A sirene da polícia não foi capaz de ocultar o grito dos animais, aqueles, determinados, não abaixaram os cartazes ao serem iluminados pela luz vermelha e azul. O protesto reunira centenas de animais em Zootopia, uma cidade que dizia-se tão “moderna” a ponto de usar o bordão “Em Zootopia, você pode ser o que quiser.”. Bem, aparentemente, nem tudo o que quiser.

A policial Judy saiu do carro ao lado de seu fiel parceiro, Nick, que já colocara seus óculos espelhados que refletiam o azul e vermelho. E Judy continuava a se perguntar se ele realmente achava aqueles óculos estilosos, ainda mais estando de noite.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

A coelha aproximou-se da multidão enfurecida e cruzou os bracinhos, uma rena, que parecia representar os protestantes, saiu de um aglomerado de animais junto a um cavalo de pelagem branca, os dois se aproximaram da policial com olhares determinados. Judy respirou fundo ao ver que a rena e o cavalo deram as patas, já sabia o problema em questão, e assim percebera que estava numa fria.

— Acham que essa algazarra toda é mesmo necessária? – Nick se adiantou, bebendo um gole de café que estava em sua pata esquerda. Desceu um pouco os óculos por seu focinho para mostrar seu olhar de deboche aos animais à sua frente. – Sabem que esse protesto é uma perda de tempo, não?

Com a fala da raposa, todos começaram a se enfurecer ainda mais, erguendo mais seus cartazes e ofendendo o policial. “Amor não tem raça” dizia um cartaz, “Menos divisão, mais amor” dizia outro, e milhares com frases mais diretas como “Legalizem o casamento entre espécies diferentes”. De uns tempos pra cá, isto se tornara uma polêmica comum entre os cidadãos de Zootopia. O número de casais de diferentes espécies aumentou desenfreadamente, e, considerando que há um ano ainda havia certo preconceito entre predadores e presas, imagine só o preconceito com a união civil entre elementos distintos da cadeia alimentar.

Judy percebera que o parceiro fora um tanto grosseiro e lhe deu uma cotovelada no ombro, ele protestou na hora, mas ela não ligou. Se aproximou do casal à sua frente e disse:

— Peço desculpas pelo meu colega, senhora... – se referiu à rena.

— Rachel. Rachel Rentier – ela respondeu com um ar sério, apertando mais a pata de seu parceiro inquilino. – Sabe muito bem o porquê de estarmos aqui esta noite, senhora policial. E não sairemos até a justiça ser feita.

— Eu entendo seus motivos, senhora Rentier – Judy sempre usava o tom mais sereno possível na hora de discutir com cidadãos raivosos. – Mas não posso deixar que façam essa bagunça toda pelas ruas. Acha mesmo que, fazendo todo esse barulho, vai mudar a lei?

O cavalo à esquerda ficou furioso, dando um passo à frente e se aproximando mais dos policiais.

— Diz que entende nossos motivos, mas esquece que isto é um protesto! – sua parceira teve que lhe segurar para não fazer algo precipitado contra os policiais. – Sequer querem ouvir nossas reivindicações! Não estamos machucando ninguém, apenas queremos ter a liberdade para casar com quem amamos!

— Senhor, entenda, - a coelha começou – não estamos aqui para dizer o que é certo ou errado, só-

— Para querer nos parar sem mais nem menos, os seus conceitos de amor devem estar muito errados, senhorita! – o cavalo a interrompeu, e ela não sobe como responder.

— Hipócrita! Mal-amada! – gritou uma voz ao fundo.

Judy continuou a engolir seco, e Nick já estava começando a perder a paciência. Ouviu-se o som de um vidro quebrar, e outro, e outro. Os protestantes começaram a quebrar a vitrine das lojas, fazerem mais barulho, gritarem. Os líderes à frente dos policiais pareceram desesperar ao ver que seu povo perdera o controle.

— Não façam isso! – gritou a rena. – Vão dar a razão a eles!

Mas nenhum deles escutou, e as ruas de Zootopia tornaram-se um caos. A dupla de policias teve que chamar reforços, e quando chegaram, a caça começou. Os policiais eram os predadores, os protestantes, as presas, detidas por não saberem como defender sua causa. Nobre no ponto de vista de uns, uma aberração para outros.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

—--X---

— Zootopia está mesmo ficando maluca – ouviu Nick dizer enquanto tirava suas coisas de seu escaninho minúsculo, perfeito para um coelho.

— Que quer dizer com isso? – ela pôs seu casaco. Ainda era outono, mas a delegacia era estranhamente fria, não importa a quantidade de pelos que tivesse.

