pele e respirou fundo. –Três.

Jason se contorceu e balançou o corpo. Todos faziam uma ação conjunta tentando segurá-lo. Cerrei meus olhos e abracei sua cabeça com mais força. Lágrimas escorriam pelos meus olhos e se juntavam com as do rosto do Jason. Ele emitia gemidos de dor e tinha o rosto completamente suado.

De repente um silêncio. O corpo do Jason relaxou. Sua respiração estava pesada.

Quando abri os olhos, Duck enfaixava o braço, já sem a mão, do Jason. Seus dedos estavam sujos de sangue, assim como chão de madeira ao redor do que havia acontecido. O garoto pato apontou para um pote de remédios perto de mim e fez o número dois com os dedos. Tirei a quantidade pedida de comprimidos e coloquei na boca do Jason com um pouco de água.

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Anna e Amanda o ajudaram a levantar para que deitasse no sofá. Todos voltaram a conversar baixo enquanto o Jason dormia, ou pelo menos tentava. Caminhei pelo corredor de madeira até um quarto aleatório para ficar um pouco sozinha. Logo percebi que o Duck queria o mesmo.

Avistei-o sentado numa cama de casal. Suas mãos estavam apoiadas sobre os joelhos e pareciam um pouco trêmulas. De repente, sua cabeça virou e olhou para mim.

–Desculpa, não queria fazer barulho – Falei e logo me movi para sair.

–Pode vir – ele falou dando umas batidinhas no espaço ao seu lado.

Caminhei e me sentei ao seu lado. Duck se levantou e foi até a porta. Pensei que ele iria sair, mas ele apenas a fechou e voltou até o meu lado.

–Você está bem? – perguntei percebendo o seu silêncio.

–Mais ou menos. Eu não sei explicar o que estou sentindo – ele esfregou suas mãos suadas na calça. –Não sei se é culpa ou outro sentimento.

–Se for culpa, ignore-a. Se for outra coisa, extravase.

Sua cabeça se virou para me encarar.

–Adoro seus conselhos.

–É o melhor que eu posso dar.

Duck riu e virou de frente para mim, colocando os pés sobre a cama.

–Como você resolve algum assunto que está muito indecisa? – ele perguntou.

Franzi o cenho e o encarei.

–Acho que na maioria das vezes você vai perguntando o que deve fazer para várias pessoas. A sugestão mais votada é a que você vai usar na sua ação.

–E se as outras pessoas não puderem saber sobre suas indecisões?

–Afinal, aonde você quer chegar com isso?

–Bem, – ele respirou fundo – o assunto é meio delicado. Eu me sinto à vontade, mas a maioria das pessoas não.

–Desembucha logo.

–É a minha máscara. Eu não sei mais o que fazer. Às vezes quero arrancá-la do meu rosto por estar fazendo todos sentirem medo de mim, mas ao mesmo tempo sinto que vou destruir todo o meu propósito. –Duck levantou o rosto e me encarou. –Será que se eu mostrar apenas a uma pessoa eu vou me sentir bem?

–Não sei – as palavras sumiram da minha boca. –Tenta. Ou não. Sei lá.

–Você está nervosa.

–Sim. Não. Talvez. Ah, Duck, faça o que quiser. –Afundei meu rosto em minhas mãos. –Eu não sei o que dizer.

–Eu sei – ele colocou suas mãos na frente dos meus olhos. –Mas tenho que fazer aquilo que acho que é certo. Não olhe. Eu quero que seja uma surpresa.

–Já vai ser de qualquer jeito.

Cerrei bem os olhos e ouvi o barulho da máscara sendo retirada. Logo, ela caiu no chão.

–Pronto. Eu estou me sentindo nu, mas tudo bem. Abra os olhos.

–Certo.

Contei até três mentalmente e abri os olhos. Havia um rapaz totalmente diferente do que eu imaginava. Olhei a máscara jogada no chão e não acreditei que aquele fosse realmente o Duck. Ele estava com os olhos fechados, mas os abriu lentamente, mostrando o azul profundamente bonito das íris.

Os seus cabelos eram castanhos e meio lisos e ondulados. Desciam até os ombros e eram um pouco volumosos. Suas sobrancelhas eram arredondadas, mais ou menos grossas e castanhas.

–Seu filho da puta, eu achei que você era todo fodido. –Vasculhei cada centímetro do seu rosto. –Por um lado, eu entendo por que você esconde o rosto. Se você aparecesse assim, iria parecer um europeu tirando fotos no apocalipse para uma revista de moda.

Ele sorriu.

–Exatamente.

Era a voz do Duck. Era ele mesmo que estava na minha frente. Estendi a mão e toquei sua pele com o dedo indicador.