— Onde já se viu, um porco casar com uma mula, por exemplo? – ele levou o copo de café à boca. Judy tinha a leve suspeita de que a raposa estava se viciando em cafeína. Nick riu para si mesmo, num tom de ironia. – É cada coisa que me aparece, viu.

— Não tenho nada contra, se quer saber – a coelha deu de ombros, enquanto colocava sua pasta dentro de sua bolsa. Olhou para o teto com um ar nostálgico. – Sabe... Uma tia minha casou-se com um jaguar.

— É sério? – Nick achou que fosse piada, e riu.

— Sim – Judy suspirou, e lembrou de sua tia. – Ela era muito legal, sempre vinha nos visitar na páscoa para ajudar a distribuir os ovos de chocolate pela vizinhança. Tenho um colar com um pingente de um ovo de páscoa que ela me deu até hoje.

— E onde sua tia está agora?

— Depois que ela conheceu o marido... – Judy colocara uma expressão um tanto triste no rosto – meus pais cortaram o contato, e não me deixaram mandar cartas pra ela. Eles são muito tradicionais, sabe – ela suspirou mais uma vez. – Saudade da tia Pérola...

— Uau – a raposa deu mais um gole de seu café, e tentou fazer uma expressão mais indiferente. – Ah... eu não tenho nada contra, mas... sei lá... um coelho e um jaguar? Sério?

— Se pensa dessa forma, você tem algo contra, sim— Judy fechou seu escaninho, e preferiu mudar a conversa. De certa forma, não era um assunto muito agradável. – Vamos pra casa, eu estou congelando.

Caminharam juntos até o mesmo prédio, o primeiro caso que resolveram fora o suficiente para receberem um salário melhor que de um guarda de trânsito. Eram vizinhos de porta, prédio de classe média, mas bonito, aconchegante, e com uma bela vista. Vale lembrar que policiais não tem lá um salário invejável.

Passaram mais tempo que o desejado no elevador, pois seu vizinho do andar abaixo era uma preguiça idosa, e não podiam simplesmente empurrá-la. Chegaram ao décimo andar depois de exatos dez minutos esperando a senhora sair do elevador.

— Ah, como eu adoro preguiças – disse a raposa, num tom de deboche. – Elas te deixam tão irritada.

— Ah, cala a boca – ela lhe deu um soquinho no ombro, ele riu. – Eu não sei como você consegue ter tanta paciência.

— Para ver você perdendo o juízo, vale cada segundo – brincou, e ela não pode evitar de rir junto com ele. Nick tirou as chaves do bolso, abriu a porta de seu apartamento e lhe estendeu a pata. – Quer entrar? Tomar um café?

— Nick, acho que você está tomando café demais.

— Você acha demais.

Ela entrou, e, sentindo-se em casa, sentou no sofá e ligou a televisão. Estava passando o jornal, e como esperado, a sensação do momento era o protesto a favor do casamento entre diferentes espécies. Houveram flashes em que Judy e Nick foram filmados.

— Olha lá, eu tô na TV! – disse cheio de orgulho.

Começara uma entrevista com a senhora Rachel Rentier, e Nick não parava de se gabar.

— Shiu! – a coelha tapou a boca do amigo, a qual ele retirou no mesmo instante. Judy aumentou o volume da TV.

— Nós não vamos parar até Zootopia entender – a senhora Rentier parecia confiante diante das câmeras. – Nós não queremos privilégios, glória, nada disso. Queremos igualdade. Queremos o livre arbítrio de sair de patas dadas com quem amamos sem sermos violentados nas ruas, queremos o direito de não precisar mudar de cidade para nos casarmos, já que Zootopia ainda não legalizou o casamento entre diferentes espécies. Queremos que os cidadãos de Zootopia possam abrir mais suas mentes, queremos o fim de tanta maldade, e, acima de tudo, o fim de tanto preconceito!

Judy se impressionou com a coragem da rena, para falar isso em cadeia nacional sem medo algum, era preciso muita determinação. No fundo, o que a coelha realmente sentia era pena daquele povo.

— Saudade de quando nossos casos envolviam desaparecimentos – resmungou a raposa enquanto desabotoava a sua camisa como se Judy nem estivesse ali, e quando a coelha percebeu que Nick se despia, nem olhava mais para a televisão. Sentiu o rosto queimar quando ele mostrou suas presas num sorriso.

— Acabo de lembrar que não tenho nada na geladeira – a coelha esqueceu depressa que o parceiro estava sem camisa, e pôs uma expressão indignada no rosto.