–Você existe.

Ele ergueu as mãos e puxou meu outro braço, colocando minhas mãos tocando sua pele.

–Eu existo. Isso tudo é carne humana.

–Que coisa estranha.

–É estranho o fato de eu ser humano? Você esperava uma aberração com penas e bico?

–Eu sabia que você era humano, só não sabia que era bonito. Eu achei que sua cara fosse cheia de cicatrizes como a do...

Dei uma pausa. Aquele nome era impossível de ser pronunciado hoje.

–Como a do Woody – Duck completou.

Assenti com a cabeça. Ficamos em silêncio por uns segundos, até que ouvimos uma batida forte na porta.

–EI, SAIAM DAÍ. –Era a voz do Charles. –O JASON NÃO ESTÁ BEM.

Levantei com um salto e abri a porta. Corri pelo pequeno corredor até chegar à sala, onde todos os meus amigos observavam o Jason vomitar num vaso aleatório. Não demorou muito para ele dar um último gemido e sentar no chão.

–O que foi? Um homem não pode vomitar em paz? –Ele levantou com dificuldade e sentou novamente no sofá empoeirado.

–Você está bem? –O Duck, já de máscara, perguntou.

–Estou. Não era nem para ter esse público todo. É só um simples vomito.

–Nós praticamente nem temos comida no estômago para vomitar. –O garoto franziu o cenho. –O que saiu? Sangue?

Jason ficou em silêncio.

–Jason, o que saiu? –Amanda repetiu.

–Talvez tenha saído um pouco de sangue.

–Puta merda – Passei os dedos pelo meu cabelo bagunçado. –Estamos na merda de um apocalipse e tem uma pessoa vomitando sangue.

–Não é nada grave! –Jason gritou.

–Desde quando você fez curso de medicina, cara?

–Eu conheço o meu corpo. Sei quando ele está no limite.

–Nós estamos num apocalipse. Aqui o corpo só fica no limite. Quando você vomita sangue, você está na linha depois do limite. Sabe o que isso quer dizer, Jason?

–Que você deveria parar de se preocupar. Eu não estou morrendo.

Cerrei os punhos e assenti.

–Temos outras coisas mais importantes pra nos preocupar – ele falou antes de deitar no sofá novamente.

–O pior é que ele tem razão – Duck concordou. –Precisamos focar na Base. Se o Jason diz que não vai morrer, ele não irá. Certo?

O garoto pato olhava para mim, então concordei forçadamente com a cabeça. Minhas amigas fizeram o mesmo.

–Pronto – ele olhou para o Jason. –Quer algum remédio?

–Não. Eu estou bem.

–Estão ouvindo isso? –Brendon interrompeu.

Todos ficaram em silêncio.

–Eu não estou ouvindo nada – Jason respondeu.

–Está bem baixo. Parece um barulho de motor – Layx falou.

–Exato – Brendon concordou.

Concentrei minha mente e consegui ouvir. Havia sim um barulho de motor bem baixo.

–Eu estou ouvindo gritos também – Duck falou. –Ou estou ficando louco.

–Provavelmente é a segunda opção – Jason se acomodou melhor no sofá e fechou os olhos. –Não deve ser nada demais. Pessoas morrem sempre.

–Aquilo ali é fumaça? –Misha estava na janela ao lado de Anna.

–Eu acho que sim – ela afirmou.

Caminhei em direção a janela e cerrei os olhos. A noite estava escura, mas dava para ver fumaça subindo para o céu num ponto bem longe de onde estávamos.

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–É, é fumaça – concordei.

–Pode ter pessoas acampando, ou sei lá – Duck se aproximou. –Tem uma floresta a alguns quilômetros daqui.

–Quantos?

–Não sei, mas é longe.

–O BARULHO DE NOVO! –Layx correu até a janela e ficou olhando atentamente o céu.

Todos fizeram o mesmo. Procurávamos por qualquer sinal.

–Eu estou começando a ficar com medo – Amanda sussurrou.

–Eu também – concordei.

De repente, um barulho ensurdecedor soou. Tapei meus ouvidos, cerrei os olhos e me joguei no chão. Nada aconteceu.

Abri os olhos novamente e sentei no chão. Havia uma fumaça no mesmo lugar que tínhamos visto antes, porém era mais escura e volumosa.

–O que foi isso? –Charles perguntou enquanto levantava.

–Uma explosão – Duck respondeu. –Mas não sei o que causou. Talvez seja algo simples, como encontro de fogo com gás.

–Mas e o barulho? –Layx ainda olhava para o céu.

–Também tem uma segunda suposição.

–Qual?

–Uma bomba.