— Então, por que diabos me chamou para entrar?

— Estava pensando em te devorar.

— Há, há – ela fingiu uma risada, enquanto ele ria como se tivesse contado a piada mais hilária do mundo. – Que comediante.

— Vou pedir uma pizza – ele se levantou do sofá e foi pegar o telefone.

— Pede a de cenouras.

Ele fez uma expressão como se tivesse se ofendido.

— Que tipo de animal você acha que eu sou? Cenoura na pizza? Tenha dó.

— Então vai comer sozinho – ela se levantou, e lhe deu um sorriso brincalhão. – Eu não sou o tipo de animal cabeça-oca que esquece de fazer as compras, tenho meu jantar prontinho em casa. Até amanhã.

Ela caminhou até a porta, mas sentiu a pata dele segurar seu bracinho. Quando voltou a olhar para ele, lembrou que ele estava sem a camisa. Ela voltou a ficar meio tímida.

— Não – ele disse.

— Não o que?

— Fica.

— Por quê?

— Fica.

— Você está carente demais – ela brincou, não evitava sorrir. Gostava quando ele a tratava assim. – Tem certeza que não precisa de uma namorada?

— Cala a boca. Fica.

— Pizza de cenoura?

— Eu te odeio.

— Também te amo – ele finalmente a soltou e ela sentou no sofá novamente.

— Devo estar pagando todos os meus pecados em vida com você – ele resmungou. – Fala sério, pizza de cenouras? Isso é uma ofensa!

— Ah, Nick, o que seria de você sem mim?

— Um vagabundo que mexe com pirataria.

—--X---

Jantar com Nick não fora uma má ideia, ela nunca se divertira tanto ao vê-lo quase vomitar com a pizza, a raposa não deu nem duas mordidas e já sentiu o refluxo. Após várias gargalhadas, boas conversas, ela o deu boa noite e foi para o apartamento ao lado.

Foi até o quarto e deitou-se na cama, não deu nem dois segundos e recebeu a ligação visual de seus pais.

— Oi mãe, pai – eles se alegraram instantaneamente ao ver o rosto de sua filha.

— Oi, minha queridinha – respondeu o pai, sorridente. – Como você está?

— Estou bem. Mais um longo dia de trabalho.

— Nós vimos no noticiário o que aconteceu – disse a mãe, com um tom não muito agradável. – Que coisa horrível!

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— É, é, horrível – a menor fingiu concordar, procurando qualquer outra coisa para conversar. – E o casamento da Jane, – que era uma de suas centenas de irmãs – tá tudo certo?

— Sim – sua mãe voltou a sorrir. – Será em abril, se tudo ocorrer bem.

— Que bom – Judy sorriu. – Mal posso esperar para conhecer esse tal de Mike.

— Ah, é um bom coelho – disse um pai, num sorriso orgulhoso. – Dono de uma grande fazenda, ótimo para os negócios.

— Sua irmã está tão feliz, Judy – Judy sentiu que lá vinha coisa. – Mal posso esperar para lhe ver feliz desse jeito, também.

— De novo essa história, mãe?

— E vou repetir até você arranjar um coelho – o tom da mãe era um tanto desaprovador. – Onde já se viu, uma coelha tão linda e empenhada como você, solteira?

— Não há nenhum coelho que eu queira agora, mãe – a menor fez o possível para não perder a paciência, detestava quando a mãe vinha com esse assunto. – E eu estou feliz sozinha, relaxa.

— Mas sei que estaria muito mais feliz ao lado de um parceiro, filha – a mãe insistiu. – Sabe, o Mike tem vários amigos, ele pode-

— Ah, acabei de lembrar que já são onze horas, e preciso acordar cedo amanhã – Judy interrompeu, fazendo o possível para fugir daquele assunto.

— Está bem – a mãe se conformou. – Boa noite, filha – disse em coro com o pai.

- Boa noite, amo vocês.

Judy terminou a ligação e soltou um longo suspiro, tirou suas roupas e foi tomar um longo banho pensando no protesto, nas belas falas da senhora Rentier, e como se posicionar nesse caso delicado, sabia que esse assunto iria correr solto por um bom tempo.

Pôs seu pijama e deitou-se na cama novamente, mas dessa vez, pensando na conversa que tivera com sua mãe. Soltou um risinho.

— Eu não preciso de um coelho... – sussurrou para si mesma.

O celular vibrou no criado mudo, avisando a chegada de uma mensagem.

—Boa noite, cenourinha.

Sorriu. “Estou feliz sozinha”.

—Boa noite, Nick.